Mundo

Só o referendo levará paz ao conflito Marrocos x Frente Polisário


Por Leslie Salgado, Joanesburgo
 
Este é um mundo em que tudo parece ter que ser convertido em espetáculo, para vender. Estou falando de bombas e de sangue.
 
Um conflito como o de Saara Ocidental parece estar relegado ao esquecimento. Precisamente por que o que vemos ali é uma tensa paz.
 
Ainda que no ano passado a violação do cessar-fogo por parte das forças marroquinas tenha despertado um pouco da atenção internacional, este continua sendo um conflito praticamente esquecido pela comunidade internacional.
 
No ano de 1991 as Nações Unidas decretaram o cessar-fogo no conflito da Frente Polisário com as forças marroquinas. E decretaram também a realização de um referendum – cuja realização os marroquinos impediram.
 
O problema, agora é que muitos jovens saarauís estão pressionando para voltar às armas. Isso foi dito por um membro da direção da Frente Polisário.
 
A Anistia Internacional documentou durante vários anos violações dos direitos humanos de ativistas que lutam pela autodeterminação do Povo Saarauí.
 
A capacidade da missão das Nações Unidas que está aí desde 1991 diminuiu muito desde que, no ano passado, as forças marroquinas expulsaram membros da missão civil que se encarregavam da limpeza de minas.
 
De acordo com o próprio Serviço de Ação Contra Minas, das Nações Unidas, o Saara Ocidental é um dos territórios mais minados do mundo. Atenção para esta cifra: desde o ano de 1975 essas minas mataram mais de 2.500 pessoas.
 
Mas tudo isso acontece praticamente sem que o mundo perceba. E é essa pouca atenção internacional que permite que o conflito continue sem solução.
 
O retorno do Marrocos aconteceu, curiosamente, sem que aquele reino dissesse quais são os limites de suas fronteiras. Como se sabe, o Marrocos considera que todo o território do Saara Ocidental lhe pertence, e esta é a origem, a causa do conflito.
 
Mas com uma agenda focada majoritariamente no econômico, o Marrocos vai ter uma influencia precisamente nessa área. A União Africana não parece ser o espaço em que o conflito sobre a área vá ser resolvido.
 
Esta semana o Conselho de Segurança das Nações Unidas vai votar a renovação da missão das Nações Unidas, precisamente, no Saara Ocidental.
 
Por enquanto o povo saarauí continua esperando pela realização de um referendum onde possa decidir seu futuro.
 
 
 

República fantasma*

Há exatos 30 anos o editor do Nocaute, Fernando Morais, foi à República Saarauí para cobrir o conflito. Confira aqui a matéria completa publicada originalmente na revista Istoé.
Por Fernando Morais, de Bir Lehlu.
 
