Brasil

A covid-19, o Estado e a pobreza

O isolamento para reduzir a mortandade provocada pelo coronavírus levou à paralisação das economias e à necessidade de os governos intervirem para, em primeiro lugar, salvar os mais pobres. Como, nesse mundo tão desigual em que vivemos? Uma resposta em três capítulos. O primeiro deles, em três partes

CAPÍTULO 1 – Brasil, Rio de Janeiro, Rocinha.

Parte 1 – Um microcosmo do problema: um lugar no qual até os ricos são, de certo modo, pobres também.

É segunda-feira, 8 de junho, dia de pagamento das prestações da chamada  “ajuda emergencial do governo federal aos trabalhadores informais”, um benefício mensal, em três parcelas de 600 reais cada, que já beneficia mais de 50 milhões de pessoas. Estamos no Rio de Janeiro, diante de uma agência da Caixa Econômica Federal (CEF), pouco depois do túnel Zuzu Angel, na margem esquerda da pista dupla que vem da Lagoa, Jardim Botânico, Gávea, Ipanema, Leblon as áreas mais ricas da cidade. A CEF é o banco estatal que viabilizou em tempo recorde uma poupança digital para boa parte dessa multidão e que incluiu, inclusive, a categoria dos informais não “bancarizados”, gente sem cartão de crédito, sem conta em banco, que estava praticamente desligada do mundo informatizado e financeirizado de hoje.

São onze horas. A fila agora já está pequena e dois seguranças que a administram a dividiram em duas. Uma, a de pessoas que estão ali para sacar a ajuda em espécie: em dinheiro, geralmente em seis notas de 100 reais. São quatro caixas automáticos, máquinas instaladas na área de recepção, já dentro do prédio da agência. A outra fila é daqueles que têm problemas de documentação a resolver para começar a receber a ajuda e precisam da atenção de um funcionário interno, nos caixas de atendimento, após passar a porta giratória de segurança da agência.

Essa segunda fila anda mais lentamente e as pessoas têm tempo para conversar com o repórter. Uma tem filho pequeno, que cria sozinha, ficou desempregada há dois meses e acha que tem direito à ajuda. Outra era depiladora num salão que fechou e está atendendo a domicílio; sua renda mensal, agora, é bem mais baixa. Outro era entregador de pizzas num restaurante que reduziu seu pessoal e fez acordo para suspensão do contrato de trabalho, redução do salário e o restante pago em parte pela empresa e em parte pelo governo. Isso consta de outro plano oficial para ajudar os pequenos e médios empresários a manter seus empreendimentos vivos durante a epidemia. Outro na fila tem uma história parecida: era auxiliar de limpeza numa creche e também fez acordo de suspensão do contrato de trabalho com os proprietários da empresa. Está ali para receber a parte a ser paga pelo governo federal. Tem 37 anos, mora com mulher e filha adolescente num quarto-sala-cozinha-e-banheiro pelo qual paga 750 reais mensais.

Da fila diante da agência da CEF pegamos a passarela que passa por cima da avenida, para chegar à Rocinha, o local de moradia de todos os entrevistados. A passarela é uma espécie de monumento. Foi projetada por Oscar Niemeyer, o mais famoso arquiteto brasileiro, e inaugurada em 2010, dentro do chamado PAC das Favelas, inserido em outra iniciativa  (o Plano de Aceleração do Crescimento) de estímulos à economia, do final do segundo governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dedicada à urbanização de áreas pobres das cidades. Da passarela se vê, ao sul, a cerca de meio quilômetro, o mar. E, diante do mar, a enorme torre redonda envidraçada do Hotel Nacional, construída no início da década de 1970, numa das etapas dos governos da ditadura militar dos anos 1964-1985, a do chamado “milagre econômico brasileiro”, quando a economia do País cresceu por seis anos seguidos a uma média de 7% ao ano. 

