Raimundo Rodrigues Pereira – Nocaute https://controle.nocaute.blog.br Blog do escritor e jornalista Fernando Morais Tue, 05 May 2020 17:09:25 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.4.1 https://nocaute.blog.br/wp-content/uploads/2018/06/nocaute-icone.png Raimundo Rodrigues Pereira – Nocaute https://controle.nocaute.blog.br 32 32 Os caminhos da medicina para derrotar o próximo Sars-CoV https://nocaute.blog.br/2020/05/05/os-caminhos-da-medicina-para-derrotar-o-proximo-sars-cov/ Tue, 05 May 2020 17:09:05 +0000 https://nocaute.blog.br/?p=65098 Uma das ideias é como a das fake news: inserir, na sua montagem, por nossas células, peças falsas.

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Uma das ideias é como a das fake news: inserir, na sua montagem, por nossas células, peças falsas.

Os vírus parasitam todos os outros seres vivos da Terra nos seus três blocos, chamados de domínios da vida: o dos eucariotes, seres multicelulares, onde estamos nós, outros animais, fungos e plantas; o das bactérias; e o chamado de arquea, de seres que sobrevivem em condições excepcionais, como as altíssimas temperaturas encontradas em regiões muito fundas do mar.

Existe uma taxonomia, uma espécie de catálogo, de vírus: 6.828 são as espécies batizadas e cerca de 250 delas tem o ser humano como hospedeiro favorito. Os vírus já registrados seriam apenas uma amostra do mundo dos vírus. Recentemente, um virologista americano fez uma viagem de circunavegação pelo mundo à caça de vírus: teria coletado 15 mil novas espécies.

Da família de coronavírus que infectam outros animais, sete teriam migrado para nossa espécie. Os três últimos foram causadores de síndromes respiratórias: o atual, o SARS-CoV-2; outro, também identificado primeiramente na China, o SARS-CoV; e o MERS-CoV (de midle east respiratory sindrome), de 2012. Os outros quatro seriam causadores de resfriados comuns. Eurico Arruda, professor titular de Virologia na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, em entrevista publicada por O Globo no último dia 29, citou esses quatro tipos, localizados em amígdalas de 25 de 139 crianças saudáveis que tiveram esse órgão extraído por outras razões: HKU1, OC43, NL63 e 229E. Todos esses sete tipos de coronavírus seriam típicos de animais e teriam migrado para a espécie humana, alguns há muito tempo, a partir de bois, alpacas, camelos e morcegos, dizem os pesquisadores.

O conhecimento sobre o agente que desencadeia a covid-19 ainda é relativamente precário (ver “O que se sabe do coronavírus”) e, em todo o mundo, cientistas trabalham para mudar essa situação. Mas há também aqueles que tentam desenvolver armas para enfrentar futuras cepas de coronavírus. A revista semanal americana The New Yorker, numa de suas últimas edições, publicou reportagem com o título “The quest for a pandemic pill”, algo como “A busca por uma pílula para a pandemia”, construída a partir de uma longa viagem do jornalista Matthew Hutson por laboratórios nos EUA, entrevistando pesquisadores com o objetivo de saber se era possível se antecipar à próxima versão dos coronavírus, produzindo medicamentos de amplo espectro, para tratar os infectados pelas versões conhecidas do coronavírus, mas capazes também de derrotar as novas, com base nos conhecimentos gerais já obtidos sobre a família da qual seriam herdeiros.

Hutson começou sua série de entrevistas com um dos nomes mais famosos da luta pelos antivirais, David Ho, um chinês de 67 anos, nascido em Taiwan, que chegou com 12 aos EUA e, em 1996, foi apresentado como “O homem do ano” pelo semanário americano Time, por seu trabalho como líder da equipe que criou o famoso coquetel de medicamentos que reduziu enormemente a capacidade de replicação do vírus da Aids – acquired immunodeficiency syndrome, em português a síndrome da deficiência imunológica adquirida.

Há também tem várias outras credenciais: foi consultor do governo chinês para a epidemia do SARS-CoV de 2002; passou a investigar a família do coronavírus a partir de então; e, amigo do bilionário Jack Ma, dono da Alibaba, a gigante chinesa de compras online, recebeu para o grupo do qual faz parte atualmente, na Universidade de Colúmbia, 2,1 milhões de dólares para pesquisa de medicamentos antivirais causadores de doenças.

Hutson resume as ideias de Ho para o porquê da busca por um medicamento antiviral de amplo espectro contra um provável sucessor do SARS-CoV-2: já ocorreram três epidemias de coronavírus em duas décadas. A ciência não pode ficar correndo atrás. A indústria farmacêutica tem inúmeros medicamentos de amplo espectro contra bactérias, fungos, protozoários e outros seres transmissores de doenças. Contra vírus, não. De um modo geral para infecções virais, existe um medicamento para cada doença. E o coronavírus é uma boa escolha para pesquisa, parece ser um dos piores inimigos. Primeiro, é um vírus de RNA, que se reproduz mais rapidamente do que os de DNA, pode ser transmitido mesmo por pessoas infectadas que ainda não tenham sintomas. E, pior ainda, não se transmite apenas por insetos ou fluídos corporais como sangue, urina e fezes, que podem ser bem contidos por cuidados domésticos especiais e medidas gerais de saneamento ambiental. Uma gotícula ejetada da boca de uma pessoa infectada, que seja aspirada por uma pessoa próxima ou carregada de outra forma até uma pessoa mais distante, um certo tempo depois, pode produzir a covid-19, daí a pandemia.

Através de Ho, Hutson chegou a um colaborador dele, Alejandro Chaves, também da Universidade de Columbia, especialista em biologia celular e dedicado à pesquisa de um tipo de proteína essencial à reprodução dos vírus no corpo humano, que funciona como uma tesoura na oficina de montagem de proteínas das células, a protease.

Todas as células têm estruturas chamadas de ribossomos. São elas que recebem (ver “O que se sabe do coronavírus”) o RNA mensageiro, a fita que o RNA copia do DNA, com o trecho das instruções genéticas para a célula se reproduzir. A produção da célula é em série, tanto a produção normal, respondendo ao pedido do corpo hospedeiro, como a decorrente da ordem dada pelo RNA do vírus: ela sai em uma fita com uma proteína colada atrás da outra, como a impressão de um jornal a partir de uma bobina de papel – sai uma folha impressa atrás de outra, para que, depois, se corte e monte um por um dos periódicos. A “tesoura” que corta a fita e separa uma proteína da outra é a enzima protease. Tanto a célula normal tem sua protease, como o vírus também tem uma enzima do tipo. O trabalho de Chaves é testar medicamentos que detonem a protease do vírus e não causem dano às proteases das células do corpo humano. Ele faz isso a partir de catálogos com centenas de medicamentos produzidos pela indústria farmacêutica americana na sua área de interesse e os testa em placas com três centenas de microbacias, onde dispõe células limpas e infectadas.

Depois de Chaves, Hutson chegou a Mark Denison, diretor na área de doenças infecciosas da Universidade de Vanderbilt, em Nashville, no Tennessee. Da tesoura, ele foi para a cola: assim como os vírus precisam da protease, que corta, precisam também da polimerase, outra proteína, que cola os pedaços. Como se sabe, as longas moléculas de DNA e de RNA são formadas por pedaços, moléculas menores, os nucleotídeos. E um jeito de fazer a polimerase não funcionar é introduzir na sua montagem nucleotídeos análogos – moléculas parecidas, mas falsas. As células humanas têm mecanismos para corrigir defeitos como esses. As pesquisas de Denison, que estuda a polimerase e nucleotídeos análogos há mais de 30 anos, diz Hutson, mostram que o coronavírus parece ser o mais competente entre os vírus, no sentido de corrigir defeitos de montagem. Mas pode ser enganado. Desde 2014, Denison trabalha numa pesquisa apoiada pelo NIH (National Institutes of Health), órgão do governo americano de financiamento a pesquisas de saúde, e, junto com o virologista Ralph Baric, desenvolveu o que chama, em inglês, de um nucleoside batizado de NHC, uma espécie de nucleotídeo análogo, que se infiltra numa cadeia de RNA em formação, mas em vez de paralisar o crescimento da cadeia, introduz uma modificação nas próximas cópias. Esses nucleosideos, na forma de pilulas, alimentaram ratos e se mostraram efetivos no combate ao coronavírus. Mas, explica Hutson, ainda não foram testados clinicamente em humanos.

A última parada do jornalista é uma entrevista com Shirit Einav, uma virologista de Stanford que defende um ataque ao coronavírus por outro ângulo: com medicamentos para alterar o ambiente no corpo humano onde se hospedaria o vírus, para torná-lo mais hostil ao invasor. Independentemente do vírus invasor, o ambiente no qual ele se desenvolve é o mesmo. O truque buscado por Shirit, diz Hutson, é achar a dosagem do medicamento que funcione contra o vírus sem causar dano sensível ao hospedeiro. Ela atualmente está pesquisando proteínas do corpo humano que são como que cooptadas para carregar vírus para dentro das células. Diz Hutson em seu artigo: “Alguns anos atrás ela identificou duas enzimas celulares humanas que facilitavam infecções virais e achou dois medicamentos que desativavam essas enzimas e reduziram as cargas virais da Ebola e da dengue”. 

Hutson termina seu belo trabalho elogiando bilionários como Jack Ma e Bill e Melinda Gates, explicando porque a grande indústria farmacêutica não tem interesse em fazer uma vacina para uma doença viral que amanhã pode mudar de perfil e lamentando que o mundo esteja tão dividido e que um esforço de pesquisa conjunto das nações não esteja atualmente no horizonte.

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O que se sabe do coronavírus https://nocaute.blog.br/2020/05/04/o-que-se-sabe-do-coronavirus/ Mon, 04 May 2020 14:51:04 +0000 https://nocaute.blog.br/?p=65023 Especialmente com vistas ao atendimento dos atuais 3 milhões de atingidos pela covid-19.

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Especialmente com vistas ao atendimento dos atuais 3 milhões de atingidos pela covid-19.

Falta saber muita coisa sobre o coronavírus, responsável pela doença chamada de covid-19, disse a médica Patrícia Rocco, professora titular e chefe do Laboratório de Investigação Pulmonar, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em artigo recentemente publicado no diário O Globo. Nas iniciais em letras maiúsculas de seu nome de batismo, SARS-CoV-2, está dito em inglês severe acute respiratory sindrome, em português, síndrome respiratória aguda grave. Ou seja, se diz que o alvo principal do vírus são as vias respiratórias, especialmente o pulmão, daí o fato de um dos equipamentos hospitalares básicos para o atendimento dos pacientes serem os ventiladores mecânicos, que auxiliam na respiração. Mas, diz Patrícia, o piloto no uso dos equipamentos é sempre o médico e, do que já se sabe, eles precisam ficar atentos não só para o pulmão mas também para o cérebro, os rins e o coração. Ela resume:

  • Tudo indica que o vírus se espalha do epitélio olfativo do pulmão, pelo sistema nervoso central, até o cérebro, causando, logo no início da doença, a perda do olfato, a anosmia, e a perda do paladar, a ageusia.
  • A partir do ataque aos pulmões, a qualidade do sangue produzido pelo paciente fica alterada e podem se formar coágulos com eventuais AVCs, acidentes vasculares cerebrais, que paralisam partes do cérebro e causam hemorragias.
  • O rim é outro dos alvos principais do vírus, diz ela: “Cerca de 20% dos pacientes internados nas Unidades de Terapia Intensiva evoluem para o estado de ‘insuficiência renal aguda’, sendo que 10% deles precisam da diálise, a limpeza extracorpórea do sangue, já que os rins, responsáveis normalmente por esse papel, funcionam mal”.
  • O ataque do vírus ao músculo cardíaco pode ser independente da insuficiência respiratória e o pior é que esse ataque ocorre “na proporção de 1 a cada 5 pacientes, levando a insuficiência cardíaca e morte”.

O que se sabe do coronavírus também não é pouco. Um dos conhecimentos essenciais: ele é um vírus de RNA, da sigla em inglês, para ribonucleic acid, ácido ribonucleico, uma das duas peças básicas no processo de reprodução e manutenção da vida. A outra peça é a mais famosa: o DNA, desoxirribonucleic acid. Desde os estudos do monge Gregor Mendel com ervilhas de cores diferentes, há mais de um século e meio, se desconfiava que características básicas dos seres vivos, como plantas e animais, são herdadas.