Dezessete séculos depois de construída, a muralha da China, considerada a maior obra de engenharia humana, corre o risco de ser superada por uma nova edificação, igualmente levantada por um imperador, o rei Hassan II, do Marrocos. Mas as semelhanças terminam aí. Se no século III o monarca Chin Shin Huang Ti construiu a monumental fortaleza em seu próprio país, ligando o mar Amarelo à Ásia Central como uma linha de defesa contra a invasão dos hunos do Norte, o rei Hassan II constrói seu muro cortando de ponta a ponta a casa alheia, a jovem República Árabe Saarauí Democrática. Ao levantar cerca de dois mil quilômetros de muros em pleno deserto do Saara, no Noroeste da África, Hassan II, que também tem hunos a perturbar seu já instável governo, quer impedir que a Frente Polisário reconquiste integralmente o território que já foi impresso nos mapas sucessivamente com os nomes de Rio do Ouro, Saara Espanhol e Saara Ocidental. O rei pretende, pela força, que o território seja incorporado ao Marrocos.
Os saarauís (uma mistura de árabes, mouros, berberes, tuaregues beduínos e nômades que vivem na região desde o século XV) decidiram que ali é a sua terra e, também de armas nas mãos, proclamaram há onze anos a República Saarauí, que já mantém relações diplomáticas (com embaixada e tudo o mais) com 63 países, tem assento na Organização da Unidade Africana e é reconhecida pelas Nações Unidas. Insinuando controle da situação, Hassan II decretou em recente discurso: “Ali estamos e ali ficaremos”. Preocupados com a perspectiva de que algum acordo de paz legue a eles a metade mais pobre de um país dividido pelo muro de norte a sul, os saarauís respondem com o dramático grito de guerra que já se transformou em lema oficial do país: “Toda a pátria ou o martírio!”.
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Esse território desértico e de subsolo rico, medindo 284 mil quilômetros quadrados (aproximadamente a mesma extensão do Rio Grande do Sul), espremido entre o Marrocos e a Mauritânia, convive com guerras desde que foi descoberto pelos navegadores portugueses, em 1434. Disputado por lusitanos, franceses, espanhóis e sultões árabes durante séculos, e localizável nas antigas cartas geográficas apenas pelas fronteiras naturais do Norte (Saguia-el-Hamra, ou Rio Vermelho, em árabe) e do Sul (Rio do Ouro), o Saara Ocidental foi finalmente ocupado por tropas e funcionários administrativos da Espanha em 1934. A pequena resistência dos saarauís foi dominada sem problemas, mas a paz iria durar pouco. Após se tornar independente, em meados dos anos 50, o Marrocos passou a manifestar abertamente o sonho de anexação do território, projeto que seria alimentado em seguida pela Mauritânia. O motivo da cobiça eram as riquíssimas jazidas de fosfato descobertas em Bu-Craá pela metrópole espanhola.
A tensão interna gerada pela disputa estimulou grupos de resistência a criarem a “Frente Popular de Libertação de Saguia-el-Hamra e Rio do Ouro”, ou simplesmente Frente Polisário, que passaria a concentrar todas as forças saarauís que lutavam pela libertação do país. Em outubro de 1975, tropas do Marrocos invadem a região, com o propósito de criar uma situação de fato consumado para o desfecho que já era esperado por todos: a iminente morte do ditador espanhol Francisco Franco. A Espanha reage à invasão com ambigüidade. Primeiro recorre ao Conselho de Segurança da ONU, mas semanas depois (e pouco antes da morte de Franco) assina um acordo tripartite com o Marrocos e a Mauritânia, entregando-lhes o controle sobre o país, assegurando para si, entretanto, 35% do fosfato extraído do território que acabava de perder. No dia 27 de fevereiro de 1976, a cúpula da Organização da Unidade Africana, reunida em Adis-Abeba, anuncia à imprensa que acabava de ser proclamada a República Árabe Saarauí Democrática e apresenta aos jornalistas o primeiro escolhido para o cargo de primeiro-ministro, um jovem combatente de 29 anos chamado Mohamed Lamine Ahmed [leia entrevista ao final].
O reconhecimento internacional animou os saarauís a intensificar a frente militar. Praticamente toda a população adulta foi convocada para o esforço da guerra que era mantida simultaneamente contra o Marrocos, no Norte, e a Mauritânia, no Sul. Durante dois anos os saarauís se aperfeiçoam na guerra de guerrilhas no deserto, açoitando os dois poderosos inimigos. Em meados de 1979 a Mauritânia propõe armistício à Frente Polisário, retira-se do território ocupado e reconhece o direito de posse do país ao povo saarauí. Chegava a hora de concentrar todos os esforços contra um único inimigo, o Marrocos.
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Colhido de surpresa pela decisão da Mauritânia, o rei Hassan II convoca uma desesperada entrevista à imprensa internacional em seu palácio: afirma que nunca existiu um povo saarauí, e assegura que levará o conflito do deserto até o final. A entrevista era, na verdade, a preparação do terreno para recorrer aos arsenais das potências ocidentais. Mas a ajuda militar que os Estados Unidos e a França lhe oferecem é insuficiente para derrotar os saarauís. O rei intensifica o esforço militar, recorre com mais freqüência à aviação. Mas nem assim consegue vencer a guerra. É aí, então, sob inspiração de assessores militares americanos, que Hassan II decide iniciar a construção do muro.
