Brasil

A ciência, as crenças e a pandemia do coronavírus

Muita gente acredita que a doença batizada de Covid-19, causada por uma das espécies de vírus da família coronavírus e que, no fechamento deste texto, a 15 de abril, já tinha infectado perto de 2 milhões de pessoas e se superava 135 mil mortos, é um castigo de Deus para punir os desatinos cometidos por sua principal criatura, o ser humano.

Armando Sartori e Raimundo Rodrigues Pereira

Os vírus são seres que habitam a Terra, como os humanos, talvez há mais tempo. Há um debate para saber se eles são seres vivos como nós, outros animais e as plantas, que têm capacidade de reprodução. Eles não têm essa capacidade: são parasitas, precisam se internar em corpos como os nossos para se reproduzir com a ajuda dos mecanismos internos de reprodução de seres vivos. 

E são minúsculos, difíceis de ver a olho nu, mesmo os maiores, como o da varíolaque mede 300 nanômetros. Para serem vistos não bastaram os microscópios comuns, criados no final do século XVI. O primeiro vírus visualizado, em 1931, foi o que ataca a folha do tabaco e prejudica a indústria do fumo. É o mosaico tobaco virus, visto graças ao microscópio eletrônico, que é da terceira década do século passado.

O coronavírus tem forma esférica e cerca de 90 nanômetros de diâmetro. Para ter uma ideia do que é isso, pegue uma régua comum, de 30 centímetros, cada um dividido em 10 milímetros. Imagine o milímetro, a menor divisão de sua régua, dividido em mil pedaços e você tem o nanômetro. Os 90 nanômetros de circunferência do coronavírus não chegam a uma [décimma???] centésima parte do milímetro.

Os vírus têm causado danos enormes à espécie humana. Certos estudos sugerem que o vírus responsável pela varíola, o orthopoxivirus variolae, matou entre 300 milhões a 500 milhões de pessoas na Europa e na Ásia nos 100 anos do século iniciado em 1901. E pode ter matado boa parte da população indígena original das Américas, estimada em 10 milhões de pessoas, em poucas décadas após a chegada dos europeus e o saque do ouro da região por eles no começo do século XVI.

Não é preciso ser religioso como os cristãos e acreditar que o mundo – terra, água, estrelas, espaço, tempo, homem e mulher – tudo foi feito como está na Bíblia, do nada, em seis dias por um deus todo poderoso, para perceber os descalabros nas sociedades que nós, humanos, criamos, independentemente dos causados pelo vírus da covid 19. Vejam um deles. Estima-se que a Terra tenha mais de 7,5 bilhões de pessoas. Uma fração mínima – um milionésimo dessa turma, sete mil pessoas, os do andar de cima como diz o colega jornalista Élio Gáspari – têm fortunas de mais de 1 bilhão de dólares e pode viver gastando alguns milhares desses dólares por dia, de renda. Ou seja, sem reduzir o seu patrimônio, apenas com o rendimento das chamadas aplicações financeiras no overnight, as mais seguras: de curtíssimo prazo – o cidadão põe a grana no banco num dia e retira acrescida dos juros no dia seguinte.

Um parenteses, para fazer as contas. Suponha que o cidadão aplique no overnight do Banco Central brasileiro. Nosso BC paga 3,25% ao ano, ainda um dos juros de overnight mais altos do mundo, apesar das últimas reduções dessa taxa. Um bilhão de dólares, por um ano a 3,25%, são 32,5 milhões de dólares. Dividindo por 12 meses, seriam cerca de 2,7 milhões de dólares por mês. E, dividindo uma vez mais, por 30 dias, são 9 mil dólares por dia (Nesta conta, se leva em conta que o bilionário e seus assessores financeiros sabem como ancorar essas aplicações, no Brasil, ao dólar; ou seja, fazer com que a moeda brasileira, o real, com seus problemas de moeda fraca, entre e saia das operações mas não prejudique a renda final, obtida pelo bilionário, na moeda forte.)