A situação atual é completamente diferente: as estimativas para o crescimento deste ano, feitas pela OCDE, grupo de estudos de economia dos países europeus, é de que o PIB do Brasil terá uma queda de entre 7% e 8%. E, segundo os últimos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população brasileira ocupada – pessoas com mais de 14 anos que estejam trabalhando de forma remunerada – que já havia tido uma queda razoável nos cinco anos de 2012 a 2017, de 57,1% para 53,3% da população economicamente ativa, mas que vinha se recuperando lentamente, chegando a 55,5% em outubro do ano passado, entrou em queda de novo, inicialmente para 54,3% em fevereiro deste ano e, depois, mergulhou fundo, possivelmente em função das quarentenas decretadas para conter a epidemia do coronavírus SARS-CoV-2, chegando, em maio, a 48,5%. Ou seja, mais da metade do País em idade de trabalhar está sem trabalho!

Da passarela, olhando para o norte e para o alto, se vê como que uma gigantesca teia de tons predominante cinza e esbranquiçados, de casas e vielas pregadas num trecho da cadeia de morros do litoral, que se erguem como o Dois Irmãos, a perto de 450 metros do nível do mar. É a favela da Rocinha. São, pelo último levantamento oficial, em números redondos, cerca de 100 mil moradores; 40 mil imóveis – 90% dos quais, moradias. Indo a pé, de uma das entradas por baixo, pela praça do Boiadeiro, o grande centro comercial do lugar, até a entrada principal no alto, ao norte, pela viela chamada de rua Um, é preciso subir 150 metros, um esforço como o de ir, pelas escadas, do térreo ao último pavimento de um prédio de 50 andares.

Na entrada baixa da Rocinha, pela rua do Boiadeiro, e a praça de mesmo nome, nas vizinhanças da passarela, ficam agências dos grandes bancos como a CEF, Banco do Brasil (BB), Bradesco, Itau-Unibanco e um camelódromo coberto, bem sortido e organizado, com uns 150 metros de extensão em duas vias de bancas de vendedores. A impressão que se tem é a de uma pequena cidade agitada e pujante. Uma das características essenciais da Rocinha, no entanto, se apresenta ao visitante pouco adiante, numa das saídas da praça do Boiadeiro, em direção ao alto, através do chamado Beco 11.

É uma viela estreita cujo trânsito uma pessoa comum, de cerca de 1 metro e 70 de altura, pode interromper abrindo os braços. Pouco acima de sua cabeça passa um emaranhado de fios das redes elétrica e de comunicação. E as construções dos dois lados da viela têm sempre mais de três pisos, as vezes com quatro ou cinco e como que fecham o caminho do ar e, especialmente, da luz do Sol. A falta de luz solar marca a Rocinha com uma de suas piores características. Muitas de suas áreas são assim, fechadas, insalubres. A incidência da tuberculose, por exemplo, é um dos seus problemas graves, com uma média de casos em anos recentes de cerca de 10 vezes a da média nacional.

A pobreza é visível nas moradias. Pesquisadores de um levantamento oficial, de 2009, para o projeto do PAC no local, ao longo de um ano visitaram uma por uma das cerca de 39 mil moradias do bairro e em cerca de 33 mil delas obtiveram informações (em aproximadamente 6 mil os donos se recusaram a participar do inquérito). Suas conclusões mais gerais: a maioria dos moradores, 60%, veio para o local a partir da década de 1980; as residências são de alvenaria, 90% delas; 37% são apartamentos; casas, isoladas ou geminadas, são 56% e de tipo cortiço são 1%. Residências com um ou dois cômodos são 15%, as com três ou quatro são 57% e as com cinco ou seis 23%. Domicílios com apenas um dormitório são 68%, com dois, 24%. Dos imóveis, 63% pertenciam aos moradores, mas os documentos de posse em 37% dos casos eram os fornecidos pela associação de moradores.

Este censo localizou também os que se poderia imaginar serem os ricos do lugar: 6 mil empresários. Mas 90% deles tocam negócios informais e mais de 50% ou são analfabetos (5%) ou têm curso primário incompleto (48%).