De início, estudos da hereditariedade foram prejudicados pelos preconceitos religiosos, raciais e de classe social, que consideravam certas raças e estamentos sociais como superiores por sua origem geográfica ou racial, pela cor da pele ou determinação dos deuses. Não se pode esquecer que doutrinas políticas como o nazismo levaram, nos anos de 1939 a 1945, às câmaras de gás e à guerra mundial que fizeram dezenas de milhões de mortos, algo estimado ao equivalente a 3% da população global da época (na data de fechamento deste artigo, 28 de abril, o SARS-CoV-2 tinha infectado 3 milhões de pessoas, das quais 207 mil tinham morrido).

Na II Guerra Mundial o papel da ciência na vida social aumentou enormemente. A primeira grande demonstração disso foram as explosões das bombas atômicas, descritas como possíveis em uma carta de Albert Einstein ao presidente dos EUA, na qual o criador da Teoria da Relatividade pedia um esforço para que os nazistas não fossem os primeiros a domesticar as energias brutais contidas nos núcleos dos átomos. Criadas nos EUA por um esforço internacional de cientistas e técnicos, duas bombas atômicas foram produzidas e jogadas pelos americanos sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Pouco antes, o exército soviético havia entrado em Berlim e Hitler se suicidara. E os dois eventos, as bombas e a morte de Hitler, decretaram a rendição de Alemanha e Japão e o fim da II Guerra.

Do ponto de vista ideológico, a hipótese de as instruções para a formação dos seres humanos estarem armazenadas em genes, que seriam transmitidos de geração em geração, em geral não era bem-vista por aqueles que, de boa fé, imaginavam que a cultura e a política adequadas, rapidamente poderiam produzir um homem novo, melhor.

Mas, foi o fato de as características materiais das espécies serem herdadas o que se comprovou na prática. Duas novas ciências se desenvolveram nesse período: a bioquímica e a biologia molecular. Em 1956, se descobriu que as instruções genéticas para nossa formação estavam armazenadas em 22 blocos de cromossomas, corpos microscópicos encontrados no núcleo das células. E, em 1962, o Prêmio Nobel de Medicina foi dado aos descobridores da hoje famosa estrutura física da cadeia em dupla hélice do DNA. Ela armazena e transmite as instruções herdadas com as características do ser.

Além disso, o DNA serve de molde para comandar, dentro das células, a síntese das inúmeras proteínas de que o corpo desse ser precisa. A dupla hélice do DNA abre um de seus trechos de instruções, o RNA o copia e leva a cópia às células para a produção desses nutrientes do corpo. A montagem da proteína se dá na estrutura da célula chamada de ribossomo, cuja existência, prevista desde o início dos anos 1950, foi confirmada nos anos seguintes e recebeu um Nobel de Medicina em 2009.

O corpo humano é formado por cerca de 37,2 trilhões de células. Existem aproximadamente 1,7 milhão de tipos de seres vivos; muitos deles unicelulares. As células de todos têm um núcleo com as instruções genéticas da espécie. E este núcleo é protegido, delimitado por uma membrana.

Os vírus, que, como já se disse, não são considerados seres vivos, não tem esse núcleo protegido e não tem as estruturas completas para se reproduzirem e, ao mesmo tempo, para produzirem proteínas que os alimentem. Mas têm instruções genéticas: são pedaços de RNA ou de DNA ou de ambos e são protegidos por capsídeos, envólucros formados por proteínas e também por lipídeos, substâncias que não se dissolvem em água, como óleos e gorduras. Essas cápsulas têm mecanismos de aproximação e infiltração em células de seres vivos para poderem usar, em seu próprio benefício, o aparato de reprodução e alimentação desses seres.

Como utilizar o conhecimento acumulado sobre o vírus e os seus mecanismos de reprodução e montagem de proteínas usando o nosso corpo, mas em nosso benefício e contra os vírus, os atuais e os das prováveis novas pandemias? Esse é o tema de nosso próximo artigo.

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Os vírus, os Bolsonaros e a China https://nocaute.blog.br/2020/04/28/os-virus-os-bolsonaros-e-a-china/ Tue, 28 Apr 2020 21:30:11 +0000 https://nocaute.blog.br/?p=64771 A propósito do último balanço da pandemia do coronavírus e das ações da gangue dos quatro.

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A propósito do último balanço da pandemia do coronavírus e das ações da gangue dos quatro.

Até 28 de abril, a pandemia da covid-19, segundo os registros da Universidade Johns Hopkins, dos EUA, tinha infectado 3 milhões de pessoas e causado 207 mil mortes. O país mais afetado eram os americanos, com 979,1 mil infectados, 55,6 mil mortes, seguido por países como Espanha, Itália, França, Alemanha, Reino Unido e Turquia. A China era o oitavo país da lista, com 88,4 mil infectados e 4,6 mil mortos.

Cerca de quatro meses atrás, a 31 de dezembro, o governo de Wuhan, cidade de 11 milhões de habitantes no centro da China, tinha divulgado que 27 pessoas estavam internadas com uma pneumonia de origem desconhecida. E, alertado, o governo central, em Pequim, informou a OMS. Segundo o porta-voz do Ministério de Relações Exteriores da China, Hua Chunying, seu governo informou os EUA em 3 de janeiro; e o governo americano informou a seus cidadãos que estavam em Wuhan doze dias depois, em 15 de janeiro.

Já em 7 de janeiro, a China identificou o genoma do vírus, o código genético com as instruções de sua replicação, e o distribuiu a laboratórios em todo mundo. Tratava-se de um vírus com as características da família coronavírus, já conhecida dos chineses em função de um surto ocorrido no país em 2003. O vírus da época foi batizado de SARS-CoV. Sars, do inglês severe acute respiratory sindrome, síndrome respiratória aguda grave, que indica a doença; Cov, de coronavírus. No caso da pandemia atual, o vírus é o SARS-CoV-2; a doença, é a covid-19, do inglês coronavirus disease.

A família dos coronavírus é conhecida há tempos, desde os anos 1960. Cerca de 30 espécies da família já teriam sido identificadas, diz um trabalho especial do semanário britânico The Economist, na edição de 12 de março último. Duas delas, diz a revista, são responsáveis por 15% a 30% dos resfriados comuns. O Sars-Cov2, que provoca uma doença bem mais grave do que resfriados, se espalhou de sua origem, também na China, para 12 países em 2002, onde infectou cerca de 8 mil pessoas, causando 800 mortes.

O SARS-CoV-2 se mostrou muito mais violento. Até 20 de janeiro havia apenas 3 mortes em Wuhan. Nos 10 dias seguintes, já eram 170 óbitos, espalhadas pela China. E a reação do governo chinês foi igualmente rápida e impressionante: no dia 23 de janeiro, com transmissão pelo Youtube, foi iniciada a construção de dois grandes hospitais na cidade, para mil e 1,6 mil leitos, por uma força tarefa de 4 mil operários, 95 escavadeiras, 160 caminhões basculantes. Em 3 de fevereiro, os primeiros pacientes deram entrada no primeiro hospital. O segundo ficou pronto dez dias depois.

As ações no campo social também foram dramáticas. A cidade de Wuhan entrou em quarentena total e ficou isolada. No resto do país, segundo o The New York Times, as medidas para conter as interações sociais foram aplicadas de modo mais brando do que em Wuhan, mas quase a metade da população, cerca de 760 milhões do 1,4 bilhão de chineses, ficou confinada, com remédios e comida entregues em suas casas.

Ao mesmo tempo, os médicos e cientistas chineses abriram seus estudos e pesquisas sobre a doença e seu tratamento para o mundo inteiro. Como disse o canadense Bruce Aylward, líder da equipe da OMS que foi a Wuhan nessa época: “Foi absolutamente crucial na parte inicial dessa epidemia ter acesso total a tudo que fosse possível, ir até lá e trabalhar com os chineses para entender isso.” 

Depois de tudo isso, é impressionante ver o que dizem sobre a China e a pandemia os bolsonaristas do seu núcleo duro e seus inspiradores, dirigentes do governo do presidente americano, Donald Trump.

No dia 20 de março, em entrevista à Fox News, o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, declarou que os chineses tinham perdido “dias valiosos” depois de identificar a nova doença, a Covid-19, permitindo que milhares de pessoas deixassem a cidade de Wuhan, onde ela primeiro se manifestou, e viajassem para o exterior.

No final de fevereiro, o presidente Jair Bolsonaro, seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, e uma caravana de cerca de 40 pessoas foram a um encontro com Donald Trump em Mar-a-Lago, uma grande propriedade do presidente americano, situada perto de Miami. Àquela altura, o coronavírus já era amplamente conhecido e o papel central da China na história da origem do vírus, também.

Na volta, no dia 18 de março, foi a vez de Eduardo, em nome do bloco bolsonarista seguir o modelo americano e atacar a China. Eduardo é o filho “02” da gangue dos quatro: Jair, o pai, presidente; Flávio, o filho “01”, senador; Eduardo, filho “02”, deputado federal; e Carlos, o filho “03”, vereador na cidade do Rio de Janeiro. Eduardo tinha discursado em Mar-a-Lago dizendo que votaria em Trump se fosse americano e que apoiava a construção do muro na fronteira com o México, porque não iria para os EUA de forma ilegal. Na época, o chefe de sua turma ainda mantinha aberta a sua indicação para embaixador do Brasil nos EUA.

Talvez entusiasmado com a perspectiva, depois de sua volta ao Brasil, Eduardo declarou no dia 18 de março sobre a pandemia, pelo Twitter:  “Quem assistiu Chernobyl vai entender o q ocorreu. Substitua a usina nuclear pelo coronavírus e a ditadura soviética pela chinesa. Mais uma ditadura preferiu esconder algo grave a expor tendo desgaste, mas q salva é a liberdade.”

O coronavírus, que não é um ser humano, como se sabe, não está nem aí. E continua agindo – no Brasil, não na China, um país comunista, é claro – com ampla liberdade. Dias depois da volta do presidente e sua caravana, se soube que cerca de metade da turma que foi ver Trump para a lambança em Mar-a-Lago tinha contraído a covid-19.

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Mandetta, Bolsonaro e Teich. Com quem está “a ciência, a luz, o iluminismo”? https://nocaute.blog.br/2020/04/22/mandetta-bolsonaro-e-teich-com-quem-esta-a-ciencia-a-luz-o-iluminismo/ Wed, 22 Apr 2020 17:35:22 +0000 https://nocaute.blog.br/?p=64356 Luiz Henrique Mandetta, demitido pelo presidente da República na quinta-feira, dia 16, no desempenho de suas funções como ministro da Saúde e nas muitas entrevistas à imprensa para tratar das providências tomadas em sua gestão para combater a epidemia de coronavírus, deixou a impressão de ser um homem de bem. Na comparação de sua figura com a do presidente Jair Bolsonaro ele ganha disparado.

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Luiz Henrique Mandetta, demitido pelo presidente da República na quinta-feira, dia 16, no desempenho de suas funções como ministro da Saúde e nas muitas entrevistas à imprensa para tratar das providências tomadas em sua gestão para combater a epidemia de coronavírus, deixou a impressão de ser um homem de bem. Na comparação de sua figura com a do presidente Jair Bolsonaro ele ganha disparado.

Mandetta demonstrou “carisma e liderança”, como disse Ruth de Aquino, colega colunista de O Globo, uma semana antes de sua demissão. “A firmeza, a serenidade, a sutileza, o apego à ciência e à cultura, a visão estratégica, a consciência de sua missão. O colete do SUS em vez do terno e gravata”, escreveu ela. No dia 17, após Bolsonaro ter demitido Mandetta, Ruth, depois de ter entrevistado um psicanalista e uma psiquiatra, procurou caracterizar o presidente.  “Bolsonaro não é louco”, categoria que inclui, escreveu ela, “psicóticos e neuróticos”. Bolsonaro “se encaixaria na categoria de psicopatas”, gente que tem “uma insanidade moral”; indivíduos “autocentrados”, que agem “com frieza e método”; gente que “defende torturador e condena as vítimas, publicamente, no Congresso”, disse Ruth, referindo-se, por último, ao voto de Bolsonaro na Câmara dos Deputados, em 2016, pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff, voto que ele dedicou à memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ulstra, tido, com razão, como um dos mais destacados torturadores do Exército nas prisões militares usadas na repressão a rebelados contra a ditadura militar brasileira dos anos 1964-1985.