Por outro lado, contando todos “os que trabalham por conta própria, os empregadores sem registro de pessoa jurídica, os desempregados, os desalentados, os subutilizados”, como fez a colega jornalista Míriam Leitão – esses, os do “andar de baixo”, que podemos chamar de pobres, seriam 64,8 milhões de brasileiros. Muitos vivem, como se diz, da mão para a boca. Moram amontados em barracos precários e, muitas vezes, sua renda vem de revender bugigangas baratas, nas ruas, para ganhar, no agora, um dinheirinho para o que comer logo mais. Para estes, por exemplo, cumprir a recomendação de ficar isolado em casa, para ajudar num esforço geral para a contenção da epidemia do coronavírus, é quase como aceitar uma sentença de morte.

Para o cidadão comum, que é pobre e frequentemente não tem grande conhecimento científico, a pobreza e a ignorância, cada uma no seu campo, são problemas hoje agravados pela epidemia do coronavírus. A pobreza só se resolve com uma grande mobilização social. Este é um tema de suma importância, depois que a pandemia expôs com mais clareza os descalabros decorrentes das enormes desigualdades econômicas de hoje, no Brasil e no mundo dominado pelo capital financeiro. A série atual não vai tratar do importantíssimo trabalho de mobilizar o povo para a tarefa política de mudar as estruturas sociais que, neste sistema, de um modo geral, mantêm tantas desigualdades. Nesta série, trataremos da ciência e de crenças antigas que dificultam a compreensão mais objetiva da pandemia que nos atinge e, do que a ciência está fazendo para ajudar a superá-la.  Neste primeiro capítulo, trataremos especificamente do fracasso da Igreja Católica na tentativa de enquadrar o grupo dos que são considerados os primeiros grandes cientistas modernos, críticos da visão religiosa do ordenamento dos corpos celestes.

Ao contrário da tecnologia, que é muito antiga, e basicamente surge com a nossa espécie, a ciência  é uma criação nova, cujos passos básicos foram dados, no Ocidente, no início do século XVII. 

Nessa época, a indústria praticamente não existia. A produção de bens para o comércio vinha basicamente do extrativismo, da agricultura e do artesanato, tocada por camponeses e artesãos com suas forjas, arados, foices, teares e outros instrumentos de produção domésticos ou de pequena escala. A ordem política em boa parte da Europa era baseada na teoria do Direito Divino dos Reis, criado e operado pela alta hierarquia da Igreja Católica com sede em Roma. Ela extraía figuras de famílias de grandes latifundiários e os nomeava como reis, para comandar nações resultantes de guerras camponesas. E com esse objetivo lhes transferia parte dos poderes absolutos que teria recebido dos céus.

A reação da cúpula católica aos trabalhos dos que são considerados entre os primeiros grandes cientistas modernos – o polonês Nicolau Copérnico (1473-1543), o alemão Johannes Kepler (1571-1630) e os italianos Giordano Bruno (1548-1640) e Galileu Galilei (1564-1642) – tem como centro aparente a discussão para se saber se a Terra era ou não o centro do Universo. Essa tese, do geocentrismo, de fato era muito mais antiga, era do grego Ptolomeu, grande astrônomo da Antiguidade, anterior à chamada Idade Média, autor de uma obra com observações do céu, a olho nu, em treze volumes e que  viveu entre os anos 100 e 170 de nossa era.

Sua tese prevaleceu por 14 séculos. Era um avanço, em relação às crenças da época, de que a Terra era plana. Ptolomeu dizia que ela era esférica. E, mais, era o centro do Universo: os outros astros se movimentavam em torno dela. E em círculos e esferas ideais, que enquadravam o Universo de acordo com os ensinamentos dos mestres gregos Platão (428-328 aC) e Aristóteles (384-322 aC) sobre as figuras geométricas perfeitas, os círculos e as esferas.