Na verdade hoje não existe apenas um, mas cinco muros, cujas extremidades se encontram, que foram sendo construídos ao longo dos últimos sete anos. Feito o primeiro, a Frente Polisário mudava o alvo de seus ataques para outra região. O rei reagia construindo o segundo – e assim sucessivamente até que o país foi retalhado de alto a baixo [veja mapa] como tentativa de isolar os saarauís das riquezas naturais: a pesca e as jazidas de fosfato.
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Atualmente encontra-se no subsolo do território saarauí um quarto das reservas mundiais do mineral, que é explorado há relativamente pouco tempo – só em meados dos anos 60 é que a Espanha decidiu encomendar às indústrias Krupp, da Alemanha, um moderno sistema de extração. Os dirigentes da Frente Polisário sabem que, quando assumirem o controle do país, a República Saarauí aparecerá no dia seguinte nos jornais econômicos como o segundo maior exportador de fosfato do planeta, na frente da URSS e dos EUA e só perdendo para o Marrocos, que detém 50% das reservas mundiais do mineral.
Foi tentando manter essa riqueza exclusivamente em suas mãos que o Marrocos decidiu construir a gigantesca trincheira que atravessa o país. A muralha é verdade, mede pouco mais de 1 metro de altura, feita de cimento e pedra, mas é cercada por um sofisticado sistema eletrônico de detecção construído pela Westinghouse. São radares com um raio de alcance de até 60 quilômetros de distância, capazes de acionar automaticamente bases de lançamento de mísseis, lança-foguetes e colocar em estado de alerta, em minutos, as esquadrilhas de caças F-5 e Mirage estacionadas ao largo do muro. Em terra, o sistema defensivo é assegurado por carros de combate equipados com morteiros e canhões de até 155 milímetros.
Como nem toda essa parafernália bélica e eletrônica foi capaz de conter o avanço da Frente Polisário (que, segundo avaliações internacionais, tem feito uma média de quatro ações armadas diárias contra os 120 mil soldados do Exército marroquino), o rei Hassan II prepara-se agora para iniciar a construção do sexto muro, entre Tichia e Bir-Nzaran, com 300 quilômetros de extensão, cujo objetivo é isolar inteiramente os nacionalistas saarauís do mar e da metade civilizada do país. Mesmo sem a ajuda de qualquer grande potência, eles garantem que “nem seis nem sessenta muros” os impedirão de vencer essa guerra de desgaste que tira o sono do soberano marroquino.
Para que a declaração não pareça uma mera bravata para impressionar a opinião pública, os saarauís exibem os seus troféus de guerra. A 80 quilômetros de Farsia, uma fortificação cercada de muros da mesma cor da areia confunde-se com o deserto. Ali estão centenas de soldados e oficiais marroquinos presos ao longo dos combates travados entre tropas da Frente Polisário e o exército regular de Hassan II. Alguns são prisioneiros há quase uma década, como o capitão Ali Najab, derrubado em pleno vôo em setembro de 1978 a bordo de um caça supersônico F-5 quando atacava uma posição saarauí ao norte de Smara. Calvo, poucos cabelos grisalhos, Najab conta que foi treinado inicialmente no Irã do xá Reza Pahlevi. Depois freqüentou cursos de especialização em aviação de caça na base de San Antonio, no Texas, e na base de Tour, no interior da França. Aparentemente conformado com a condição de prisioneiro de guerra, Najab pede apenas que um exemplar da reportagem seja enviado a “madame Atika Najab, minha mulher, em Rabat, no Marrocos”. Convencido de que a guerra não terá fim tão cedo, ele torce para que a ONU volte a patrocinar trocas de prisioneiros políticos entre os dois países, como ocorreu no início da década.
Junto com ele, sentados na areia, há centenas de outros prisioneiros de guerra, alguns ainda com a cabeça e o corpo cobertos de ataduras. São os dezessete militares capturados nos combates ocorridos no dia 8 de abril em Hausa, dentro do território ocupado pelo Marrocos. O armamento apreendido nesse dia era tão abundante que a Frente Polisário decidiu armar uma exposição no meio de deserto e convocar a imprensa internacional para testemunhar o butim. Lá estão a carcaça de um avião Mirage III, dois blindados de fabricação americana, equipados com canhões de 105 milímetros, foguetes antiblindados, mísseis teleguiados Dragon, franceses, e um armamento que é exibido com minúcias por Bulahe Mohamed, o responsável pelo campo onde as armas estão expostas.
