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Planejamento: contra a Covid-19 e a insegurança

Planejamento estatal é necessário agora, mas sempre foi e sempre será imprescindível. O planejamento é um conjunto de elementos estruturais e muitas políticas econômicas e sociais. Sociedades e economias não podem ficar ao sabor do laissez-faire, não podem ficar à deriva. Os maiores e mais fortes se aproveitam do descontrole e da desregulamentação para se tornarem ainda mais robustos – e o fazem às custas da quase escravização dos menores e mais fracos.

Os pioneiros da ideia do planejamento foram os soviéticos na década de 1920. Contudo, àquela época, muitos estado-unidenses reclamaram a autoria da invenção. (1) Enquanto Josef Stalin lançava, na União Soviética, os seus planos quinquenais, Franklin Roosevelt enfrentava, nos Estados Unidos, a Grande Depressão com o New Deal. Ambos perceberam que economia e sociedade devem ter seus problemas solucionados com uma visão que não poderia ser tópica. Não atacaram somente a dificuldade mais aparente; buscaram fazer um verdadeiro planejamento capaz de mover bases estruturais.

Costuma ser atribuído a um provérbio chinês a ideia de que crises abrem janelas de oportunidade. Stalin superou o atraso de um país agrícola, a fome e a miséria lançando talvez o mais ambicioso plano de industrialização já visto até hoje.(2) Roosevelt não fez apenas obras públicas para reativar a economia e reduzir o desemprego diante da recessão, fez leis de regulação bancária, de seguridade social, trabalhistas (salário mínimo, jornada de trabalho, estímulo à sindicalização) e de apoio a artistas e ao turismo.(3)

Para grandes estadistas crises podem abrir oportunidades. Para políticos pequenos, crises são atoleiro. A oportunidade mais alentadora do momento no Brasil é a possibilidade de reintroduzirmos a ideia do planejamento; primeiramente, na cabeça de quem esqueceu de sua existência e, posteriormente, na prática, na vida real da sociedade, do governo e do Estado.

Planejar significa o estabelecer objetivos, metas, datas-limite, instrumentos, financiamento e órgãos executores, avaliadores e de coordenação entre todas as políticas e programas governamentais. É por isso que o planejamento é chamado também de governança da inteligência coletiva. Em contraste, uma empresa é governada pela inteligência individual. Esta última é importante para fazer florescer a criatividade e a inovação. A inteligência coletiva é essencial para garantir a realização das potencialidades da inteligência individual. (4)

A inteligência individual só pode florescer em um ambiente de amplas liberdades (individual e política). O planejamento somente vai prosperar em um ambiente de profunda consciência social – isto é, dentro de uma atmosfera social em que cada indivíduo reconhece que precisa do outro, do nascimento ao falecimento. Portanto, o outro deve ser um cidadão tecnicamente capacitado e emocionalmente feliz.

Essa concepção de planejamento deveria nortear a elaboração da construção de um programa econômico e social emergencial de combate à COVID-19 e um plano de segurança de vida que fosse permanente. O planejamento estatal deveria ser iniciado a partir da seguinte organização

a) Constituição de um comitê estratégico junto à Presidência da República formado por cientistas das mais diversas áreas: historiadores, geógrafos, sociólogos, antropólogos, médicos, biólogos, economistas, engenheiros, físicos, odontólogos, estatísticos etc. – esse comitê deveria ser responsável por elaborar políticas, programas, objetivos e metas.

b) Constituição de um comitê de acompanhamento junto à Presidência da República formado por variados segmentos: sindicalistas, empresários, sem-terra, sem-teto, favelados, pequenos agricultores, banqueiros, artistas, microempreendedores e outros – esse comitê deveria ser responsável pela avaliação das políticas, programas e reformas antes e depois da implementação e de seus resultados – também deveria analisar a compatibilização entre si das diversas iniciativas governamentais.

Com essa estrutura organizativa seria bem provável que políticas governamentais emergenciais eficazes fossem seguidas, já que critérios científicos seriam adotados. Entre elas poderiam estar:

1) Socorrer TODAS as famílias dos trabalhadores informais, desempregados e desalentados com um salário mínimo estabelecido pelo DIEESE (não é possível que alguém acredite que um motorista solteiro de Uber vai fazer isolamento social por R$ 600/mês).

2) Manter o emprego de TODOS os trabalhadores formais com o pagamento integral ou parcial de salário (complementado pelas empresas) – e garantir o pagamento dos salários integrais do funcionalismo público.

3)Transferência (ou doação) de recursos para as micro e pequenas empresas que assim necessitarem para que seus negócios não entrem em falência e fechem as portas para sempre.

4) Distribuir cestas básicas nos bairros pobres e periferias – isso reduziria o fluxo de pessoas aos supermercados e poderia atingir aqueles que por qualquer motivo não foram alcançados pelos benefícios (1 ou 2) – e não podemos entender como um problema o trabalhador de baixa renda receber o seu salário e mais uma cesta básica.

5) Socorrer bancos, se necessário, para evitar qualquer ocorrência de possibilidade de crise sistêmica – essa medida de socorro sempre deve ser aplicada junto com uma auditoria da instituição e, se for o caso, responsabilização de seus donos ou acionistas majoritários.