Mandetta é um homem culto, mostrou Ruth na sua coluna. Após um de seus confrontos com Bolsonaro, Mandetta disse que tinha lido e relido “O mito da caverna” que é, como bem disse a colunista, “uma metáfora da condição humana”, um texto de Platão que nos incentiva a sair das trevas da ignorância para a luz do conhecimento. Na sua fala de despedida, no dia 16, Mandetta voltou ao tema para fazer uma espécie de apelo, conclamando pelo uso da ciência na gestão da crise do coronavírus: “a ciência é a luz, o iluminismo”, ele disse.

Como político habilidoso que mostrou ser durante a crise com Bolsonaro e com o prestígio adquirido no confronto com o presidente, ele tem futuro em Goiás por onde se elegeu deputado federal pelo bloco dos bolsonaristas chefiados pelo governador do estado, Ronaldo Caiado, do DEM. Mas sua referência ao presidente na entrevista de despedida não é um primor de, digamos assim, iluminação. Ele disse que Bolsonaro é “extremamente humanista” e que tem certeza de que “Jesus Cristo vai iluminar” o presidente e “abençoá-lo para tomar as melhores decisões”.

Bolsonaro, como diz Ruth de Aquino, está longe de ser um humanista, como supõe Mandetta. E, na escolha do homem encarregado de substituí-lo, não consta em lugar algum que tenha sido aconselhado pelos céus. Nelson Teich, o substituto de Mandetta, fazia parte de “um grupo de médicos empresários consultados com frequência por Bolsonaro”, diz artigo de O Globo, na sua edição do dia 19 passado. Aliás, já no seu discurso de posse Teich se disse um “ex-médico”. E, ao contrário de Mandetta, cuja formatura se deu em meio a uma luta dos formandos como ele, que acabou transformando um hospital privado de Goiás num hospital do Sistema Único de Saúde (SUS), Teich é empresário desde sua formatura em 1990, quando fundou uma clínica e passou a trabalhar como empresário e consultor de outros empresários.

Como disse uma comentarista que o conhece bem, porque acompanha sua carreira há tempos: quando Teich disse que não faz sentido comprar um monte de respiradores agora, que serão usados por um tempo relativamente curto e depois perderão sua utilidade, “ele estava pensando como faz há 30 anos. O investimento nesses respiradores faz sentido, do ponto de vista de um negócio? Dá lucro?”.

Não é um homem cuja preocupação central é a vida humana. “Nelson Teich é o símbolo de uma civilização que tornou tudo mercadoria capaz de ser comprada e vendida. Ele está apenas sendo coerente”, conclui a comentarista, com razão.

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Voltando ao fundo dos buracos https://nocaute.blog.br/2020/04/10/voltando-ao-fundo-dos-buracos/ Fri, 10 Apr 2020 17:51:01 +0000 https://nocaute.blog.br/?p=63668 O Banco Central brasileiro, nas suas estatísticas das Contas Externas do Brasil, ao informar sobre o problema dos buracos nessas contas, causado pelas retiradas das rendas dos investimentos estrangeiros sempre em volumes superiores aos das rendas dos investimentos das companhias brasileiras no exterior, parece sugerir que o jeito é trazer novos investimentos estrangeiros para cobrir os novos buracos.

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Para entender melhor as contas externas do Brasil.

O Banco Central brasileiro, nas suas estatísticas das Contas Externas do Brasil, ao informar sobre o problema dos buracos nessas contas, causado pelas retiradas das rendas dos investimentos estrangeiros sempre em volumes superiores aos das rendas dos investimentos das companhias brasileiras no exterior, parece sugerir que o jeito é trazer novos investimentos estrangeiros para cobrir os novos buracos. Em texto anterior, dissemos que essa aparente sugestão deixa a pergunta: se foram exatamente esses investimentos que causaram os buracos, mais desses investimentos não causariam ainda mais buracos? 

Para buscar uma resposta melhor, voltemos as contas externas do primeiro ano do governo Bolsonaro-Guedes. São 31 páginas de tabelas com milhares de informações, como já se viu. Destaquemos algumas: 

  • Três das últimas páginas (26, 27 e 28) fazem um balanço do estoque de ativos – do que pessoas e empresas brasileiras têm no exterior – e de passivos – do que pessoas e empresas estrangeiras têm no Brasil – no item dos investimentos internacionais. O último resultado é do ano de 2018. O que mostra esse balanço de estoques? O Brasil tem 1,47 trilhões de dólares de passivos e 876 bilhões de dólares de ativos nesse item; um deficit, portanto, de 594 bilhões de dólares. Esse número explica bem porque as rendas dos capitais estrangeiros no Pais superam em muito as rendas dos capitais brasileiros no exterior. É que elas não são calculadas sobre o valor dos ingressos de capitais no ano, mas sobre o estoque de capitais aplicados ao longo de anos. E, como se vê, o estoque de capitais brasileiros no exterior é quase metade do estoque de capitais estrangeiros no Brasil.
  • Outra informação que tem o mesmo sentido: nossas reservas no exterior podem ser tomadas como “investimento em carteira”; elas são expressivas, de 375 bilhões de dólares e, como já vimos em texto anterior, renderam para o País, em 2019, 7,5 bilhões de dólares. E quanto renderam, em 2019, as aplicações de empresas estrangeiras localizadas no Brasil, em títulos de dívida negociados por seus braços financeiros no mercado doméstico e no exterior, papéis que, de certo modo, podem ser comparados com as reservas? Foram 15 bilhões de dólares. No ano, as entradas líquidas foram de apenas 11 bilhões de dólares. O que explica o fato de o rendimento não só ter sido positivo, apesar de a entrada líquida ter sido negativa, como também ter sido o dobro do rendimento de nossas reservas, ou seja, como sugerimos, o rendimento de nossas aplicações em carteira no exterior.

A explicação não vem só do fato de que as reservas brasileiras são um instrumento defensivo das nossas finanças; existem para dar segurança aos credores externos. E as aplicações das empresas estrangeiras em carteira são instrumentos agressivos, para buscar renda; para, como se diz, especulação no mercado. Para se ter uma ideia da especulação: apenas no ano de 2019, na rubrica investimento estrangeiro em carteira, houve uma entrada de 100,5 bilhões de dólares e uma saída de 104,5 bilhões de dólares.

Mas, o que é mais importante é uma comparação de estoques. O de papéis em carteira – ações, cotas em fundos e títulos de dívida – das tesourarias das empresas estrangeiras no Brasil, no final de 2018, o ano para o qual se tem o último balanço, era de 495 bilhões de dólares; e tinha caído muito – no final de 2017 estava em 536 bilhões de dólares. E o estoque dos chamados “ativos de reservas” do Brasil, bem menor que o de ativos de investimento em carteira dos estrangeiros aqui, tinha, no mesmo período, crescido, se bem que pouco: passaram de 374 bilhões para 375 bilhões de dólares. Mesmo assim, repita-se, as rendas dos investimentos em carteira dos estrangeiros tinha sido bem maiores que a de nossos “ativos de reservas” (o nome dado pelo BC, aliás, parece impróprio: eles parecem mais “passivos” de reservas).

Por último, vamos voltar à crítica inicial da sugestão do BC de que mais IDP – a sigla do banco para Investimento Direto no País – é a solução para os problemas criados pelos próprios IDPs. A partir da tabela 13 das Contas Externas, que apresenta a relação entre “Saldo das transações Correntes e ingressos de IDP”, de dezembro de 2012 a janeiro deste ano, se pode ensaiar uma conclusão política.

O pedido de abertura do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff foi aceito pela Câmara dos Deputados em dezembro de 2014. O Banco Central do Brasil, no primeiro mandato da presidente (2011-2013), tinha comandado um processo de dez sucessivas pequenas reduções da taxa de juros internos do País, de 13,75% para 7,25%, entre agosto de 2011 e março de 2013. Do ponto de vista econômico, isso fazia sentido, pois, após a grande crise financeira no centro do sistema capitalista com a quebra do mercado de títulos de hipotecas imobiliárias nos EUA, os juros internacionais estavam praticamente em zero.

No entanto, no Brasil, o que chamamos de o alerta vermelho da crise nas contas externas – o deficit nas transações correntes (DTC) na marca de 3% – aparecera em 2012 e 2013. E, em 2014, chegou a 4,13%. Na tabela 13 citada, o BC apresenta a evolução desse indicador de dezembro de 2014 até janeiro deste ano. O que dizem esses números? A presidente Dilma tentou contornar as objeções à sua política econômica nomeando para ministro da Economia, para seu segundo mandato, previsto para o período 2015-18, Joaquim Levy, uma pessoa de confiança do chamado mercado. Como que em resposta, o DTC melhora um pouco: cai para 3,03%. Em abril de 2016, Dilma cai e sobe Michel Temer: o DTC melhora ainda mais, vai para 1,35% em dezembro daquele ano e para 0,73% em dezembro de 2017.

O problema é que, de lá para cá, só tem piorado. Ficou dando pequenos mergulhos daquela marca até 2,2% em de dezembro de 2018. Foi para 2,69% em dezembro do ano passado. E a se crer no último balanço das contas externas do BC.

(https://www.bcb.gov.br/content/estatisticas/docs_estatisticassetorexterno/Notimp1.xlsx), chegou a um fundo de poço: 5,81% para o período janeiro-fevereiro de 2020!!!

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Uma viagem por nosso balanço de pagamentos https://nocaute.blog.br/2020/04/02/uma-viagem-por-nosso-balanco-de-pagamentos/ Thu, 02 Apr 2020 16:45:58 +0000 https://nocaute.blog.br/?p=63099 O balanço de pagamentos do Brasil, com as contas de janeiro de 2019 a janeiro de 2020, primeiro ano do governo Bolsonaro-Guedes, está na internet. São 31 tabelas, cerca de mil linhas e 3 mil números. Mas não é difícil de entender para quem tenha interesse e domine as operações aritméticas básicas de soma e subtração.

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A safra de deficits do primeiro ano do “novo normal” da economia brasileira.

O balanço de pagamentos do Brasil, com as contas de janeiro de 2019 a janeiro de 2020, primeiro ano do governo Bolsonaro-Guedes, está na internet. São 31 tabelas, cerca de mil linhas e 3 mil números. Mas não é difícil de entender para quem tenha interesse e domine as operações aritméticas básicas de soma e subtração.

Comecemos pela Tabela 1, chamada exatamente de “Balanço de Pagamentos” e, nela, pela Conta 1 nessa tabela, a das chamadas “Transações Correntes”. Os países de economias dependentes, como a do Brasil, que exportam principalmente matérias-primas de baixo valor agregado – minérios, produtos agrícolas, carnes, sucos, máquinas e equipamentos de pouca elaboração – e importam celulares, computadores e máquinas e serviços sofisticados e caros, têm um indicador para os limites dessa dependência: o chamado deficit de transações correntes. Quando ele começa a crescer em aparente descontrole, acende um sinal vermelho: o país pode quebrar.

Transações correntes versus PIB

Desde o acordo de Bretton Woods, celebrado em 1945, após a II Guerra Mundial, com a criação do Fundo Monetário Internacional (FMI), fiscal geral das finanças e hospital para os países desvalidos. e com o estabelecimento do dólar como a moeda padrão para as transações entre os integrantes desse acordo, o peso da carga negativa das transações correntes do Brasil sobre suas contas ano a ano em dólar é acachapante. Vejam os gráficos que acompanham este texto. No primeiro se destacam duas coisas. Uma: nesses três quartos de século, de 1945 até 2020, o País tem apenas meia dúzia de anos com saldos positivos em transações correntes; a regra geral é o deficit. A outra: quando esses deficits chegam ao equivalente a 4% do produto interno bruto (PIB), o Brasil quebra – foi assim em 1975, no governo do general Ernesto Geisel; em 1982, no governo do general João Figueiredo; em 1998, no governo de Fernando Henrique Cardoso; e em 2014, no governo da presidente Dilma Rousseff.

