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Apresentação do último capítulo, com um anexo, da série: A covid-19, o Estado e a pobreza

O isolamento para reduzir a mortandade provocada pelo novo coronavírus levou à paralisação das economias e à necessidade de os governos intervirem para, em primeiro lugar, salvar os mais pobres. Como, nesse mundo tão desigual em que vivemos? A resposta foi anunciada para sete artigos em três capítulos. Nocaute hoje completa o trabalho, com o sétimo artigo, a segunda parte do terceiro capítulo. E acrescenta à série um documento especial: o chamado “livro branco” do governo chinês sôbre a crise do novo coronavírus no país.

Capítulo 3 – Duas histórias sobre a pandemia
Parte 2 – Considerações sobre o livro branco do governo chinês que trata da epidemia do novo coronavírus

A ideia geral desta série sobre a pandemia do novo  coronavírus era descrever a proteção aos mais pobres por diferentes tipos de estados. O primeiro capítulo, em três partes, com uma reportagem na Rocinha, Rio de Janeiro, tratou da ajuda emergencial aos pobres do estado brasileiro, um país capitalista em desenvolvimento. Os artigos 4 e 5, do capítulo 2  analisaram os serviços de proteção aos pobres no país capitalista mais rico do mundo, os EUA. O capítulo 3 trata da China, um país socialista dirigido por um partido, o Partido Comunista da China. E tem duas partes: a primeira, o sexto dos sete artigos prometidos, descreveu, do ponto de vista dos dois mais altos dirigentes da política externa americana, o presidente Donald Trump e seu secretário de Estado Mike Pompeo, o que seria a responsabilidade da China, o país onde a atual pandemia nasceu, por não ter cortado pela raiz a propagação do novo coronavírus. Este último artigo da série é um comentário sobre o chamado “livro branco” do governo chinês sobre a crise do novo coronavírus no país. É um documento extenso: tem  mais de 70 páginas. O autor desta série o leu, na versão da agência chinesa Xinhua, em inglês. Traduziu para o português com a ajuda do Google Translator e fez a revisão final do texto assim produzido. E, com o editor do Nocaute, Fernando Morais, considerou útil para os brasileiros preocupados com o futuro do País, a sua divulgação. O documento chinês é então apresentado como um anexo no encerramento da série.

Números da pandemia da Covid 19: proporção de mortos por habitante, até agora, final de julho de 2020: China, 1 para cada 300 mil habitantes; Brasil, 100 vezes mais, 1 para cada 3 mil habitantes: e Estados Unidos, 150 vezes mais, 1 para cada 2 mil habitantes. Para entender como isso aconteceu é preciso ver

A história contada pelos chineses

A pandemia da Covid 19, a doença causada por um vírus de tipo novo, começou na China, não há dúvida. O presidente americano Donald Trump e seu escudeiro, o secretário de Estado Mike Pompeo, como vimos nesta série, disseram que os Estados Unidos foram atacados pelo vírus, porque a China, que deveria ter impedido a sua propagação imediatamente, não o fez. Acusado publicamente, o governo chinês respondeu com um documento que chamou de “livro branco”, termo usado geralmente por instituições nacionais para aprofundar a análise de um problema e esclarecer sua posição. 

Parte da acusação vem de uma boa história, mal contada pelo semanário inglês, The Economist, na sua página de obituários, na edição de 13 de fevereiro deste ano. Ela resume a vida do doutor Li Wenliang, oftalmologista do Hospital Central de Wuhan, que teria sido, diz a revista “um dos primeiros a advertir sobre um novo coronavírus” e morreu no dia 7 de fevereiro, internado naquele mesmo hospital, aos 33 anos.

A revista, a melhor de seu tipo pode-se dizer, é de orientação liberal e anticomunista e, talvez por esse motivo, deixou de ver aspectos essenciais da história, como procuraremos demonstrar. O médico estava no hospital, quando se formou ali, em isolamento, o primeiro grupo de doentes internados com os mesmos sintomas de pneumonia grave e o mesmo antecedente, de terem passado pelo mercado de frutos do mar da cidade. Habituado a repassar pela Weibo, uma rede social chinesa, as novidades do dia para um grupo de amigos egressos da mesma universidade de Wuhan, Wenliang postou, no final do dia 30 de dezembro, ligando a quarentena no hospital ao surto de SARS  (Severe Acute Respiratory Syndrome, síndrome respiratória aguda grave) ocorrido na China entre 2002-2003, o seguinte texto: “Sete casos de SARS no Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Wuhan”. 

Na mesma noite do dia 30 de dezembro, uma segunda feira, em função da repercussão do seu post que, como se diz, viralizou na internet, o médico foi chamado para dar explicações aos dirigentes do hospital. Foi criticado, mas não foi punido, multado ou afastado de sua posição. E, na mesma semana, no dia 3 de janeiro, uma sexta-feira, foi chamado para um depoimento na polícia. 