Bulahe, que já foi embaixador da República Saarauí em Belgrado e Havana, aponta, com um sorriso irônico, as dezenas de caixas de minas antipessoa fabricadas no Brasil e capturadas às tropas marroquinas. Na lataria blindada de um tanque francês AM-90, de 13 toneladas, equipado com um canhão de 155 milímetros, ele aponta a placa de identificação do veículo, onde está a gravada a inscrição que indica sua origem: “NATO Stock”. O jovem saarauí não resiste à provocação: “Era do arsenal da OTAN. Agora vamos colocar aí uma plaquinha dizendo: ‘Polisário Stock’”.
Apesar de ser um quadro político importante da Frente Polisário, Bulahe não sabe informar com precisão qual é a população de seu país. Talvez ninguém saiba. O último censo de que o povo saarauí tem notícia foi realizado no começo dos anos 70, ainda no período colonial espanhol. Atualmente, calcula-se que haja cerca de 200 mil habitantes vivendo em território controlado pela Frente Polisário e mais ou menos 160 mil ma área ocupada pelo Marrocos. Somados aos saarauís refugiados ou vivendo como nômades pelos desertos da Argélia, Mauritânia e Mali, eles seriam ao todo um milhão de pessoas.
A guerra acabou levando os saarauís a uma situação sem paralelo no mundo atual: é uma república reconhecida por dezenas de países, tem embaixadas e embaixadores espalhados pelo mundo, ocupa tribunais internacionais como o da Organização da Unidade Africana, do Movimento dos Não-Alinhados e até da ONU. Tem uma bandeira e um hino, e seus habitantes têm documentos que os identificam como cidadãos da República Árabe Saarauí Democrática. Seria um país como qualquer outro, se o país de verdade – as cidades, prédios, ruas asfaltadas – não tivesse sido cercado por um muro e pelas tropas do rei Hassan II.
O que os saarauís chamam de cidades na verdade são gigantescos acampamentos, formados por tendas redondas armadas sobre a areia, onde chegam a viver até 10 mil pessoas. E onde o visitante estrangeiro se espanta ao ver quase que exclusivamente velhos, mulheres e crianças. Quando alguém pergunta onde está a população masculina adulta, a resposta é sempre a mesma: na frente de batalha. Se a explicação é verdadeira, certamente são falsos os números fornecidos pela direção da Frente Polisário, que informa que seu efetivo militar é de aproximadamente 25 mil soldados. Enquanto não retomam a metade rica do país, os saarauís vivem numa espécie de “república fantasma”. As cidades sob seu controle foram rebatizadas com os nomes das que o rei isolou do outro lado do muro. Assim, Bir Lehlu, capital do território liberado, é chamada de El Aiún, nome da verdadeira capital do país, hoje controlada pelo Marrocos. Os saarauís que não estão em combate dedicam-se à criação de pequenos rebanhos, à agricultura de subsistência e ao artesanato. Ninguém recebe salários – nem mesmo os que são eleitos parlamentares ou governadores provinciais ou municipais. Cada cidadão tem garantidas pelo Estado apenas suas necessidades como alimentação, educação e saúde – é prodigiosa a multiplicação de escolas e postos de saúde por toda a parte. Como o país não produz riquezas para fazer frente a esses gastos e às despesas militares, pode-se dizer que a República Saarauí talvez seja o único Estado do planeta a viver da caridade internacional. A ajuda que vem do exterior é responsável, por exemplo, pelo fornecimento das 100 mil toneladas anuais de alimentos consumidas pelos saarauís.
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Apesar de pobres, de viver em meio Estado, separados das riquezas e do mar por um muro e por caças Mirage, sustentados pela generosidade internacional, os saarauís revelam uma competência diplomática de país adulto. Essa agressividade pôde ser medida durante os festejos do 10º aniversário da proclamação da república, ocorridos no ano passado, quando representantes oficiais de 55 países ocuparam um palanque montado na areia do Saara para assistir aos desfiles militares. Ao lado deles estavam dirigentes de 35 organizações internacionais de solidariedade aos saarauís.
E, se até o Congresso dos Estados Unidos já aprovou, no ano passado, uma moção reconhecendo o direito do povo saarauí à sua pátria, a grande desilusão da Frente Polisário é com os socialistas europeus. Ou, pelo menos, com os dois mais expressivos líderes socialistas da Europa, François Miterrand e Felipe González. Antes de se elegerem presidentes de seus países, ambos haviam feito juras públicas de fidelidade à causa saarauí. Hoje, a França apóia o Marrocos e a Espanha rompeu relações com a República Saarauí, depois que a Frente Polisário afundou uma lancha-patrulha espanhola, em 1985. Nada disso provoca esmorecimento nos saarauís. Nem a pobreza em que vivem, nem a diversidade do clima, que os obriga a combater a 50 graus, à tarde, e na mesma noite dormir a uma temperatura de 2 graus negativos. “O rei já perdeu esta guerra”, dizem todos. E quando alguém acena com a perspectiva de um acordo de paz que assegura a cada uma das partes a posse do território hoje sob seu controle, os saarauís repetem o dramático refrão: “Nada de meia nação, meio país. Ou teremos a pátria inteira ou iremos para o martírio”.
 