Transações correntes-acumulado

O segundo gráfico é o de agora, do deficit de transações correntes do Brasil de janeiro de 2018 a janeiro de 2020. Ele mostra duas medições. Numa, em azul, o valor bruto acumulado em 12 meses. E, na outra, em vermelho, o deficit anual como porcentagem do PIB. No acumulado, o deficit era de 15 bilhões de dólares há dois anos. Foi para cerca de 40 bilhões de dólares em janeiro do ano passado. E passou de 50 bilhões no acumulado do ano até janeiro deste ano. Na medição como porcentagem do PIB, o deficit de transações correntes acumulado em 12 meses representava menos de 1%, há dois anos; chegou a 2,69% em 2019; e, no acumulado de um ano em janeiro passado, bateu em 3,25% do PIB – mais perto dos 4% da marca das quebradeiras passadas.

Para onde vai o Brasil, agora que o ministro da Economia, Paulo Guedes, diz que há um “novo normal”, uma nova ordem no desenvolvimento do País? O que há de novo? 

A conta de transações correntes de um país mede as operações em dólar do ano em três classes:

  1. as de compra e venda de bens;
  2. as de compra e venda de diversos tipos de serviços, como os de turismo, transporte de carga ou passageiros, aluguel de equipamentos, pagamentos por serviços de propriedade intelectual, de telecomunicações, computação e informação e;
  3. as de rendas, tanto as chamadas rendas primárias, das empresas – os ganhos obtidos com investimentos em fábricas, negócios, ações, empréstimos – como as secundárias, de rendas pessoais.

Na chamada balança comercial, da compra e venda de bens, no ano passado o País teve um saldo expressivo, 40,8 bilhões de dólares: exportou 225,8 bilhões e importou 185,0 bilhões. O rombo veio das outras duas contas: na compra e venda de serviços, que apresentou deficit de 35,1 bilhões de dólares; e na conta das rendas, que teve deficit de 56,1 bilhões nas chamadas rendas primárias e um saldo positivo de 1 bilhão de dólares das rendas secundarias, os trocados que milhares de trabalhadores brasileiros no exterior enviam para o País. Somando todos esses resultados, o Brasil teve um deficit de transações correntes de 49,4 bilhões de dólares em 2019.

Tanto o deficit de serviços como o de rendas mostram a fragilidade da economia brasileira. No caso dos serviços, são onze subcontas. No total do deficit de 35,1 bilhões de dólares, mais da metade decorre de duas delas: pagamos, em 2019, 14,6 bilhões de dólares pelo aluguel de máquinas e equipamentos estrangeiros e recebemos apenas 0,1 bilhão pelo aluguel de nossas máquinas e equipamentos. Para se ter uma ideia do que alugamos: uma plataforma de pesquisa e exploração de petróleo para o pré-sal chegou a custar 1 milhão de dólares de aluguel por dia. E em royalties por propriedade intelectual pagamos 5,3 bilhões e recebemos somente 0,6 bilhão de dólares.

Em apenas uma das 11 subcontas, a de “outros serviços e negócios”, que inclui “serviços de pesquisa, jurídicos, de publicidade, de engenharia e arquitetura, de limpeza e despoluição”, feitos por empresas no Brasil para empresas estrangeiras instaladas aqui, o Brasil tem um saldo expressivo, de 5,8 bilhões de dólares (receita de 15,3 bilhões e despesa de 9,5 bilhões).

O buraco maior nas transações correntes, como já visto, é na conta da renda primária, na comparação dos rendimentos que o País recebe pelas aplicações de suas empresas lá fora, com os que envia ao exterior para pagar o rendimento das aplicações das empresas estrangeiras aqui dentro. Por essa conta, em 2019, saíram do País 82,1 bilhões de dólares e entraram 26,0 bilhões, resultando no deficit de 56,1 bilhões de dólares já citado.

Vejamos com mais detalhe esse resultado das rendas primárias. São quatro parcelas de rendimentos. Três são negativas. Em bilhões de dólares: 1) as rendas de investimento direto, -36,0; 2) as rendas de investimento em carteira, -15,0; 3) as rendas de juros, -12,7. E uma parcela é positiva: as rendas das reservas cambiais brasileiras aplicadas no exterior, de 7,5 bilhões de dólares.

Examinemos cada uma delas. Primeiro, o deficit de 36 bilhões na renda dos investimentos diretos. Ele decorre do fato de as empresas estrangeiras terem recebido muito mais, nas três formas desses rendimentos:

  1. Foram 16,5 bilhões de dólares de deficit na conta de remessas de lucros e dividendos, decorrentes de 18,7 bilhões enviados do Brasil para as sedes no exterior das empresas estrangeiras instaladas aqui, contra 2,2 bilhões de dólares enviados para o Brasil pelas empresas brasileiras instaladas no exterior.
  2. Foram 10,1 bilhões de dólares de deficit de lucros reinvestidos, decorrentes de 25,1 bilhões de dólares em lucros reinvestidos aqui pelas empresas estrangeiras, contra 14,7 bilhões de dólares reinvestidos no exterior pelas empresas brasileiras.
  3. Foram 9,2 bilhões de dólares de deficit por juros de operações de empréstimo entre matriz e filial: as estrangeiras receberam 9,3 bilhões de dólares de suas filiais, contra 0,1 bilhão recebido pelas matrizes brasileiras de suas filiais. 

Em segundo lugar, examinemos os chamados investimentos em carteira, aplicações em ações, em cotas de fundos de participação e em títulos de dívida emitidos por empresas. O deficit do Brasil nessa conta é de 15 bilhões de dólares. E vem de três partes:

  1. 4,3 bilhões de dólares são decorrentes da diferença entre 4,4 bilhões de lucros e dividendos nessas aplicações, remetidos ao exterior pelas empresas estrangeiras instaladas aqui, contra 0,1 bilhão remetido para o Brasil nessas aplicações pelas empresas brasileiras em operação no exterior.
  2. 5,1 bilhões de dólares correspondem a um deficit resultante da diferença entre 5,3 bilhões remetidos ao exterior pelas empresas estrangeiras daqui por juros obtidos com títulos negociados no mercado externo, contra 0,2 bilhão de dólares remetidos para o Brasil por empresas brasileiras no exterior por juros obtidos por negócios realizados no mercado externo. 
  3. E 5,7 bilhões de dólares remetidos por empresas estrangeiras por juros com títulos negociados no mercado brasileiro, sem nenhuma contrapartida de juros obtidos pelo envio do resultado de aplicações em títulos adquiridos por empresas brasileiras no exterior.

A terceira renda negativa, de 12,7 bilhões de dólares de juros de empréstimos, se deve a 13,4 bilhões de dólares pagos por empresas e o Estado brasileiros por empréstimos tomados lá fora, contra 0,7 bilhão de dólares pagos por empréstimos de empresas estrangeiras no Brasil.

A única parcela positiva para o Brasil na categoria das rendas primarias é a das suas reservas: o País recebeu 7,5 bilhões de dólares pelo rendimento dessas aplicações no exterior, basicamente em títulos do Tesouro dos EUA. Tinha 357 bilhões de dólares de reservas no exterior, no final do ano passado.

Como fecha, então, o Balanço de Pagamentos do Brasil que parece ser, pela descrição feita, um conjunto de deficits? A Tabela 1 do documento do Banco Central, citado neste artigo, chamada de Balanço de Pagamentos, no fundo dá uma resposta implícita a essa pergunta, com as três últimas linhas no pé do seu quadro principal de linhas e números. Nelas está escrito:

Memo: 

Transações correntes em relação ao PIB (em %)        -2,69

Investimento direto no País em relação ao PIB (em %)    4,27

O que se quer dizer com isso? O Banco Central diz uma coisa, embora não de modo explícito: os buracos são cobertos com novas entradas líquidas de investimento direto. O que o Banco Central não diz é, como os novos investimentos diretos estrangeiros no Brasil vão, como se viu, muito provavelmente, gerar mais buracos, de que forma a história acaba? A resposta fica para um próximo artigo.

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Ninguém gostou do PIBinho do Guedes https://nocaute.blog.br/2020/03/26/ninguem-gostou-do-pibinho-do-guedes/ Thu, 26 Mar 2020 21:57:49 +0000 https://nocaute.blog.br/?p=62711 O “novo normal” do nosso ministro da Economia – o capitalismo liberal, devagar, quase parando – foi um fracasso.

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O “novo normal” do nosso ministro da Economia – o capitalismo liberal, devagar, quase parando – foi um fracasso.

Um dos melhores comentários sobre a avaliação do ministro Paulo Guedes a respeito do atual desempenho da economia brasileira foi o do jornalista Carlos Drummond, publicado na revista CartaCapital no início deste mês. Guedes tem dito que nossa economia vive “um novo normal”: em vez de inflação elevada, juros altos e o real valorizado em relação à moeda americana, temos hoje inflação baixa, juros baixos e o real desvalorizado. Drummond resume essa avaliação no título do seu artigo: “O fracasso subiu à cabeça de Guedes”.

O grande problema do “novo normal” do ministro Guedes é que a economia brasileira que ele administra não cresce. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou há pouco o crescimento do produto interno bruto (PIB) do Brasil em 2019: 1,1%. Se se considera que o governo comandado pelo presidente Jair Bolsonaro é uma continuação do governo surgido do golpe parlamentar que derrubou a presidente Dilmar Rousseff, seu crescimento médio é menor que o de todos os governos dos últimos 25 anos. Nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso o PIB cresceu anualmente, em média, 2,6% no primeiro mandato (1994-98) e 2,4% no segundo(1999-2002). Nos dois governos de Luiz Inácio Lula da Silva aumentou 3,5% no primeiro (2003-06) e 4,7% no segundo (2007-10). Nos quatro anos do primeiro mandato de Dilma (2011-14) cresceu 2,4% em média por ano. O segundo mandato da presidente começou em 2015 – com redução do PIB de 3,5% – e terminou em meados de maio de 2016, quando foi afastada do cargo pelo processo de impeachment que sofreu.

Para simplificar, vamos atribuir o crescimento negativo do PIB de 2016 – de-3,3% – tanto a Dilma, que governou quatro meses e meio, de 1º de janeiro a 12 de maio, quanto a Michel Temer, seu substituto, que esteve no comando do País nos sete meses e meio restantes de 2016 e ficou no cargo até o final de 2018). Fazendo essa simplificação, nos seis anos em que a presidente esteve no governo a economia cresceu, em média, aproximadamente 0,5% ao ano; e nos quatro anos de governo com Temer e Bolsonaro (a variação do PIB nesse período foi de -3,3% em 2016, de +1,3% em 2017, de +1,3% em 2018 e de +1,1% em 2019), aumentou, em média, 0,1% ao ano.

Guedes, junto com seu chefe, Bolsonaro, se apresenta ao grande mundo das finanças como o homem que irá “vender o Brasil”, com o objetivo de atrair capital estrangeiro para desenvolver o País. O ministro é doutor em economia. Ele sabe que o capitalista estrangeiro não compra uma empresa brasileira para levá-la para fora do país, mas para explorar o mercado a partir dela. E, mesmo que venda a empresa a preço de banana, que derrube leis trabalhistas e direitos dos trabalhadores a fim de tornar essa exploração mais atrativa ao capital estrangeiro, a economia do Pais precisa crescer para que essa exploração exista.

O capitalismo não é um sistema de apropriação por saque de riqueza já criada. Foi assim, na sua formação, com a pilhagem do colonialismo. Mas, há séculos é amplamente sabido que a criação de riqueza, de valor novo, se dá no tempo presente do trabalho: o empregador obtêm, na venda de seus produtos ou serviços, descontados os custos de matérias-primas e de outros insumos, um valor maior do que o que paga em salários e benefícios aos trabalhadores. A grande virtude, digamos assim, do capitalismo é a exploração do trabalho vivo. A avaliação vale também para a exploração do trabalho no modelo de desenvolvimento da China, que, para uma “etapa primária da construção do socialismo”, criou o conceito da “economia socialista de mercado”, na qual coexistem a exploração capitalista tradicional, de trabalhadores chineses por empresários privados chineses e estrangeiros e a exploração não tradicional, de trabalhadores chineses por estatais dirigidas por representantes do governo comunista daquele país.

