Brasil

Uma viagem por nosso balanço de pagamentos

A safra de deficits do primeiro ano do “novo normal” da economia brasileira.

O balanço de pagamentos do Brasil, com as contas de janeiro de 2019 a janeiro de 2020, primeiro ano do governo Bolsonaro-Guedes, está na internet. São 31 tabelas, cerca de mil linhas e 3 mil números. Mas não é difícil de entender para quem tenha interesse e domine as operações aritméticas básicas de soma e subtração.

Comecemos pela Tabela 1, chamada exatamente de “Balanço de Pagamentos” e, nela, pela Conta 1 nessa tabela, a das chamadas “Transações Correntes”. Os países de economias dependentes, como a do Brasil, que exportam principalmente matérias-primas de baixo valor agregado – minérios, produtos agrícolas, carnes, sucos, máquinas e equipamentos de pouca elaboração – e importam celulares, computadores e máquinas e serviços sofisticados e caros, têm um indicador para os limites dessa dependência: o chamado deficit de transações correntes. Quando ele começa a crescer em aparente descontrole, acende um sinal vermelho: o país pode quebrar.

Transações correntes versus PIB

Desde o acordo de Bretton Woods, celebrado em 1945, após a II Guerra Mundial, com a criação do Fundo Monetário Internacional (FMI), fiscal geral das finanças e hospital para os países desvalidos. e com o estabelecimento do dólar como a moeda padrão para as transações entre os integrantes desse acordo, o peso da carga negativa das transações correntes do Brasil sobre suas contas ano a ano em dólar é acachapante. Vejam os gráficos que acompanham este texto. No primeiro se destacam duas coisas. Uma: nesses três quartos de século, de 1945 até 2020, o País tem apenas meia dúzia de anos com saldos positivos em transações correntes; a regra geral é o deficit. A outra: quando esses deficits chegam ao equivalente a 4% do produto interno bruto (PIB), o Brasil quebra – foi assim em 1975, no governo do general Ernesto Geisel; em 1982, no governo do general João Figueiredo; em 1998, no governo de Fernando Henrique Cardoso; e em 2014, no governo da presidente Dilma Rousseff.

Transações correntes-acumulado

O segundo gráfico é o de agora, do deficit de transações correntes do Brasil de janeiro de 2018 a janeiro de 2020. Ele mostra duas medições. Numa, em azul, o valor bruto acumulado em 12 meses. E, na outra, em vermelho, o deficit anual como porcentagem do PIB. No acumulado, o deficit era de 15 bilhões de dólares há dois anos. Foi para cerca de 40 bilhões de dólares em janeiro do ano passado. E passou de 50 bilhões no acumulado do ano até janeiro deste ano. Na medição como porcentagem do PIB, o deficit de transações correntes acumulado em 12 meses representava menos de 1%, há dois anos; chegou a 2,69% em 2019; e, no acumulado de um ano em janeiro passado, bateu em 3,25% do PIB – mais perto dos 4% da marca das quebradeiras passadas.

Para onde vai o Brasil, agora que o ministro da Economia, Paulo Guedes, diz que há um “novo normal”, uma nova ordem no desenvolvimento do País? O que há de novo? 

A conta de transações correntes de um país mede as operações em dólar do ano em três classes:

  1. as de compra e venda de bens;
  2. as de compra e venda de diversos tipos de serviços, como os de turismo, transporte de carga ou passageiros, aluguel de equipamentos, pagamentos por serviços de propriedade intelectual, de telecomunicações, computação e informação e;
  3. as de rendas, tanto as chamadas rendas primárias, das empresas – os ganhos obtidos com investimentos em fábricas, negócios, ações, empréstimos – como as secundárias, de rendas pessoais.

Na chamada balança comercial, da compra e venda de bens, no ano passado o País teve um saldo expressivo, 40,8 bilhões de dólares: exportou 225,8 bilhões e importou 185,0 bilhões. O rombo veio das outras duas contas: na compra e venda de serviços, que apresentou deficit de 35,1 bilhões de dólares; e na conta das rendas, que teve deficit de 56,1 bilhões nas chamadas rendas primárias e um saldo positivo de 1 bilhão de dólares das rendas secundarias, os trocados que milhares de trabalhadores brasileiros no exterior enviam para o País. Somando todos esses resultados, o Brasil teve um deficit de transações correntes de 49,4 bilhões de dólares em 2019.

Tanto o deficit de serviços como o de rendas mostram a fragilidade da economia brasileira. No caso dos serviços, são onze subcontas. No total do deficit de 35,1 bilhões de dólares, mais da metade decorre de duas delas: pagamos, em 2019, 14,6 bilhões de dólares pelo aluguel de máquinas e equipamentos estrangeiros e recebemos apenas 0,1 bilhão pelo aluguel de nossas máquinas e equipamentos. Para se ter uma ideia do que alugamos: uma plataforma de pesquisa e exploração de petróleo para o pré-sal chegou a custar 1 milhão de dólares de aluguel por dia. E em royalties por propriedade intelectual pagamos 5,3 bilhões e recebemos somente 0,6 bilhão de dólares.

