Brasil

A covid-19, o Estado e a pobreza

O isolamento para reduzir a mortandade provocada pelo coronavírus levou à paralisação das economias e à necessidade de os governos intervirem para, em primeiro lugar, salvar os mais pobres. Como, nesse mundo tão desigual em que vivemos? Uma resposta em três capítulos. O Capítulo 1 tem três partes. Esta é a segunda:

CAPÍTULO 1 – Brasil, Rio de Janeiro, Rocinha.

Parte 2 – O que une os pobres a seus vizinhos mais rico

A Rocinha cresceu nas últimas décadas do século passado. Hoje tem cerca de 100 mil moradores; eram perto de 35 mil em 1980; e de 70 mil em 2005. Uma comparação que se pode fazer é com outra região famosa da chamada Zona Sul do Rio de Janeiro, Copacabana. A conhecida “princesinha do mar” tem 3,4 moradores por metro quadrado, enquanto a Rocinha tem quase o mesmo, 3,3. Mas Copacabana é um bairro antigo, aberto para a região central do Rio com o Túnel Velho, no final do século 19 e com uma população há muito estacionada em cerca de 130 mil moradores. Tem fornecimento de água tratada, esgotamento sanitário. Tem espaço: prédios altos, amplas ruas, praças, uma enorme avenida que dá para o mar. E luz, muita luz. E, em termos de renda dos moradores, é um bairro da chamada classe média.

A Rocinha é um bairro de gente pobre como a de outros morros do Rio que, basicamente, desempenham funções modestas em empregos comerciais e em residências nos bairros mais ricos, alguns ao norte, entre Rocinha e Copacabana – Ipanema, Leblon, Jardim Botânico, Gávea, situados em torno da Lagoa Rodrigo de Freitas. E alguns ao sul da Rocinha, como São Conrado e Barra da Tijuca. A ligação física dos bairros ricos com a área da Rocinha vem do início do século 20. A mais antiga é a avenida Niemeyer. Projetada no final do século anterior, em 1881, ainda na era do transporte ferroviário, faria parte da via-férrea que uniria a Zona Sul do Rio a Angra dos Reis, situada a aproximadamente duzentos quilômetros ao sul, pelo litoral. Obras para a formação da pista na encosta do morro Dois Irmãos com o mar, foram iniciadas mas logo abandonadas. Após a retomada dos trabalhos, em 1916 a Niemeyer foi inaugurada já num novo tempo: o do transporte rodoviário, do automóvel. Entre 1933 e 1954, ligada à autoestrada Lagoa-Barra, foi parte do circuito automobilístico do Grande Prêmio do Rio de Janeiro, disputado por carros esportivos conhecidos na época como “baratinhas”. A Lagoa-Barra sai da Gávea sobe, pela cadeia montanhosa e verde, que começa no Cristo Redentor, pela encosta do último dos morros antes do morro Dois Irmãos. E no começo da descida para o lado da Gávea, passa pela atual entrada alta da Rocinha, a rua Um.

A pavimentação da pista da Lagoa-Barra em 1934 facilitou o trânsito de carros e ônibus e favoreceu a ampliação da Rocinha a partir de seu núcleo inicial, que era, ao que se sabe, formado por cultivadores de roças e criadores de gado na parte mais baixa, ligada a São Conrado. E o que abre mais amplamente as idas e vindas entre os bairros ricos e a Rocinha para o trabalho do povo pobre é a pista dupla pelo túnel inaugurado em 1971, batizado então como Dois Irmãos, e pouco tempo depois, como Zuzu Angel, em homenagem a uma lutadora contra os crimes da ditadura militar.

A propriedade legal dos terrenos de todas as áreas da Zona Sul reflete a evolução conservadora do País que conquistou a independência política, em 1822, a abolição da escravatura em 1888 e a República em 1889, basicamente com acertos negociados. Não houve, como nos EUA, uma guerra de independência contra os colonizadores ingleses nem uma guerra civil do Norte contra o Sul para acabar com o trabalho escravo das populações negras trazidas da África.

Leblon, vem do nome do dono de amplas áreas na região, no final do século XIX, um francês, conhecido como Charles Le Blonde, o loiro (dai o Leblon). E nas suas terras existia um quilombo de negros fugidos, ao que consta, protegido por um português simpatizante da princesa Isabel. Ipanema vem do nome de um conde do Império. E, no loteamento dessas áreas, a partir das primeiras décadas do século 20, os documentos básicos eram os do Império. As terras privilegiadas desses posseiros imperiais, como as da Zona Sul do Rio, foram aproveitadas pelos empreendedores imobiliários considerados modernos, que as lotearam e formaram, a partir de Copacabana, os bairros de classe média alta nos quais os pobres dos morros acharam emprego. Pelo tipo de trabalho dos moradores da Rocinha se nota essa relação. No levantamento já citado nesta série, realizado em 2009, em que todos os domicílios do bairro foram visitados, os trabalhadores da Rocinha se declararam, segundo sua situação ocupacional: 

  • a maioria, 54,4%, ou empregados com carteira assinada (30,9%) ou estudantes (23,5%);
  • autônomos, fazendo bicos, 7,8%;
  • donas de casa, 7,1%;
  • desempregados, 7,1%;
  • empregados sem carteira assinada, 6,0%.