Nem no modelo capitalista tradicional, nem no modelo chinês, no entanto, se dispensa a dinâmica do crescimento econômico. Veja-se, por exemplo, entre 2010 e 2019, a variação da taxa de investimento calculada pela IBGE – a parcela do PIB brasileiro destinada a aumentar a capacidade produtiva do País – comparada com a posição do Brasil no “Índice Global de Confiança para Investimentos Estrangeiros”, da consultoria americana Kearney, um dos mais usados com esse fim.

O resultado da comparação é claríssimo: nesses 10 anos, de 2010 a 2019, o investimento no País caiu de 20,5% para 15,4% do PIB e, do outro lado, a confiança dos investidores estrangeiros no Brasil despenca – do quarto lugar entre os países preferidos para investimento, em 2010, para o sexto, em 2015, para o 12º, em 2016, para o 25%, em 2018 até, simplesmente, cair fora do índice no ano passado. O índice da Kearney mede a perspectiva de investimento nos próximos três anos, a partir de entrevistas com 500 executivos das maiores multinacionais em 25 países. Até 2014, o Brasil estava entre os cinco primeiros, no topo da lista. Agora, já não aparece nela.

A demanda é um dos principais fatores que o investidor observa ao decidir o que fazer com seu dinheiro. “O maior entrave, no caso do Brasil, é a recessão e o baixo crescimento dos últimos anos”, diz artigo do jornal O Globo referindo-se a relação do crescimento com o interesse dos investidores estrangeiros. Com esse “novo normal”, Guedes, o liberal, está tentando inovar? Ele inventou o capitalismo liberal devagar, quase parando? Ou, como disse o colega Drummond, simplesmente o fracasso lhe subiu à cabeça? Nem aos seus pares, o Pibinho do Guedes agradou.

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UMA TRAGÉDIA AMAZÔNICA https://nocaute.blog.br/2019/08/23/o-que-o-brasil-tem-para-ensinar-ao-mundo/ Fri, 23 Aug 2019 23:05:22 +0000 https://nocaute.blog.br/?p=53206 Nesta edição, Nocaute publica a última parte da série: “Uma tragédia Amazônica – Peça em três atos”, de autoria de Raimundo Rodrigues Pereira. A reportagem é parte da parceria entre o Nocaute e a Editora Manifesto. O texto mostra que sem uma ação firme do Estado não conseguiremos promover a defesa de um patrimônio tão importante, para o Brasil e para o mundo, como é o da grande floresta amazônica.

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ATO 3:
O QUE O BRASIL TEM PARA
ENSINAR AO MUNDO

Nesta edição, Nocaute publica a última parte da série: “Uma tragédia Amazônica – Peça em três atos”, de autoria de Raimundo Rodrigues Pereira. A reportagem é parte da parceria entre o Nocaute e a Editora Manifesto. O texto mostra que sem uma ação firme do Estado não conseguiremos promover a defesa de um patrimônio tão importante, para o Brasil e para o mundo, como é o da grande floresta amazônica.

O presidente Jair Bolsonaro apresenta-se frequentemente como um nacionalista. Foi assim quando resolveu encarar o debate sobre o desmatamento da Amazônia na reunião com os jornalistas estrangeiros do dia 19 de julho citada no primeiro ato deste texto. Na abertura da reunião falaram ele, o general chefe da Segurança Institucional do governo, Augusto Heleno, e o ministro chefe da Casa Civil, Ônix Lorenzon. As falas são curtas e foram colocadas na internet pelo “SomostodosJairMessiasBolsonaro”, movimento nas redes sociais de apoio ao governo. No vídeo, basicamente o capitão reformado e o general atacam os estrangeiros que dizem conhecer a Amazônia e serem defensores dos interesses dos seus indígenas. O general citou o exemplo de um ministro de relações exteriores que conheceu, de nome Lutzemberg, que teria escrito “livros e teses” sobre a região e que “como a maioria desses defensores da Amazônia nunca botaram o pé lá”. É “gente que fala essas barbaridades”, como a “de que a Amazônia vai acabar em dois anos” e por trás das quais, com certeza, “existem interesses escusos”. Estes estariam na cobiça pelos recursos da biodiversidade da região, avaliada pelo general, “moderadamente, em mais de trilhão de dólares”. O capitão presidente foi mais longe. Falou como se fosse um professor. “O que vocês têm de entender é o seguinte: que os últimos presidentes eram fracos, antipatrióticos e corruptos. E que isso mudou. Entendemos a importância da Amazônia para o mundo. Mas a Amazônia é nossa. Vocês querem, pelo que tudo indica, que o índio continue como um homem pré-histórico, que não tenha acesso à tecnologia, à ciência, às informações, às maravilhas da modernidade”. E concluiu: “é um crime o que grande parte da imprensa mundial faz contra o Brasil e contra esses seres humanos”. Lorenzon também deu um exemplo de uma pesquisadora que lhe teria escrito dizendo como, por meio de pequenos aviões, os estrangeiros tem acesso às nossas reservas florestais e as comunidades indígenas enquanto os pesquisadores brasileiros, como ela, não teriam. E encerrou o ato para abertura às perguntas dos jornalistas dizendo que o Brasil não merece críticas quanto ao tratamento da Amazônia: ao contrário, o Brasil poderia “ensinar a qualquer país do mundo” como proteger seu meio ambiente.

Planos para proteger a Amazônia contra interesses escusos mal definidos existem muitos. Muitos também são grotescos, como o recentemente aflorado da cabeça do presidente Bolsonaro para proteger duas das maiores reservas indígenas ao norte do País, a Ianomâmi e a Raposa Serra do Sol. “A terra e riquíssima”, juntem-se as duas áreas, disse ele, e “é um absurdo o que se tem de riqueza. Estou procurando o primeiro mundo para explorar essas áreas em parceria e agregando valor. Por isso a minha aproximação com os Estados Unidos. Por isso, eu quero uma pessoa de minha confiança na embaixada dos EUA”, disse referindo-se a seu propósito de indicar o filho Eduardo para o posto. “Quero contato rápido e imediato com o presidente americano”.

Jair Bolsonaro

Os planos dos governos militares do período 1964-1985, que Bolsonaro tanto admira, não foram tão grotescos assim, mas o principal deles também surgiu de um estalo na cabeça do general Garrastazu Médici que governou o Brasil de 1969 a 1974. O próprio Médici conta que estava visitando uma frente de trabalho organizada pelo governo para empregar nordestinos assolados por uma grande seca e, penalizado, disparou o PIN – Plano de Integração Nacional – processo que levaria “homens sem terra”, do Nordeste, para uma “terra sem homens” da Amazônia. Desse rompante surgiu, a toque de caixa, sem maiores estudos, o projeto que acabou rasgando, nos anos 1970, os cerca de 4,2 mil quilômetros da Transamazônica e os 1,5 mil da Cuiabá-Santarém. O lema oficial era nacionalisteiro: “integrar”, “para não entregar”, a Amazônia aos estrangeiros, obviamente. Nas margens dessa espécie de cruz de estradas que se abriu no País, do Nordeste para o interior da Amazônia e da capital do Mato Grosso para a segunda maior cidade do Pará, seriam assentadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, logo também criado, umas 100 mil famílias, cada uma recebendo 100 hectares de terra. O processo de colonização seria apoiado por agrovilas para assistência técnica, à saúde e a educação a cada 10 quilômetros de estrada.
Visava ocupar a região de modo planejado e sustentável. Mas, não foi o que ocorreu. Não existiu um estudo prévio dos solos por onde as estradas passariam e os da Transamazônica, logo se descobriu, eram muito frágeis. Os recursos do Estado brasileiro para financiar a estrutura de apoio aos nordestinos que se aventurassem pela nova fronteira – que eram abundantes nos anos 1968-1973, a era do “milagre econômico brasileiro”, de crescimento do PIB a taxas acima de 7% ao ano – logo minguaram.
No começo dos anos 1980 nem um quinto da meta de assentamentos tinha sido atingida e por falta de apoio muitos dos assentados deixaram a família na terra cedida e se embrenharam pelas matas em busca de ouro. Os anos 1980 para boa parte desse povo foi a migração para o garimpo de Serra Pelada no sul do Pará que chegou a produzir 7 toneladas de ouro por ano, no início, com amplo apoio oficial – da Caixa Econômica Federal, compradora oficial da produção, aos serviços de segurança e correios – e que atraiu cerca de 100 mil pessoas. Serra Pelada terminou como uma grande cratera de cerca de 200 metros de profundidade e uma extração de menos de um décimo do total inicial.

General Garrastazu Médici

A principal ocupação de área na Amazônia, já nos anos 1980 se deu por via da Cuiabá-Santarém e de uma forma muito diferente da sonhada pelo general Médici. O autor dessas linhas já tinha feito, no início dos anos 1970, uma grande reportagem na revista Realidade Amazônia, da Editora Abril, mostrando a ingenuidade dos que sempre afirmaram que o Brasil está sendo roubado por escusos interesses econômicos estrangeiros cujos pontas de lança seriam capciosos agentes disfarçados de pesquisadores de ciências humanas e missionários defensores de índios e ribeirinhos. O texto começa com a visita a um abnegado missionário americano que construiu um precário atendimento espiritual aos pobres habitantes das margens de um rio distante de Manaus. E se desenvolve com uma visita à Serra dos Carajás, onde a US Steel descobriu a fantástica jazida de ferro da região e outra às não menos extraordinárias jazidas de alumínio da região do rio Trombetas, perto de Oriximiná onde a canadense Alcan descobriu as reservas do minério a partir do qual se faz o metal, a bauxita.

Raimundo Rodrigues Pereira,
em edição especial para a revista Realidade,
sobre a Amazônia.

A exploração das riquezas representadas pelo ferro de Carajás, pelo alumínio do Trombetas, bem como pelo manganês do Amapá, de décadas anteriores, pode ser explicada pela sagacidade diabólica dos estrangeiros que se infiltram disfarçados por nossa grande floresta. Quem não se guia por essa teoria da conspiração, de que nós, os brasileiros, somos uns coitadinhos, e eles os americanos são o diabo sabe que os resultados econômicos do País decorrem de uma política de governo definida por correntes políticas, partidos e pessoas.

A bauxita de Paragominas

O Brasil já foi aliado dos americanos nos anos de 1942-1945 quando o governo de Getúlio Vargas cedeu a eles uma base aérea em Natal e participou junto com eles da Segunda Guerra Mundial, contra o nazifascismo. A siderúrgica estatal de Volta Redonda base da nossa indústria do aço foi feita com apoio americano. O nacionalismo de Vargas, no entanto, foi repudiado pelos americanos que passaram a se relacionar com os militares que, em nome do anticomunismo, apoiaram o golpe militar que o derrubou ao final da guerra. Vargas voltou ao governo em 1950, com apoio da esquerda. Em 1954 se matou num gesto de repúdio às acusações de uma espécie de operação contra ele promovida por uma lava jato da imprensa da época. Getúlio e seu sucessor, o vice Jango Goulart, são responsáveis por outras duas grandes estatais, também outras duas grandes sementes da industrialização do País: a Petrobras e a Eletrobras
A era iniciada com a Revolução antioligárquica de 1930 sob comando de Vargas e outros militares brasileiros reformistas é uma tragédia brasileira em câmara lenta, com o golpe contra Getúlio em 1945, seu suicídio em 1954 e o golpe militar que derrubou o governo de Jango Goulart, seu herdeiro político em 1964. A partir daí o Brasil enveredou pelos governos militares chefiados por generais tipo Bolsonaro – como Médici, Costa e Silva e João Figueiredo – depois pelo general Ernesto Geisel, um pouco menos grotesco e autor da distensão lenta gradual e segura, que levou o País de volta aos governos civis; e a partir de então pelos governos liberais e neoliberais de Collor e Fernando Henrique Cardoso.