6) Reconversão industrial para a produção dos itens necessários para auxiliar na proteção da população (máscaras e etc.) ou no tratamento adequado nos hospitais (leitos, por exemplo). Além disso, as universidades públicas têm dado exemplo que podem produzir diversos itens ou consertar equipamentos. Portanto, empresas reconvertidas devem ter garantida a venda da sua produção ao setor público a um preço lucrativo e universidades devem receber recursos para ampliar as suas atividades.

7) Moratória da dívida dos entes federativos com o Governo Federal e transferência de recursos a esses entes para garantir o pagamento de suas despesas correntes e, também, recursos para o investimento na área da saúde. O SUS deve ficar saturado de recursos e não de pacientes.

8) Oferta de crédito através dos bancos públicos para empresas médias e grandes com taxas de juros zero e carência de dois anos (podendo ser prorrogada). As empresas devem demostrar que os recursos creditícios estão sendo utilizados para amenizar as dificuldades advindas da conjuntura econômica adversa – caso contrário, perderiam o direito à taxa e prazo de carência.

9) Financiar os gastos que forem necessários com emissão de dinheiro. Esse mecanismo não causa inflação. Qualquer tipo de financiamento pode ser dinheiro novo para a economia real, sejam impostos pagos por ricos sejam empréstimos novos feitos pelo setor público (endividamento). O dinheiro novo vindo por qualquer canal (emissão, inclusive) somente causará inflação se a economia estiver aquecida – estamos e já estávamos muito longe disso. Ademais, a emissão de dinheiro reduz a taxa de juros de longo termo.

10) Organizar um orçamento separado que poderia se chamar Investimento Social de Combate ao Coronavirus (chamá-lo de “de Guerra” não passa a mensagem de que esse orçamento é de investimento na sociedade). O udenista Carlos Lacerda, quando governou o Estado da Guanabara, nos anos 1960, pediu ao seu Núcleo de Planejamento que fizesse um criativo orçamento: gastos nas atividades intermediárias e investimento nas atividades fins (na sociedade).(5)

O planejamento deve ir além das medidas emergenciais. A crise abriu a oportunidade para o lançamento da proposta de planos permanentes para estabelecer uma vida segura para todos. Muito antes do fim da II Guerra Mundial (ainda em 1941), Winston Churchill, primeiro-ministro britânico, e Roosevelt lançaram a Carta do Atlântico. Era uma carta de esperança que delineava uma concepção de mundo para ser vivida após a crise; entre alguns pontos, eles citaram: “… promover a colaboração mais completa entre todas as nações no campo econômico, com o objetivo de garantir, para todos, melhores condições de  trabalho, avanços econômicos e seguridade social”.(6)

O Brasil deveria seguir esse exemplo. Deveria lançar ainda durante a crise as bases de um planejamento que possa dar segurança de vida a todos. Os seguintes pontos poderiam compor esse planejamento: estatizar e ampliar os sistemas de saúde e educação, industrializar o país em todas as suas regiões, fortalecer os bancos públicos e a Petrobras, estabelecer uma renda básica de cidadania, priorizar em termos orçamentários o investimento em ciência e tecnologia, realizar reforma agrária e urbana-habitacional, realizar reforma tributária que seja funcional (tributação progressiva), reformar a legislação trabalhista para garantir a formalização, direitos e o fim da pejotização e adotar novas políticas econômicas (fiscal, monetária e cambial) que tenham como objetivo o pleno emprego e o bem-estar social.

¹ O estado-unidense Stuart Chase, influente economista, foi um ardoroso defensor durante os anos 1930 de que a ideia do planejamento nasceu nos Estados Unidos [ver Balisciano, Marcia. 1998. “Hope for America: American Notions of Economic Planning between Pluralism and Neoclassicism, 1930-1950.” History of Political Economy 30(supplement): 153-178].

² Para um conhecimento detalhado dos planos quinquenais de Stalin, ver Nove, Alec. 1992. An Economic History of the USSR 1917-1991. London: Penguin Books.

³ Para quem desejar ter acesso a todos os programas e documentos do New Deal, recomenda-se o site https://livingnewdeal.org/

⁴ A denominação das inteligências coletiva e individual foi feita pelo economista britânico John Maynard Keynes no dia 14 de março de 1932 em programa de rádio [ver volume XXI de seus The Collected Writings of John Maynard Keynes].

⁵ Sugere-se o excelente livro de Perez, Maurício. 2007. Lacerda na Guanabara. Rio de Janeiro: Odisséia Editorial.

⁶ Cabe também destaque a William Beveridge. Em novembro de 1942, quando a situação ainda era muito difícil para os aliados na Guerra contra o nazismo, o economista liberal Beveridge lançou no Reino Unido o seu conhecido relatório Social Insurance and Allied Services que foi a base para a constituição do estado de bem-estar social do pós-guerra.

(*) João Sicsú é professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi diretor de Políticas e Estudos Macroeconômicos do IPEA entre 2007 e 2011.

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