Neste, diz a Economist, ele foi liberado depois de acabar fazendo duas afirmações: que concordava com a avaliação de que espalhar rumores que prejudicassem a ordem pública era uma atividade ilegal; e que, se repetisse o feito, seria punido com base na lei. Essa história, graças ao grande alcance internacional da Economist, transformou Wenliang num herói para os críticos da China, tanto os ideológicos anticomunistas tradicionais, como os de ocasião.  

O necrológio de Wenliang na Economist é um exemplo dos problemas dessa narrativa. Ele apresenta o médico, de modo convincente, como uma pessoa ingênua e de boa fé. E também um pouco descuidado e precipitado. Ele acabou morrendo no mesmo hospital no dia 10 de fevereiro  depois de ter tratado um caso de infecção nos olhos grave, numa idosa de 82 anos, sem máscara, por não ter percebido os sinais da pneumonia que ela apresentava e que acabou transmitindo a ele, justamente a nova doença. Wenliang se apressou na divulgação de seu post no dia 30: uma hora depois de tê-lo publicado, o corrigiu. A revista diz, a propósito dessa correção: “embora se tratasse de um coronavírus”, como o da SARS, o vírus “ainda não havia sido identificado”. 

Como a Economist ou o doutor Wenliang poderiam saber que o vírus era do tipo coronavírus já no final do ano passado? As autoridades médicas do Hospital Central e da cidade de Wuhan colocaram sob quarentena um grupo de doentes com pneumonia grave, do início dessa nossa história, depois de examiná-los e com alguns exames laboratoriais entre meados e 27 de dezembro quando fizeram um primeiro comunicado de alerta sobre a doença. Mas notificaram que se tratava de “uma pneumonia viral de origem desconhecida”. 

Uma pneumonia grave pode ter origem bacteriana. Mas a bactéria é, comparativamente, bem maior, mais fácil de identificar: um vírus, não; se mede em nanômetros, milionésimos de metro, e não em microscópios comuns, mas eletrônicos. Um vírus e sua ação não se identificam por conjecturas, mas em observações por pessoal especializado e processos técnicos e científicos sofisticados. É claro, também, que acima dessas instâncias, para se prevenir dos malefícios do vírus, é preciso ter a direção administrativa e política correta, se se trata, como no caso, de um fato com claras repercussões nacionais e mesmo internacionais. E é verdade também que esta direção não pode se guiar, nas questões técnicas e científicas, por sua própria ignorância – como foram os casos, no Brasil e nos EUA dos governo democráticos dos presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump. 

Na luta contra o coronavírus, o exemplo dado pela China, dirigida pelo governo de um partido comunista presidido por Xi Jinping é extraordinário, em diversos aspectos. Destacaremos dois pontos do livro branco chinês, começando por esse problema inicial: qual era o vírus?

1. A identificação do novo coronavírus

No dia 27 de dezembro – três dias antes do post do doutor Wenliang, portanto – o Hospital Provincial de Medicina Chinesa e Ocidental de Wuhan relatou casos do que chamou “pneumonia viral de causa desconhecida” ao Centro de Prevenção e Controle de Doenças da região. O governo da cidade de Wuhan reuniu especialistas locais para analisar esses casos através do exame das condições e história dos pacientes, de investigações epidemiológicas e de resultados preliminares de testes laboratoriais. A conclusão foi a de que eram casos de uma “pneumonia viral de causa desconhecida”. Ou seja, era uma doença causada por vírus, mas não se sabia qual.

Três dias depois, a 30 de dezembro, quando o doutor Wenliang fez o seu post na Weibo, a Comissão de Saúde da Cidade de Wuhan emitiu um “Aviso Urgente” sobre o tratamento de pacientes com a “pneumonia de causa desconhecida”. Após tomar conhecimento desses fatos, a Comissão Nacional de Saúde da China, no último dia do ano, diz o documento chinês “nas primeiras horas do dia 31”, “tomou providências para enviar um grupo de trabalho e uma equipe de especialistas a Wuhan para orientar sua resposta à situação e conduzir investigações no local”.

O site do hospital onde os doentes estavam internados divulgou logo a seguir uma Circular de Informações instando a população a ficar longe de locais públicos fechados com pouca ventilação e de locais onde grandes multidões se reunissem e também sugeriu o uso de máscaras na circulação de pessoas.  

O caso, a seguir, tornou-se preocupação nacional. A Comissão Nacional de Saúde da China formulou diretrizes sobre “detecção precoce, diagnóstico precoce e quarentena precoce para prevenção e controle da pneumonia viral de causa desconhecida”. E, pouco depois, o Centro Chinês de Controle e Prevenção de Doenças e a Academia Chinesa de Ciências Médicas receberam o primeiro lote de amostras de materiais para exame, tirados de quatro pessoas do grupo de doentes de Wuhan e iniciaram o processo de identificação do patógeno.