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Medici, na inauguração da Transamazônica

A política de ocupação de boa parte das áreas em torno da Cuiabá-Santarém já é resultado desse rumo que o País passou a seguir, a partir do governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992) nas primeiras eleições diretas para presidente no Brasil, num pleito disputado também por Lula, do PT, e um dos herdeiros de Getúlio, Leonel Brizola, do PDT. Cuiabá é uma cidade cerca de mil quilômetros a oeste de Brasília. E a BR-163, que liga a capital mato-grossense às proximidades da foz do Amazonas em Santarém, no Pará, é uma espécie de paralela, a oeste, da BR-153, a Belém-Brasília, rodovia da década de 1950. Mas, enquanto a BR-153 é marginal à Amazônia, corta as franjas do leste da grande floresta, a BR-163 já a corta por dentro.
O repórter citado percorreu também, no esforço para entender a ocupação da Amazônia, a área da Cuiabá Santarém em 2005, logo após o assassinato da missionária americana naturalizada brasileira Dorothy Stang. Ela era defensora de índios e pequenos ocupantes de terras na região. Morreu aos 73 anos, com seis tiros, por pistoleiro a mando, tudo indica, de grileiros de terras.

Cuiabá fica na Baixada Cuiabana, uma depressão do território sulamericano onde se assenta o Pantanal e por onde corre, lentamente, para o sul, o rio Paraguai. As áreas rapidamente ocupadas às margens da BR-163 são mais altas em duzentos a trezentos metros. Formam a chamada Chapada dos Parecis. Nelas ficam as nascentes dos grandes afluentes do Amazonas por sua margem direita: contados a partir do leste, o Xingu, o Tapajós e o Madeira. A Cuiabá-Santarem fica entre as bacias do Xingu e do Tapajós.

A soja nas margens da Cuiabá Santarem

Suas margens foram ocupadas a partir do final dos anos 1970 não só por madeireiros e pecuaristas mas especialmente por agricultores vindos do sul em busca de terras para o plantio de soja. O madeireiro corta árvores seletivamente em função do seu valor e como o corte não é feito de modo planejado, empobrece a floresta. O pecuarista corta árvores, deixa troncos e queima o resto da vegetação, planta capim e solta gado na área, para engorda. Mas é a cultura de soja que coloca grandes máquinas no terreno, arranca os restos de troncos de árvores, despeja montanhas de calcáreo no solo para corrigir sua acidez e joga no terreno herbicidas espertos que sabem poupar o que é soja e detonar o que não é soja.

Cultura de soja

As preocupações dos países ricos com o desmatamento tomam forma a partir de 1990, com Collor. Numa reunião daquele ano em Houston, Texas, o G7 – grupo dos então países mais ricos do mundo formado por Estados Unidos, Alemanha, Japão, França, Inglaterra, Canadá e Itália – recomendou ao governo brasileiro a criação de um plano para a conservação da Amazônia e da Mata Atlântica sob orientação do Banco Mundial. No ano seguinte, em Londres, o mesmo G7 orientou o banco a criar o Rain Forest Trust Fund. E em 1992 foi criado pelo G7 o Pilot Program to Conserve the Brazilian Rain Forest (Programa Piloto para Conservar a Floresta Úmida Brasileira), PPG7. A partir dele multiplicaram-se as experiências da chamada exploração sustentável da Amazônia. De início foram experiências de empresas particulares que adquiriam terras na região e procuravam obter apoio público para seus projetos com aprovação técnica deles por organizações não-governamentais voltadas para o “desenvolvimento sustentável”. Estas ONGs se multiplicaram e também foram estimuladas pelo Banco Mundial. Em 1997 a ONU aprovou uma orientação que não mudava o sentido do “desenvolvimento sustentável” mas recomendava que ele fosse feito também em terras públicas, através de planos nacionais de florestas públicas. Em 2000 o governo Fernando Henrique Cardoso fez seu primeiro projeto desse tipo, com o intuito de conceder áreas públicas para exploração de madeira. E multiplicou a autorizações para a exploração de madeira em condições consideradas sustentáveis, tanto em terras públicas, como privadas. Em 2000, o governo tinha concedido 3000 autorizações de manejo florestal na Amazônia.
Na véspera da mudança de governo, no final de 2002, entidades internacionais e empresários chegaram a temer que o novo presidente, Lula, adotasse uma política diferente da de seus antecessores quanto à Amazônia. Entre 2 e 6 de dezembro de 2002, numa reunião em Brasília, o Grupo de Assessoria Internacional do PPG7 reclamou de um contexto de “relativa falta de definição sobre o rumo do Programa Piloto para a Proteção das Floresta Tropicais do Brasil”. Dias depois, o governo FHC enviou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 7492~02 para regulamentar o Plano Nacional de Florestas, que previa a concessão de 50 milhões de hectares para exploração de madeira em terras públicas através de concessões por 60 anos, prorrogáveis por mais 60. O projeto foi reformulado pelo governo Lula. O Banco Mundial pareceu satisfeito com esse encaminhamento. No dia 24 agosto do ano de 2004 já na gestão Lula, portanto, anunciou junto com o governo brasileiro um programa pelo qual emprestaria ao país até US$ 1,2 bilhão, em quatro anos, “o maior empréstimo já feito pelo Banco no setor de meio ambiente em todo o mundo”. Nas palavras do diretor para o Brasil e vice-presidente do Banco Mundial, Vinod Thomas, o empréstimo é um reconhecimento do “compromisso do governo brasileiro com a área ambiental”. O projeto de lei com o plano para concessões de áreas florestais do presidente Lula foi anunciado no dia 17 de fevereiro de 2005, cinco dias depois da morte de Dorothy Stang.

Países membros do G7

O Plano para a área da BR-163 vinha sendo discutido com entidades ecológicas e com audiências públicas na área desde 2003. A morte da missionária foi o pretexto para a urgência das medidas e para o acompanhamento militar e policial a uma caravana governista pela rodovia, em um novo ciclo de audiências. O Plano partia da avaliação de que “a maioria dos proprietários e produtores rurais” não respeitava “a legislação obre a manutenção das reservas legais e áreas de preservação permanente”. E era visto pelo governo como “um plano piloto”, parte de um plano mais geral, o Plano Amazônia Sustentável, que fala de um “novo modelo de desenvolvimento para a região”. A grande esperança desse plano geral era a concessão de grandes áreas – em três classes, de 10.000 hectares, 40.000 hectares e até 200.000 hectares. O governo parecia esperar que grandes empresas, nacionais e estrangeiras, não só explorassem o potencial madeireiro da Amazônia, como o fizessem de um modo sustentável, diferente do que está em curso atualmente. Quando se via pelo Plano da BR-163 o mapa onde estavam assinalados os desmatamentos, se entendia o que o governo pretendia com a interdição administrativa que baixou sobre 8,2 milhões de hectares à esquerda da estrada, na região de Novo Progresso. Era ali que estavam a frente pioneira que começa a desbravar as terras, em termos que não são os do plano do governo.

Resultado de imagem para Plano Amazônia Sustentável

Nos debates havidos então em Novo Progresso e depois em Santarém, que o repórter acompanhou o que se viu foi o interesse dos pequenos proprietários para que o governo tivesse uma ação mais decisiva, de proteção aos pequenos agricultores. O governo Lula tinha incentivado o INPE a criar o Deter, o Sistema de Desmatamento em Tempo Real, em 2004. Tinha os mapas dos desmatamentos feitos em cada ano anterior de 2000 a 2004. Neles se viam milhares de desmatamentos recentes na área da BR-163. Na área abrangida pelo Plano de Desenvolvimento Sustentável da BR existiam 33 reservas indígenas, com aproximadamente 25% da área, pouco mais de 30 milhões de hectares. Existiam também áreas protegidas, como unidades de conservação de proteção integral, e áreas protegidas para serem exploradas de modo sustentável; estas, eram 35 áreas menores, com cerca de 13% total. Mais 7,5% das áreas da região do Plano eram reservadas para 177 assentamentos de colonos, ribeirinhos ou remanescentes de quilombos; estas áreas somavam 7,5 milhões de hectares, para cerca de 90 mil famílias. O problema é que: 1) menos de um décimo das áreas indígenas estavam delimitadas efetivamente; 2) grande parte dos assentamentos de colonos estava no papel e muitos dos que existiam estavam em situação precária; e 3) os desmatamentos a partir de pontos isolados, embora, no mapa, parecessem respeitar consideravelmente as áreas indígenas e de preservação, tinha avançado espetacularmente em todo Mato Grosso (avançou também a partir da Belém Brasília e da PA-l5O, estrada que desce de Belém ao longo do Tocantins e do Araguaia, passa por Marabá e se estende até Barra do Garças, no sul de Mato Grosso). O governo calculava que, desde 1974, mais de 60 milhões de hectares tinham sido desmatados e a região norte de Mato Grosso era uma das campeãs do desmatamento.
Ou seja, a grande agricultura capitalista do norte do Estado tinha desmatado para valer. O desmatamento do Estado de Mato Grosso poda ser, portanto, um fato já praticamente consumado. O plano do governo se voltava, portanto, para o Pará. É esta a razão de o governo ter decretado o regime de interdição federal em 8,2 milhões de hectares de terras a oeste da BR-163, perto de Novo Progresso: são áreas públicas que estavam sendo ocupadas e onde, se vê no mapa, já começava o novo desmatamento.
É este o problema que estamos vendo agora e que pessoas espertas como Jair Bolsonaro, Augusto Heleno, Ônix Lorenzon e Ricardo Salles não querem ver. Eles foram colocados no comando do Estado brasileiro por um movimento político e social que demonizou o Partido dos Trabalhadores e especialmente seu grande líder Luiz Inácio Lula da Silva. Bolsonaro, Heleno e Salles tergiversam e mentem descaradamente quanto às causas e extensão dos desmatamentos. Planejam agora uma grande venda de estatais que evidentemente deixaria o Estado brasileiro ainda mais fraco. O desenvolvimento do Brasil, sem uma ação firme do Estado, sem uma atuação pioneira de estatais que abram caminhos, sem uma atuação firme em defesa dos pequenos produtores e dos trabalhadores não consegue sequer promover a defesa de um patrimônio tão importante, para o Brasil e para o mundo, como é o da grande floresta amazônica.

Leia também:

https://nocaute.blog.br/2019/08/19/uma-tragedia-amazonica/

https://nocaute.blog.br/2019/08/21/uma-tragedia-amazonica-2

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UMA TRAGÉDIA AMAZÔNICA https://nocaute.blog.br/2019/08/21/uma-tragedia-amazonica-2/ Thu, 22 Aug 2019 01:21:57 +0000 https://nocaute.blog.br/?p=53043 Em parceria com a editora Manifesto, Nocaute publica hoje a segunda parte da série de reportagens “Uma tragédia Amazônica – Peça em três atos”, de autoria de Raimundo Rodrigues Pereira. A reportagem de hoje mostra que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, manipula dados do INPE para entregar à iniciativa privada a responsabilidade de monitorar a devastação da Amazônia. Esta semana o descontrole sobre as queimadas fez anoitecerem às três horas da tarde São Paulo e outras cidades brasileiras, cobertas de fumaça e chuva ácida.

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Em parceria com a editora Manifesto, Nocaute publica hoje a segunda parte da série de reportagens “Uma tragédia Amazônica – Peça em três atos”, de autoria de Raimundo Rodrigues Pereira. A reportagem de hoje mostra que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, manipula dados do INPE para entregar à iniciativa privada a responsabilidade de monitorar a devastação da Amazônia. Esta semana o descontrole sobre as queimadas fez anoitecerem às três horas da tarde São Paulo e outras cidades brasileiras, cobertas de fumaça e chuva ácida.

Peça em três Atos
ATO 2

QUE TRATA DA MÁ FÉ

No dia 27 de julho, um sábado, uma semana depois do café da manhã com os correspondentes da  imprensa estrangeira no Brasil, no qual disse ter “a convicção” de que os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais sobre o desmatamento da Amazônia eram “mentirosos”, o presidente Bolsonaro anunciou para os jornalistas “novos dados sobre o INPE”, com a seguinte promessa: “Vocês vão ter uma surpresa”. E, de fato, a surpresa não demorou. No início da semana seguinte, a imprensa foi convocada para uma reunião no Palácio do Planalto na quinta, 1 de agosto. Nela estava a mesa formada pelo presidente, o ministro das Relações Exteriores, o general chefe da Segurança Institucional já citados no capítulo anterior, para uma exposição do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sobre o INPE. A reunião durou cerca de 1 hora, incluindo o final com perguntas dos jornalistas e respostas da mesa. E Salles ocupou a parte principal do evento.