A Igreja Católica se voltou contra os pioneiros da ciência que atacavam o geocentrismo e defendiam o heliocentrismo, a tese de que o Sol era uma estrela e o centro de um sistema planetário do qual a própria Terra era parte. Ir contra o pensamento científico não era uma posição nova ao longo da história dessa instituição. Santo Agostinho (354-430) criticou a “vã curiosidade que se esconde sob o nome de conhecimento e ciência”. E, em oposição à forma esférica da Terra, que incluía a aceitação de pólos opostos, um dos quais desconhcido, apresentou a hipótese da forma plana, como um disco, inspirada no Velho Testamento. Mais ou menos na mesma época, São João Crisóstomo (349-407) afirmou: “Devemos receber com grande modéstia e gratidão de coração as palavras que nos são ditas, e não querer superar nossa própria natureza, nem perscrutar o que está acima de nós”. Séculos depois deles, foi a vez de são Bernadro de Cister (1091-1153): “Alguns querem saber sem outro propósito que não o saber: é esta uma curiosidade vergonhosa. Alguns querem saber para que se saiba que eles são sábios: é uma vaidad vergonhosa”.

Os ataques a Copérnico, Kepler, Bruno e Galileu não ocorreram por causa da divergência quanto ao geocentrismo, ao que tudo indica: ela parece ter sido um pretexto. Em 1632, o papado proibiu os livros de Galileu e, um ano depois, o obrigou a dizer em praça pública que renegava suas ideias a respeito do tema em disputa. E, em fevereiro de 1640, queimou Bruno numa praça de Roma, aproveitando-se do fato de que ele não só pregava que a Terra não era o centro do mundo, como também dizia que Cristo não era um ser divino e ainda negava a virgindade de sua mãe, Maria.

Para entender essas posições mais radicais da Igreja do século XVII é preciso voltar ao século anterior. O século XVI é um período de tensões religiosas, de confrontos e da expansão colonialista dos países europeus para o chamado Novo Mundo. Nele há três grandes movimentos. O primeiro é o da Reforma Protestante, iniciado em 1515 quando o padre alemão Martinho Lutero fixou suas 95 teses na porta da capela do castelo de Wittenberg. No fundo, as teses eram voltadas contra a corrupção na cúpula da Igreja Romana. Na época, o papado criara o purgatório, uma espécie de hospedagem de quarentena para os muito ricos: eles não iriam para o Inferno, a despeito de suas vidas contaminadas pelos pecados, desde que pagassem grandes contribuições à alta hierarquia católica para a compra de perdão, as chamadas indulgências. Com isso, ao morrer, seriam encaminhados para o purgatório, a estação de purga de seus males, de onde a força divina, por recomendação dos padres, bispos e do Papa, os repescaria para o céu.

O luteranismo, além disso, é um ataque ao monopólio da interpretação dos textos sagrados do cristianismo pelos padres e os superiores que os ordenam: considera o exame da Bíblia aberto a todos os cristãos e abre também o campo de profissionais religiosos para o surto dos pastores protestantes.

A hierarquia da Igreja católica reagiu a esse movimento com a Contra Reforma. Para consolidar suas doutrinas e punir os infiéis, o papado dá novo formato e atribuições ao seu antigo Tribunal do Santo Ofício. Ampliou a definição das heresias que ele já julgava. E incluiu nelas como merecedoras de punição as teses que contradissessem as da criação do mundo de acordo com suas interpretações da Bíblia.

A ciência explica a criação do Universo e da vida de uma maneira muito ampla e complexa. A ciência tem um método próprio, que vai muito além do chamado senso comum, quase que espontâneo, de todos nós. E que nem é o da fé, revelada pela Igreja com seu acesso a Deus.

Como se juntam a ciência, o senso comum e a fé? Depende. A Terra é esférica, muito bem. Hoje isso se ensina nas escolas e as recentes viagens de astronautas produziram e inspiraram documentários e filmes de ficção com a Terra – azul, esférica e bela – solta no espaço. Mas, mesmo hoje, o cidadão comum, de uma forma ou de outra, constrói teorias ou acredita nas que lhe são fornecidas prontas, a partir do seu dia a dia e de seu conhecimento acumulado. E a experiência diária dele é de que a Terra está parada. O Sol é que se move, Ele aparece no final das madrugadas, como que gira em torno da Terra ao longo do dia, desaparece à noite e repete o ciclo no dia seguinte. E a experiência prática de andar sobre a superfície terrestre, da imensa maioria das pessoas, é de que ela, além das subidas e descidas de morros e montanhas, é plana, como o nível das águas.