O Beco 11 é uma “rua comercial” da Rocinha, como várias outras. Nelas desembocam outras vielas, geralmente mais estreitas, de moradias, as vezes com cem residências. E nos seus dois lados há salas para pequenos negócios de vendas e outros serviços: bar, jogos eletrônicos, produtos alimentícios, açougue, padaria, limpeza, barbearia, manicure, consertos, costura, pintura, construção civil. Os donos dos negócios pagam aluguéis de 800 a mil reais mensais por salas de não mais de 15 metros quadrados nessas vielas.

O repórter conversou com doze desses empresários nos seis dias de suas andanças pela Rocinha, entre 4 e 9 de junho. Desses doze, apenas dois – com a ajuda de adolescentes da família, espertos em informática – conseguiram o auxílio das três parcelas de 600 reais oferecidas pelo governo. Um foi o paraibano Manuel Assis, que tem um bar no Beco 11 e se cadastrou como microempreendedor individual. O outro foi Ademir, 65 anos, ex-jogador de futebol, nascido e criado na Rocinha, cujos avós tiveram um pedaço de terra na região, na época em que a área era um conjunto de roças e que se cadastrou também como microempreendedor individual. Ademir vende flores numa espécie de pequeno pátio na entrada da rua Um.

Dois outros também tentaram mas não conseguiram. Um deles foi o Walace, vendedor ambulante na entrada do Beco do Beto, um das vielas que desce da rua Um para a parte baixa da Rocinha. Walace acabou de completar 18 anos e “o bagulho da estrada da Gávea”, como ele diz, referindo-se a um posto oficial de emissão de documentos da região, não estava aberto e ele não conseguiu obter o cadastro de pessoa física (CPF). O repórter quer saber dele se conseguiria chegar à parte baixa da Rocinha não pela via principal, a rua Um, mas pelos becos, como o do Beto, onde ele mora, um desses locais que têm cerca de 100 moradias. Ele diz que sim, que mostraria como. Mas não agora, porque precisa continuar vendendo para acumular alguns trocados.

Sob o argumento indiscutível de que os negócios nos últimos dias foram muito ruins, os outros pequenos empresários ouvidos conseguiram descontos no aluguel, de até 50%. Apenas um, dos doze, não pediu o abono e não reclamou do aluguel. Mas, também, nem precisava: é um ex-funcionário da Polícia Federal, aposentado, dono de 10 imóveis na Rocinha, os quais aluga, e que considera a favela um lugar muito bom para viver, a despeito dos preconceitos.


A título de introdução

A Rocinha por cima e por dentro

Se o leitor quer ver a Rocinha por cima e no seu contexto urbano, observe os detalhes desta imagem. No primeiro plano, depois da vegetação que cobre os morros à esquerda, ela mostra, à direita, o aglomerado de casas da favela que parece ainda crescer para o alto na região de vegetação próxima da rocha pelada do morro Dois Irmãos.

No centro da foto, à esquerda, está a Lagoa Rodrigo de Freitas em torno da qual estão bairros ricos da cidade, como Jardim Botânico, Gávea, Leblon e Ipanema. Na extrema direita desse aglomerado está a praia de Ipanema e seu ponto terminal, no Arpoador. O morro que se destaca dentro desse conjunto de prédios é o do Pavão-Pavãozinho e do aglomerado de pequenas favelas do Cantagalo-Pavão-Pavãozinho (Cantagalo é o nome do corte feito no morro em 1939 para ligar Ipanema a Copacabana).

Agora, para conhecer a Rocinha por dentro, uma forma tranquila e rápida de fazer a viagem é pela internet. Basta acompanhar o documentário do repórter Oslaim Brito, realizado no dia da invasão do bairro no final de 2011 por forças policiais do Rio de Janeiro e do governo federal.

O vídeo tem 6 minutos e 56 segundos e mostra detalhes de aspectos importantes da favela, como as suas vielas. Policiais se comprimem nas paredes de becos para abrir caminho e permitir a passagem de morador. Também são vistas as instalações das redes para levar eletricidade e água às casas empilhadas nos becos; elas são verdadeiros labirintos de fios e de finos canos de água.

Notícias relacionadas