O que disse Salles? O vídeo com a íntegra da reunião estava no Youtube, sem edição, até recentemente. No fechamento do texto deste segundo ato de nossa história, já em meados de agosto, continuava na internet, mas com um leve trabalho de edição, aparentemente de uma empresa de publicidade ligada ao governo. Salles faz uma exposição de slides e os comenta. E diz basicamente que: 

1 – Não está negando o fato de que o desmatamento da Amazônia está aumentando, desde 2012, como já vimos pelos números do Prodes de 1988 a 2018 publicados no capítulo anterior;

2 – No dia anterior, se reuniu com as equipes do INPE e do IBAMA e sua exposição sintetiza também as conclusões dessas equipes;  

3 – Na exposição estará trabalhando exclusivamente com os dados do INPE; 

4 – O INPE não tem capacidade para ver inúmeros desmatamentos em tempo real, quando de fato eles estão acontecendo.  Destaca na sua apresentação dois polígonos de desmatamento apresentados como sendo de junho de 2019, mas que, de fato, ocorreram por partes, em meses anteriores e até mesmo em 2017. Um deles, com 470 hectares desmatados, de fato teria ocorrido em 9 pedaços distintos, com tamanhos variáveis entre 7 e 161 hectares. Ao apresentar esses pedaços nos slides ele vai repetindo: “O Deter não pegou”, “o Deter não pegou”, “o Deter não pegou” …

5 – O INPE manipula os dados, conta mais de uma vez áreas desmatadas e infla os números divulgados.

6 – “Pretende contratar” um novo sistema de monitoramento; “foi combinado”, entre ele e o ministro de Ciência e Tecnologia que os quadros técnicos do INPE serão recompostos, porque os levantamentos de dados atuais “não são feitos por profissionais mas por bolsistas” e os futuros profissionais “terão à disposição os dados que estamos contratando”;

A demonstração de Salles não convenceu os jornalistas presentes nem o autor destas linhas. Primeiro porque há indícios claros de que ele mentiu várias vezes. Não é verdade que ele usou apenas os dados do INPE na sua exposição e não é verdade também que a equipe do instituto que foi a Brasília para a reunião de véspera da exposição tenha concordado com o conteúdo dela. No INPE há uma revolta contra o comportamento do governo nessa questão. Os funcionários promoveram uma reunião para esclarecimento do assunto no dia 9 de agosto, no auditório principal do instituto, que cabe cerca de 120 pessoas e tinha cerca de 200, muitas sentadas nas escadarias ou de pé. Estavam presentes funcionários das diversas áreas de pesquisa da instituição. Falou um dos principais encarregados pelos sistemas de sensoriamento remoto, Cláudio Almeida. Ao final de sua exposição houve uma longuíssima salva de palmas, uma verdadeira manifestação de desagravo dos pesquisadores de todo o INPE a seus colegas do setor de sensoriamento. Almeida esteve em Brasília para a reunião com Salles na véspera de sua exposição. Desmente que a equipe do instituto tenha concordado com o que Salles apresentou no dia seguinte. Disse que até meados de agosto, quando ouvido para este texto, Salles não lhe tinha enviado,  como prometera, os dados que usou na exposição, para que o INPE pudesse compará-los com os de seus arquivo a fim de dar uma resposta precisa às acusações que ele fez ao Deter.  

Na sua exposição, em nenhum momento Salles disse que estava apresentando um trabalho feito com os dados de uma empresa privada de sensoriamento que ele pretende contratar. No entender do autor destas linhas, com certeza, por má fé. Porque seu objetivo com a exposição era o de desmoralizar os dados do INPE, apresentar imagens novas, que seriam muito mais precisas, muito mais “de tempo real” que as do Deter, de uma empresa que está pretendendo contratar. O importante na exposição de Salles não é o que ele disse, mas o que deixou de dizer no ato solene de 1 de agosto: que sua palestra foi montada pela empresa que ele quase anuncia que está contratando, mas não o faz porque isso seria, evidentemente, uma ilegalidade. Como, “está contratando” essas imagens extraordinárias? Como contratar sem licitação? Que empresa é esta? 

Examinados os slides com mais detalhe se vê o selo dos serviços do Planet, um sistema de sensoriamento remoto, americano, com 120 satélites, ultramoderno, com muito maior capacidade de revisitação da área que está sendo desmatada e muito mais poder de resolução do que a do sistema de satélites do Deter. Mas, em compensação, é muitíssimo mais caro. O sistema está sendo negociado através da empresa paulista de geoprocessamento Santiago & Cintra com o Ministério do Meio Ambiente e o Ibama, diz o diário O Estado de S. Paulo. Já estaria sendo usado num “teste gratuito” dentro do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), diz o jornal. A empresa já teria realizado diversas reuniões com representantes do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente, mas nem o Ibama nem o ministro dão detalhes sobre essas negociações. Poucos dias após a exibição de 1 de agosto com as imagens da Planet o Ibama publicou uma portaria nomeando uma “equipe de planejamento de contratação” para escolher um sistema de sensoriamento com a estimativa de que ele custaria cerca de R$ 7 milhões. O Estado ouviu “especialistas em captação e processamento de imagens”. Para eles, da forma como foi descrito na portaria, trata-se de um jogo de cartas marcadas, o único fornecedor do sistema capacitado é a Santiago & Cintra. A empresa não quis comentar o assunto com o jornal. No Ibama, o responsável pelo “planejamento da contratação”, Olivaldi Borges Azevedo, disse ao jornal “não ter tempo para tratar do assunto”. 

Amazônia em perigo! Noruega corta repasse de 133 milhões de reais

O Planet já foi usado no Pará. Segundo o atual governador do Estado, Helder Barbalho (MDB), em declarações a O Estado, o serviço foi feito por doação da própria empresa ao governo anterior. Depois, o programa foi pago com recursos do Fundo Amazônia.  Ao chegar ao governo, neste ano, Barbalho decidiu não comprar mais os serviços. “Se o governo tem recursos para comprar isso, deveria entregar as imagens para o Inpe. Ninguém tem melhor capacidade para processar isso no Brasil”, disse ao jornal o secretário de Meio Ambiente do governo, Mauro Almeida. O governo do Pará teria de pagar R$ 3,5 milhões iniciais pelo serviço, mais R$ 4,5 milhões ao ano em imagens à Santiago & Cintra. “Por que gastar esse dinheiro se temos os serviços gratuitos do INPE? 

O Estadão diz ainda que o governo do Mato Grosso decidiu que deixará o INPE e adotará o sistema da Santiago & Cintra. O governador, Mauro Mendes (DEM), disse ao jornal que já tinha começado “a usar o sistema”. O contrato feito, sem licitação, é de R$ 5,9 milhões e seria bancado também pelo Fundo Amazônia. O argumento do governador do Mato Grosso para a contratação sem licitação é o fato de o sistema ter custo zero porque foi pago pelos alemães. Mas o governador parece estar vendo as árvores do seu Estado e não o quadro mais geral.  O Fundo Amazônia não é um acordo entre países estrangeiros com estados brasileiros. Ele foi proposto em 2006 pelo Brasil numa das conferências das Nações Unidas sobre o clima. Foi criado por decreto do governo brasileiro em 2008 para receber doações e financiar projetos contra o desmatamento e a degradação da grande floresta, sob a administração do BNDES. Até agora, teve três apoiadores, um deles, a Noruega, destacadamente o principal: contribuiu com 97,4% dos 3,4 bilhões de reais arrecadados – os outros dois são a Alemanha, com 2,1% do total e a Petrobras, com 0,5%. 

Mas, há meses o ministro Salles entrou em conflito com o Fundo. Primeiro com o seu gestor, o BNDES. Tentou obter, numa visita surpresa, sem solicitação formal, os contratos da centena de projetos financiados onde vislumbraria irregularidades. Rechaçado pelos funcionários, conseguiu do então presidente do banco, Joaquim Levy, a demissão da chefe do Departamento do meio Ambiente, Daniela Baccas. Mais recentemente, mudou as regras de gestão do fundo sem consulta aos seus parceiros europeus. A Noruega e a Alemanha deixaram o acordo. Para completar o malfeito, ele e Bolsonaro atacaram os dois países. O presidente disse que o Brasil não precisava desses recursos e que a Noruega deveria repassá-los à Alemanha para seu reflorestamento. 

Pobre Amazônia

Mas, como foi amplamente mostrado em nossa história, o Deter apenas aponta áreas que estão sendo desmatadas para verificação pelo Ibama e eventual ação repressiva dos órgãos encarregados dessa tarefa. E o que aconteceu nesses primeiros meses do governo Bolsonaro foi o Ibama ter reduzido em muito o seu trabalho de autuação dos infratores – de uma média de 2 alertas do Deter para cada autuação do órgão entre os anos 2016-2018, para uma média de perto de 30 alertas do Deter para cada autuação, nos primeiros meses do governo Bolsonaro. Os dados são de 3 de junho passado, e foram fornecidos ao Jornal do Brasil digital pelo MapBiomas, iniciativa que reúne universidades, ONGs e empresas de tecnologia.  O MapBiomas utiliza diversos bancos de dados nacionais, como o do Deter, o Cadastro Ambiental Rural e o Sistema Nacional de Controle da Origem de Produtos Vegetais (Sinaflor). Tasso Azevedo, coordenador do MapBiomas, disse ao jornal: “O mais importante é ir atrás dos alertas que já são gerados e garantir que quem fez errado será penalizado. Enquanto as pessoas acharem que, em 150 mil alertas, apenas 1% será penalizado, o estímulo ao desmatamento é muito grande.” Azevedo apresentou ao jornal um corte raso de 14,76 km2 dentro da Floresta Nacional (Flona) do Jamanxim, que fica na região da base do IIbama em Novo Progresso, no Pará. A região era uma das prioridades do GEF (Grupo Especializado de Fiscalização), a unidade de elite do Ibama. Sob Bolsonaro, porém, até agora não houve nenhuma operação na Amazônia e a base de Novo Progresso Ibama estava fechada. 

Da ação do ministro Salles em defesa de uma política adequada para o meio ambiente brasileiro se deve esperar pouco. Advogado, 44 anos, Salles é uma espécie de Bolsonaro mais jovem. Tem 44 anos, foi secretário particular de Geraldo Alckmin e Secretário do Meio Ambiente do governador de São Paulo entre 2013 e 2017. Começou a se destacar na política em 2006, quando, com alguns amigos, fundou o movimento Endireita Brasil e se candidatou a deputado federal pelo PFL. Com 9466 votos, não se elegeu. Em 2010 foi candidato pelo DEM, teve 26552 votos e também não se elegeu. Em 2018 se candidatou pelo Partido Novo, teve 36.603 votos e também ficou de fora. Nesta campanha se destacou pela propaganda aberta da violência. Escolheu o número 3006, que é o de uma bala para fuzil, como o de sua candidatura, sugerindo que a munição fosse usada “para combater a praga do javali”, “a esquerda e o MST”. 


Cartaz da propaganda de Salles com o número da bala de fuzil

Desde 2017  responde a ação do Ministério Público de São Paulo sob a acusação de ter, como secretário do Meio Ambiente do governo de São Paulo, fraudado o Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental da Várzea do Rio Tietê. Foi enquadrado nos crimes de advocacia administrativa e enriquecimento ilícito. Ele e a Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) teriam modificado mapas elaborados pela Universidade de São Paulo, alterado minutas do decreto do plano de manejo da APA e promovido a perseguição a funcionários da Fundação Florestal do Estado, com o propósito de favorecer em especial empresas da área de mineração filiadas à entidade empresarial. Em dezembro do ano passado foi condenado por improbidade administrativa e a perda de seus direitos políticos, contra o que recorreu. No governo Salles prometeu acabar com a “festa” de multas ambientais, Indicou para a presidência do Ibama Eduardo Fortunato Bim que já se manifestou a favor da revisão completa das regras de regulação ambiental, qualificando-as de precárias e artesanais e disse que pretende autorizar os produtores rurais a emitirem seu próprio licenciamento. 