Em apenas uma das 11 subcontas, a de “outros serviços e negócios”, que inclui “serviços de pesquisa, jurídicos, de publicidade, de engenharia e arquitetura, de limpeza e despoluição”, feitos por empresas no Brasil para empresas estrangeiras instaladas aqui, o Brasil tem um saldo expressivo, de 5,8 bilhões de dólares (receita de 15,3 bilhões e despesa de 9,5 bilhões).

O buraco maior nas transações correntes, como já visto, é na conta da renda primária, na comparação dos rendimentos que o País recebe pelas aplicações de suas empresas lá fora, com os que envia ao exterior para pagar o rendimento das aplicações das empresas estrangeiras aqui dentro. Por essa conta, em 2019, saíram do País 82,1 bilhões de dólares e entraram 26,0 bilhões, resultando no deficit de 56,1 bilhões de dólares já citado.

Vejamos com mais detalhe esse resultado das rendas primárias. São quatro parcelas de rendimentos. Três são negativas. Em bilhões de dólares: 1) as rendas de investimento direto, -36,0; 2) as rendas de investimento em carteira, -15,0; 3) as rendas de juros, -12,7. E uma parcela é positiva: as rendas das reservas cambiais brasileiras aplicadas no exterior, de 7,5 bilhões de dólares.

Examinemos cada uma delas. Primeiro, o deficit de 36 bilhões na renda dos investimentos diretos. Ele decorre do fato de as empresas estrangeiras terem recebido muito mais, nas três formas desses rendimentos:

  1. Foram 16,5 bilhões de dólares de deficit na conta de remessas de lucros e dividendos, decorrentes de 18,7 bilhões enviados do Brasil para as sedes no exterior das empresas estrangeiras instaladas aqui, contra 2,2 bilhões de dólares enviados para o Brasil pelas empresas brasileiras instaladas no exterior.
  2. Foram 10,1 bilhões de dólares de deficit de lucros reinvestidos, decorrentes de 25,1 bilhões de dólares em lucros reinvestidos aqui pelas empresas estrangeiras, contra 14,7 bilhões de dólares reinvestidos no exterior pelas empresas brasileiras.
  3. Foram 9,2 bilhões de dólares de deficit por juros de operações de empréstimo entre matriz e filial: as estrangeiras receberam 9,3 bilhões de dólares de suas filiais, contra 0,1 bilhão recebido pelas matrizes brasileiras de suas filiais. 

Em segundo lugar, examinemos os chamados investimentos em carteira, aplicações em ações, em cotas de fundos de participação e em títulos de dívida emitidos por empresas. O deficit do Brasil nessa conta é de 15 bilhões de dólares. E vem de três partes:

  1. 4,3 bilhões de dólares são decorrentes da diferença entre 4,4 bilhões de lucros e dividendos nessas aplicações, remetidos ao exterior pelas empresas estrangeiras instaladas aqui, contra 0,1 bilhão remetido para o Brasil nessas aplicações pelas empresas brasileiras em operação no exterior.
  2. 5,1 bilhões de dólares correspondem a um deficit resultante da diferença entre 5,3 bilhões remetidos ao exterior pelas empresas estrangeiras daqui por juros obtidos com títulos negociados no mercado externo, contra 0,2 bilhão de dólares remetidos para o Brasil por empresas brasileiras no exterior por juros obtidos por negócios realizados no mercado externo. 
  3. E 5,7 bilhões de dólares remetidos por empresas estrangeiras por juros com títulos negociados no mercado brasileiro, sem nenhuma contrapartida de juros obtidos pelo envio do resultado de aplicações em títulos adquiridos por empresas brasileiras no exterior.

A terceira renda negativa, de 12,7 bilhões de dólares de juros de empréstimos, se deve a 13,4 bilhões de dólares pagos por empresas e o Estado brasileiros por empréstimos tomados lá fora, contra 0,7 bilhão de dólares pagos por empréstimos de empresas estrangeiras no Brasil.

A única parcela positiva para o Brasil na categoria das rendas primarias é a das suas reservas: o País recebeu 7,5 bilhões de dólares pelo rendimento dessas aplicações no exterior, basicamente em títulos do Tesouro dos EUA. Tinha 357 bilhões de dólares de reservas no exterior, no final do ano passado.

Como fecha, então, o Balanço de Pagamentos do Brasil que parece ser, pela descrição feita, um conjunto de deficits? A Tabela 1 do documento do Banco Central, citado neste artigo, chamada de Balanço de Pagamentos, no fundo dá uma resposta implícita a essa pergunta, com as três últimas linhas no pé do seu quadro principal de linhas e números. Nelas está escrito:

Memo: 

Transações correntes em relação ao PIB (em %)        -2,69

Investimento direto no País em relação ao PIB (em %)    4,27

O que se quer dizer com isso? O Banco Central diz uma coisa, embora não de modo explícito: os buracos são cobertos com novas entradas líquidas de investimento direto. O que o Banco Central não diz é, como os novos investimentos diretos estrangeiros no Brasil vão, como se viu, muito provavelmente, gerar mais buracos, de que forma a história acaba? A resposta fica para um próximo artigo.

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