A lista de ocupações do levantamento tem cerca de 150 profissões. Dos 30 mil entrevistados que prestaram informações, as ocupações com mais de mil indicações foram: doméstica (3 mil), garçom ou garçonete (1,8 mil), vendedor (1,7 mil), auxiliar em geral (1,5 mil), diarista (1,3 mil), cozinheira (1,2 mil), pedreiro (1,1 mil), porteiro (1 mil). Na lista se encontravam também, em menor proporção, na casa de umas poucas dezenas, os que se definiram como militares, educadores, promotores, farmacêuticos, advogados, dentistas e outras profissões típicas de classe média.

Além do grave problema da falta de energia elétrica, do fato de sua estrutura vertical de vielas estreitas ser insalubre, a Rocinha tem também problemas graves com o saneamento básico. O abastecimento de água tratada não é ruim. Do levantamento já citado se vê que cerca de 92% dos domicílios tinham ligação, direta ou indireta, de água fornecida pela Cedae, a estatal do setor. Apenas 5% eram ligações irregulares e 3% dos domicílios se abasteciam em poços e reservatórios. A água vem do Guandu, o maior dos reservatórios do Rio, e as estações elevatórias foram reformadas dez anos atrás com o PAC das Favelas. A coleta de lixo pela prefeitura é precária. Pelo levantamento citado, atendia diretamente a apenas 6,8% das residências. A grande maioria, 81%, despejava o lixo em caçambas da prefeitura. E 5,5% pagavam a garis contratados por áreas da comunidade para coleta na residência e disposição dos sacos de lixo nas caçambas da prefeitura. Numa de suas passagens pela rua Um, acompanhando um gari chamado Tiago, o repórter ouviu um morador dizer que, pelos serviços prestados à comunidade, ele deveria ganhar “mais que o presidente da República”.

A situação do esgotamento sanitário também é ruim. O repórter conversou com um técnico da Cedae, que tem uma instalação no alto da Rocinha, e ele disse que estão em andamento obras para canalizar 37 valas negras que descem da parte alta do morro para a praça conhecida como do Valão. Do total dos domicílios, 86,1% são ligados à rede geral de coleta de esgoto, mas 7,3% faziam os despejos em vala a céu aberto ou na rede de coleta de águas pluviais e o restante, em fossas. O problema é que, embora as residências recebam água e o esgoto seja separado, como é a regra, em duas redes, a da água servida – que sai das pias, da lavagem de roupa, do banho – e a da água sanitária – que sai dos vasos sanitários, carregando urina e fezes –, as duas não são tratadas separadamente. O PAC das Favelas tinha em seu planejamento a implantação do tratamento das águas do esgotamento sanitário, mas isso não aconteceu, devido à complexidade da operação, que exige espaço para as chamadas caixas de contenção que dissipam a energia acumuladas nas quedas dessa água mais poluída e mais pesada. Atualmente, a água sanitária acabam se juntando à água servida e desce das encostas na parte alta da Rocinha e vai se afunilando naturalmente para a área conhecida como Valão.

O repórter chegou pela primeira vez ao Valão subindo a partir do Beco 11. O barulho das águas, misturadas, a servida e a vinda do esgotamento dos vasos sanitários, parece o de uma pequena cachoeira. E a corrente de águas que passam por um canal, coberto com grossas grades de ferro na sua superfície, e que se vê e não exalam um odor ruim, descem do Valão pelo meio da rua conhecida exatamente como a do Canal. O repórter seguiu por cima desse canal por cerca de 600 metros até o ponto em que ele desaparece e a rua é interrompida por uma plataforma mais alta, em sentido transversal, que é exatamente a entrada da Rocinha inaugurada em 2010.

Para onde vão as águas do esgotamento sanitário da Rocinha, não tratadas, mas que correm sem mau cheiro – e sem muito escândalo, pelo menos neste momento – no fundo desse canal, em última instância, a céu aberto? E nas ocasiões das enchentes, como as de fevereiro do ano passado, por exemplo, que no Rio provocaram grandes inundações e problemas? O repórter perguntou a dois negociantes dessa espécie de beco formado pela interrupção da rua do Canal, o sapateiro Genival e o peixeiro Reginaldo. Genival tem uma pequena oficina de consertos e mostra o teto da instalação para dizer que nessas ocasiões a vazão pelo canal é insuficiente e a água transborda, enche a rua e ele tem que abandonar o local. Reginaldo, que trabalha com uma banca móvel na rua, não vai trabalhar porque esse trecho da rua vira um lago.

O canal com o esgotamento sanitário da Rocinha vai ser visto depois das pistas duplas que saem do túnel Zuzu Angel. É uma vala larga e funda, a céu aberto, que sai da frente da Rocinha em direção ao mar, segue à esquerda dos cerca de 600 metros da avenida Aquarela do Brasil, passa ao lado do Hotel Nacional e desaparece sob o asfalto da pista que vai da Tijuca para o Leblon pela avenida Niemeyer. Um túnel passa por baixo da avenida e leva a carga de esgoto. Possivelmente por um emissário submarino, na direção do mar, bem além da praia de São Conrado na qual não se vê sinal dela.

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