Para a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva, Bolsonaro não promoveu a política de fundir o Ministério da Agricultura com o do Meio Ambiente, mas, sim, está fazendo uma política de demolição do ministério do Meio Ambiente Um manifesto popular contra sua nomeação teve mais de 285 mil assinaturas. Em maio deste ano sete ex- ministros do Meio Ambiente se reuniram e divulgaram um manifesto suprapartidário no qual acusaram Salles e Bolsonaro de promoverem ativa e deliberadamente um programa sistemático de anulação de todas as conquistas ambientais das últimas décadas, o que inclui o desmantelamento de instituições de importância central como o Ibama e o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade. A propósito do notável ambientalista acreano, Salles escreveu acusando-o de explorador dos seringueiros.

(A série uma “Uma tragédia amazônica” será publicada também por Manifesto Jornalismo,  revista impressa, com a qual Nocaute está desenvolvendo uma parceria).

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UMA TRAGÉDIA AMAZÔNICA https://nocaute.blog.br/2019/08/19/uma-tragedia-amazonica/ Mon, 19 Aug 2019 22:17:54 +0000 https://nocaute.blog.br/?p=52900 A série de reportagens “Uma tragédia Amazônica – Peça em três atos”, de Raimundo Rodrigues Pereira, que começamos a publicar hoje, registra o início da parceria entre o Nocaute e a Editora Manifesto. Um dos mais completos jornalistas de sua geração, Raimundo trabalhou nos mais importantes veículos brasileiros e foi criador e editor dos jornais “Opinião” e “Movimento”, símbolos da luta contra a ditadura militar. A série “Uma tragédia Amazônica…” traz os bastidores da guerra pela preservação do maior pulmão verde do planeta.

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A série de reportagens “Uma tragédia Amazônica – Peça em três atos”, de autoria de Raimundo Rodrigues Pereira, que começamos a publicar hoje, registra o início da parceria entre o Nocaute e a Editora Manifesto. Um dos mais completos jornalistas de sua geração, Raimundo trabalhou nos mais importantes veículos brasileiros e foi criador e editor dos jornais “Opinião” e “Movimento”, símbolos da luta contra a ditadura militar. A série “Uma tragédia Amazônica…” traz os bastidores da guerra pela preservação do maior pulmão verde do planeta.

Peça em três Atos
ATO 1

Que trata da ignorância e da estupidez

No dia 19 de julho passado, num café da manhã com jornalistas estrangeiros, o presidente da República, Jair Bolsonaro, referindo-se a artigos na imprensa sobre o desmatamento da Amazônia cuja origem são números colocados na internet por programas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), fez várias afirmações contundentes: “A questão do INPE, eu tenho a convicção que os dados são mentirosos e nós vamos chamar aqui o presidente do INPE para conversar sobre isso e ponto final nessa questão”. “Mandei ver quem está à frente do INPE. Até parece que está a serviço de alguma ONG, o que é muito comum.” “Se for somado o desmatamento que falam dos últimos dez anos, a Amazônia acabou. Eu entendo a necessidade de preservar, mas a psicose ambiental deixou de existir comigo”.

“psicose ambiental deixou de existir comigo”.

As falas do presidente refletiam um misto de estupidez e ignorância. O presidente do INPE, Ricardo Galvão, como disse em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo um dia depois da fala de Bolsonaro, tem “71 anos”, “48 de serviço público”,  está “ainda na ativa” e “nunca” teve qualquer relação com ONGs, “nunca” recebeu mais do que seu salário como servidor público. E mais do que isso, não se intimidou com os ataques: “Na verdade ele (o presidente) faz (a acusação) em duas partes. Na primeira, ele me acusa de estar a serviço de uma ONG internacional. Ele já disse que os dados do INPE não estavam corretos segundo a avaliação dele, como se ele tivesse qualidade ou qualificação de fazer análise de dados.” Uma coisa é Bolsonaro, como presidente eleito, “que respeito”, disse Galvão. Outra coisa é o seu comportamento público. “Em entrevistas com a imprensa ou mesmo em outras manifestações, ele tem um comportamento como se estivesse em botequim”. E acrescentou: “ele fez acusações indevidas a pessoas do mais alto nível da ciência brasileira, não estou dizendo só eu, mas muitas outras pessoas”. 

“ele [Bolsonaro] tem um comportamento como se estivesse em botequim”.

As grosserias do presidente contra o cientista refletiam também sua ignorância a respeito do assunto. Como disse Galvão: “Esses dados sobre desmatamento da Amazônia, feitos pelo INPE, começaram já em meados da década de 70. A partir de 1988 nós temos a maior série histórica de dados de desmatamento de florestas tropicais respeitada mundialmente.” 

O INPE tem dois sistemas básicos para monitoramento dos desmatamentos da Amazônia. O Prodes e o Deter. O Prodes é o mais antigo. Desde 1988 ele mede as áreas da Amazônia desmatadas pelo chamado corte raso das árvores, com eliminação completa da cobertura vegetal, e essa medição é usada pelo governo para o estabelecimento de políticas públicas. Seus dados são usados, por exemplo, nos termos de “ajustamento de conduta” para a conservação de áreas cobertas previstas no Código Florestal em terras do agronegócio. E também nos acordos internacionais relacionados com a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas e com as Doações de Países Estrangeiros para o Fundo Amazônia, destinado a apoiar projetos para a exploração sustentável da região. 

Sistema PRODES em ação.
Foto avaliada pelo INPE como: Desmatamento (Corte Raso) (Solo exposto)

A primeira medição do Prodes é apresentada em dezembro de cada ano, com o total de desmatamentos estimado para o ano. Os dados consolidados saem no final do primeiro semestre do ano seguinte. Os referentes a 2018 saíram preliminarmente em dezembro. E, no início de julho deste ano saíram os dados consolidados. Eles mostram que foram desmatados no ano passado – por corte raso, ou seja, com retirada total da cobertura florestal – 7.536 quilômetros quadrados da floresta amazônica.

É muito, ou pouco? É uma área pequena em relação ao tamanho da grande floresta – menos de dois décimos de milésimo dos seus cerca de 4 milhões de quilômetros quadrados atuais.  Mas não é desprezível: é como se um incêndio gigante tivesse destruído em um ano uma área bem maior que a do território do Distrito Federal, que tem 5780 quilômetros quadrados. E o que é pior: o desmatamento voltou a crescer. No gráfico com o número de quilômetros quadrados de desmatamento anual feito com a série de dados do Prodes, se vê que a situação já foi muito pior, com desmatamentos de sempre mais de 10 mil quilômetros quadrados por ano e picos de desmatamento entre 20 mil e perto de 30 mil quilômetros quadrados por ano entre 1988 e 2004. Mas, no mesmo gráfico se vê, no entanto, que o desmatamento vinha caindo progressivamente, desde o máximo de 27.772 quilômetros quadrados desmatados em 2004, para menos de 5 mil quilômetros quadrados desmatados em 2012. Desde então, vem aumentando. E o mais estranho em nossa história é que a revolta do presidente contra os números do desmatamento, não visa os números fornecidos pelo Prodes. Visa os números do outro sistema operado pelo INPE, o Deter, de alertas de desmatamento da Amazônia em tempo real, criado em 2004 para agilizar as ações de confirmação no local e de repressão aos desmatadores.

O Deter, diga-se a bem da verdade, criado em 2004, por iniciativa de técnicos e dirigentes do governo Lula, entre os quais deve-se destacar a então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva é considerado a peça essencial para a queda no desmatamento citada há pouco, dos quase trinta mil quilômetros quadrados de desmatamentos de 2004 para os 4.571 quilômetros quadrados de desmatamentos de 2012.

Ressalte-se ainda: Bolsonaro se rebelou contra a divulgação pela imprensa dos dados do INPE de um programa cujos resultados são públicos há 15 anos! No início de julho os jornais publicaram que os alertas de desmatamentos do Deter, na comparação de abril de 2018 contra abril de 2019, mostravam um aumento da área atingida, do ano passado para este ano, de 27%; e na comparação de junho de 2018 contra junho de 2019, um aumento maior das áreas atingidas, de 90,8%.

Como disse Galvão ao Estadão ainda como presidente do INPE: o Brasil começou a receber dados para acompanhamento do desmatamento da Amazônia há mais de 40 anos, em meados dos anos 70 do século passado, a partir do programa de satélites Landsat, dos americanos. Atualmente, o INPE utiliza uma mistura de imagens das versões mais atuais dos satélites americanos de tipo Landsat, dos satélites lançados pelo programa sino-brasileiro de pesquisa espacial CBERS (em inglês, China Brasil Earth Research Satellite), além de imagens de satélites de programas de pesquisa espaciais da Índia e da Inglaterra. Além do mais, os alertas de desmatamento não são fornecidos pelo INPE diretamente. Como explicou Falcão na entrevista citada, os dados são fornecidos ao Ibama. “Isso começou ainda na gestão da ministra Marina Silva (2003-2008) por demanda do próprio Ministério do Meio Ambiente, que ela então dirigia. Os dados são acessados pelo Ibama na nossa página na internet. Mas estão abertos para todo mundo. São publicados em revistas científicas internacionais. Então, chamar isso de manipulação é uma ofensa inaceitável”.

“A raiz do problema”, é o título do gráfico que ilustra o artigo do Economist, edição de 3 de agosto último. Ele dá, nos últimos 30 anos, ano a ano, os números, em milhares de quilômetros quadrados da área desmatada da floresta amazônica. Cada mil quilômetros quadrados equivale a 140.000 campos de futebol, esclarece a revista.

E, por último, ainda neste capítulo, é preciso ressaltar o que diz e repete o INPE, oficialmente, em seu site. “O DETER não é um sistema de medição do desmatamento da Amazônia. É um levantamento rápido de alertas de evidências de alteração da cobertura florestal na Amazônia”. Ele foi desenvolvido para apoiar a “fiscalização e controle de desmatamento e da degradação florestal” a serem realizadas pelo IBAMA) e demais órgãos de governo com essa função. “O DETER captura apenas parte das alterações ocorridas, devido à menor resolução das imagens e dos sensores utilizados e as restrições de cobertura de nuvens. Em vista dessa cobertura de nuvens ser variável de um mês para outro, a comparação entre dados de diferentes meses e anos obtidos pelo sistema DETER deve ser feita criteriosamente. Os dados do DETER podem, ainda, incluir processos de desmatamento ocorridos em períodos anteriores ao do mês de mapeamento, mas cuja detecção não fora possível antes por limitações de cobertura de nuvens. É preciso distinguir entre o tempo de ocorrência e a oportunidade de detecção que é dependente do regime de nuvens”.

O Deter é, diz o INPE, um sistema em evolução. De maio de 2004 a dezembro de 2017, ele operou com base nos dados de sensores com os quais era possível detectar apenas alterações na cobertura florestal com área maior que 25 hectares. Devido ao fato de a Amazônia ser uma região muito úmida e frequentemente coberta por nuvens nem todas as alterações da cobertura vegetal são identificadas pelo DETER. Em agosto de 2015 o INPE começou a operar também uma nova versão do DETER, com capacidade de resolução maior, capaz de identificar e mapear, em tempo quase real, desmatamentos e demais alterações na cobertura florestal com área mínima próxima a 1 hectare. O INPE repete ainda que seu “número oficial” para “medir a taxa anual de desmatamento por corte raso na Amazônia Legal brasileira é fornecido, desde 1988, pelo projeto PRODES”. A despeito de todas essas advertências oficiais do INPE para que não sejam usados os números do Deter para fazer comparações mensais ou anuais de desmatamento, foi isso o que fez o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, cerca de duas semanas depois da diatribe do presidente contra o INPE para os jornalistas estrangeiros, numa espécie de pronunciamento oficial da presidência da República, com a presença de mais dois ministros – o das Relações Exteriores, Eduardo Araújo e o da Segurança Institucional, general Augusto Heleno – e sob o comando do próprio presidente Jair Bolsonaro. É o que se verá no próximo Ato dessa tragédia.

(A série uma “Uma tragédia amazônica” será publicada também por Manifesto Jornalismo,  revista impressa, com a qual Nocaute está desenvolvendo uma parceria).

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