De sandálias havaianas,

o premiê Mohamed Ahmed

 
Como quase todos os dirigentes saarauís, o primeiro-ministro Mohamed Lamine Ahmed é um homem precocemente envelhecido. Aos 39 anos, tem as têmporas esbranquiçadas, o rosto marcado pelo clima hostil de seu país e pela dureza da guerra. “Acho que luto desde que nasci”, revela com voz pausada. “Primeiro contra o colonizador espanhol. Depois lutamos contra Mauritânia e Marrocos juntos. Agora o esforço é total para expulsar os marroquinos.” Como seu povo, Ahmed veste-se com simplicidade franciscana: camisa de algodão, calça de brim verde-oliva e sandálias de borracha, do tipo havaiana. Nascido em Tan Tan, cidade hoje dentro dos muros do rei Hassan II, ele formou-se em direito na Universidade de Rabat poucos anos antes da proclamação da República Árabe Saarauí Democrática (RASD), da qual foi o primeiro presidente. Há duas semanas, o premiê recebeu ISTOÉ na fronteira entre a Argélia e o território controlado pela RASD, sob a temperatura de 42 graus à sombra. A entrevista ocorreu dentro de uma enorme tenda armada em pleno deserto, mas em cujo chão, recoberto de insólitos tapetes persas, era impossível enxergar sequer um centímetro quadrado de areia. Descalço, guardado por dois seguranças armados de fuzis AK-47 e com os rostos cobertos por turbantes negros, Ahmed falou entre pequenos goles de chá de hortelã.
 