No dia 3 de janeiro, quatro instituições de Wuhan iniciaram testes laboratoriais paralelos das amostras e dois dias depois o resultado desses exames foi divulgado e descartou patógenos respiratórios conhecidos: influenza, influenza aviária, adenovírus, coronavírus da SARS, e coronavírus da MERS, Síndrome Respiratória do Oriente Médio como causa da doença. A conclusão final saiu mais dois dias depois, a 8 de janeiro, quando uma equipe especial designada pela Comissão Nacional de Saúde da China afirmou que o provável causador da doença que surgia era, como o da SARS, um coronavírus, mas de novo tipo. E, no dia seguinte, essa informação foi divulgada. Ao receber a informação, a Organização Mundial de Saúde, a colocou em seu site e a aplaudiu: a identificação de um novo coronavírus em um período tão curto de tempo era, disse a OMS, “uma conquista notável”. E, no dia 12 de janeiro, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças da China, a Academia de Ciências Médicas da China e o Instituto de Virologia de Wuhan, na condição de agências designadas do Centro Nacional de Saúde da China, enviaram à OMS a sequência de genes do genoma completo do novo coronavírus. Finalmente, entre os dias 18 e 19 de janeiro, uma equipe nacional de especialistas em medicina e controle de doenças reunida em Wuhan pela Comissão Nacional de Saúde da China, após exames, debates e deliberação, concluiu, no meio da noite do dia 19, que a transmissão do vírus entre humanos era a causa de sua rápida disseminação.

2. O fechamento de Wuhan e de Hubei

Wuhan é uma grande cidade, tem cerca de 10 milhões de habitantes. É a capital de Hubei, uma das 22 províncias da China, que tem perto de 60 milhões de habitantes. Fechar a cidade e a província, para entrada e saída apenas de pessoas autorizadas, para evitar o espalhamento do vírus pelo país de pessoa para pessoa, como anunciado pelo presidente Xi Jinping a 22 de janeiro, foi a decisão mais drástica das inúmeras que o governo chinês tomou. E desempenhou papel crítico na vitória do povo chinês contra o vírus.

Foi necessário garantir o suprimento de bens e serviços essenciais para os milhões de moradores da cidade e da província e, especialmente na capital, onde a determinação oficial era “não sair de casa”. Alimentos e outras necessidades domésticas tiveram que ser organizados. Wuhan tem 2,4 milhões de domicílios: foi preciso montar um esquema de levar alimentos – grãos, vegetais, carne, ovos e leite até as suas moradias, diz o livro branco chinês. O governo central chinês, os governos locais, 500 empresas, todas as associações comunitárias, todas as 4,6 milhões de organizações de base do Partido Comunista da China, todos os seus militantes foram chamados a participar, diz o livro branco. “De 27 de janeiro a 19 de março, 928.800 toneladas de materiais de prevenção e controle de epidemias e necessidades diárias foram transportadas de todo o país para Hubei via ferrovia, rodovia, hidrovia, aviação civil e serviços postais expressos. Também foram embarcados produtos a granel, como carvão térmico e combustível, totalizando 1,49 milhão de toneladas”,  diz o documento chinês.  “A partir do fechamento, para Wuhan e Hubei também foram despachadas 346 equipes médicas compostas por 42.600  médicos e 965 trabalhadores de saúde pública de todo o país e das forças armadas”.  Diz ainda o documento num trecho que deveria ser lido pelo presidente Jair Bolsonaro, para tratar de sua mania de levar oficiais das Forças Armadas para Brasília: “O Exército de Libertação do Povo (PLA) enviou mais de 4.000 médicos para Hubei para trabalhar no controle de epidemias. (…) A Força Aérea do PLA despachou aeronaves para transportar suprimentos médicos de emergência. As equipes médicas foram formadas dentro de duas horas após o recebimento do pedido e chegaram aos seus destinos dentro de 24 horas, carregando um estoque de sete dias de materiais de proteção. Na chegada, eles começaram a tratar os pacientes imediatamente”.

Nem tudo deu certo, o documento oficial admite isso, num trecho no qual destaca o papel do Partido  Comunista da China. O partido e suas organizações de base serviram como núcleos de combate à epidemia, diz o trecho do documento: “Com a epidemia colocando as vidas e segurança humanas em perigo os membros do partido atuaram como a vanguarda: mais de 39 milhões de membros do partido combateram o vírus na linha de frente e cerca de 400 defenderam a vida de outros com o sacrifício de suas próprias vidas, E, em seguida, vem a admissão de erros: “As lideranças da Cidade de Wuhan e da Província de Hubei foram trocadas, com alguns dirigentes punidos por irresponsabilidade e não cumprimento do dever”. O documento não entra em detalhes mas, por exemplo, sabe-se que o prefeito de Wuhan e o secretário geral do partido na cidade foram trocados. Um amigo ao qual o autor deste texto mostrou o documento chinês e falou dos afastamentos desses dois líderes de Wuhan foi fez o seguinte comentário: “Não seria o caso de a oposição brasileira pedir o afastamento do presidente Jair Bolsonaro por seu comportamento grotesco na condução de seu governo no combate a esta epidemia que, a essa altura já matou mais de 90 mil brasileiros?” 

É uma boa idéia. 

Lutando contra a Covid-19: a China em ação, documento do Escritório de Informação do Conselho de Estado da República Popular da China,  junho de 2020

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