A conclusão de que a Terra tem formato esférico e gira em torno do Sol é, talvez, a primeira grande criação da ciência. E, mesmo para as pessoas letradas de hoje, não é fácil entender porque um brasileiro e um japonês, por exemplo, ao mesmo tempo, em lados opostos do globo terrestre, podem estar ambos em pé, como que amarrados ao chão. A  “lei da gravitação universal”, do inglês Isaac Newton, explica que a força gravitacional da Terra nos atrai e prende ao chão. Ela diz que “no Universo, matéria atrai matéria na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias”. A grande obra de Newton, Princípios Matemáticos, construída “sobre os ombros de gigantes como Kepler e Galileu”, como ele diz, é de 1687, final do século XVII.

A tese de que a Terra era o centro do Universo já existia como hipótese entre os filósofos e astrônomos gregos e foi consolidada como teoria astronômica por Ptolomeu, autor de uma obra em 13 volumes e que já era um observador prático do céu, mas a olho nu, sem telescópio. Seu inspirador era Pitágoras (570 – 495 aC), famoso como matemático pelo célebre teorema sobre as relações entre os lados do triângulo retângulo que se aprende hoje no ginário e prova que a soma dos quadrados dos lados menores, os catetos, é igual ao quadrado do lado maior, a hipotenusa. Mas Pitágoras era também líder religioso, acreditava que no universo reinava “um deus geômetra e musicista, ordenador de um mundo harmônico fundado em proporções perfeitas, refletindo a perfeição divina” (nesse univero pitagórrico, a Terra era esférica – algo que, provavelmente, já reffletia as experiências de navegação existentes, ainda que limitadas rm grande parte no Mar Mediterrâneo). A tese foi retomada ainda na Grécia Antiga por Platão e através dele percorreu séculos.

De acordo com a sabedoria divina a que a Igreja teria tido acesso, o movimento dos astros que os telescópios primitivos começavam a revelar – a Lua aparecia cheia de buracos, Júpiter teria anéis – era uma heresia. Kepler, o grande matemático no qual Newton se apoiou como diz, ficou perturbado com as próprias conclusões a que era levado pela matemática dos seus cálculos – de que as órbitas dos planetas não eram circulares e, sim, elípticas. Ele sentia a obrigação moral de revelar honestamente o que observava e calculava, não só porque era muito religioso mas também em função das crenças comuns da sua época.

E o terceiro grande movimento é o da disputa dos países do Velho Mundo, a Europa, pelo controle econômico, político e ideológico do Novo Mundo, das Américas surgidas das grandes navegações inicialmente de portugueses e espanhóis, como Pedro Alvares Cabral, Cristóvão Colombo, Vasco da Gama e Fernão de Magalhães.

E o movimento prático, de objetivos políticos e comerciais, que  veio a ser conhecido como colonialismo, acaba por se voltar contra as ideias atrasadas da Igreja: esses navegadores fizeram suas longuíssimas viagens pelo mar sem terem despencado nos abismos do fim do mundo previstos pelos terraplanistas. Os primeiros grandes navegantes, do começo do século XVI, como se pode ver, são anteriores em mais de um século ao grupo dos primeiros grandes cientistas. Possivelmente esses heróicos marinheiros, homens práticos que viam o horizonte avançar na direção deles na medida em que avançavam em mar alto, ajudaram os nossos heróis cientistas a a contrariar a teoria dos terraplanistas antigos. Dizemos antigos porque estamos atentos ao surto do novo terraplanismo de nosso presidente, Jair Bolsonaro, e seus asseclas.

Notícias relacionadas