ISTOÉ. Cinco países sul-americanos não têm relações diplomáticas com a RASD. Chile e Paraguai, que são ditaduras militares, e Brasil, Argentina e Uruguai, que vivem processos de democratização. O senhor acredita que a democracia levará estes três países a reconhecerem a República Saarauí?
Mohamed Ahmed. Como países do Terceiro Mundo, o dever os convoca ao reconhecimento da RASD. Nossa esperança é que nenhum dos três faça como a Espanha, que, embora democratizada, continuou tendo em relação a nós a mesma política da ditadura franquista. O que queremos do Brasil, Argentina e Uruguai é que façam como todos os governos democráticos do continente.
 
ISTOÉ. A falta de unidade dos governos árabes tem sido apontada como uma das causas da tragédia dos palestinos em busca de sua pátria. O senhor não teme que, pela mesma razão, os saarauís acabem se transformando em uma espécie de palestinos da África?
Ahmed. Em primeiro lugar, quero dizer que nós não temos relações com o mundo árabe. E, se o senhor quer saber a verdade, temos muito receio de que eles se unam. Pode ser uma unidade contra nós. Temos ótimas relações com países como Argélia, Síria, Mauritânia, Iêmen Democrático [do Sul] e Líbia não porque sejam árabes, mas porque são progressistas..
 
ISTOÉ. Mas parece que mesmo as relações com a Líbia de Muammar Khadafi não andam tão bem.
Ahmed. Somos independentes. Creio que a Líbia não vê essa independência com bons olhos. É verdade, eles nos ajudaram até 1983, quando passaram a apoiar o Marrocos, que depois rompeu o tratado que havia assinado com os líbios. Tudo isto esfriou muito nossas relações com Trípoli. Mas quem mudou não fomos nós, foram eles.
 
ISTOÉ. Entre o material bélico apreendido pelas tropas saarauís há armas americanas, francesas, espanholas, inglesas, brasileiras, belgas e até carcaças de aviões da OTAN. O que é que leva as potências ocidentais a se envolverem nessa disputa em pleno deserto?
Ahmed. A situação é um pouco mais feia. Já apreendemos armas fabricadas também na União Soviética e na Romênia, compradas pelo Egito e repassadas ao Marrocos. Por trás da disputa desse aparente pedaço de areia no Saara há razões políticas e econômicas fortes. O rei Hassan II é um aliado incondicional do Ocidente, então precisa ser apoiado por mais injusta que seja sua causa. As potências ocidentais sabem que, quando vencermos a guerra cairá a monarquia no Marrocos. Depois, basta olhar o mapa do mundo para ver a posição estratégica que a República Saarauí ocupa na África. Nossa costa, imensa, é banhada por um dos mares mais ricos do planeta em matéria de pesca. E, finalmente, nosso território é rico em urânio, petróleo, manganês. Uma das maiores jazidas de fosfato do mundo é a de Bul-Craá, a poucos quilômetros deste lugar onde estamos conversando.
 
ISTOÉ. De onde, então, recebem ajuda para sustentar uma guerra e um povo?
Ahmed. Há um preconceito ocidental segundo o qual todo movimento de libertação nacional é vermelho – e, portanto, perigoso. Isto já coloca o bloco ocidental contra nós. Mas, como decidimos manter a qualquer preço nossa independência, deixamos de receber a ajuda expressa do bloco socialista – à exceção da Iugoslávia. Eu diria que 65% de nossos recursos vêm de organizações internacionais, como Caritas, Alto Comissariado da ONU para Refugiados, Organização Mundial de Alimentação, Cruz Vermelha e organizações humanitárias da Bélgica, Alemanha Ocidental, Suíça, Canadá. Os 35% restantes são garantidos pela Argélia e pela Iugoslávia. E, claro, recebemos apoio político e material dos países não-alinhados e dos países do Terceiro Mundo.
 
*A reportagem República Fantasma está publicada no livro Cem quilos de ouro [e outras histórias de um repórter], Fernando Morais, editora Companhia da Letras.
 

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