Brasil

Uma tragédia amazônica

Em parceria com a editora Manifesto, Nocaute publica hoje a segunda parte da série de reportagens “Uma tragédia Amazônica – Peça em três atos”, de autoria de Raimundo Rodrigues Pereira. A reportagem de hoje mostra que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, manipula dados do INPE para entregar à iniciativa privada a responsabilidade de monitorar a devastação da Amazônia. Esta semana o descontrole sobre as queimadas fez anoitecerem às três horas da tarde São Paulo e outras cidades brasileiras, cobertas de fumaça e chuva ácida.

Peça em três Atos
ATO 2

QUE TRATA DA MÁ FÉ

No dia 27 de julho, um sábado, uma semana depois do café da manhã com os correspondentes da  imprensa estrangeira no Brasil, no qual disse ter “a convicção” de que os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais sobre o desmatamento da Amazônia eram “mentirosos”, o presidente Bolsonaro anunciou para os jornalistas “novos dados sobre o INPE”, com a seguinte promessa: “Vocês vão ter uma surpresa”. E, de fato, a surpresa não demorou. No início da semana seguinte, a imprensa foi convocada para uma reunião no Palácio do Planalto na quinta, 1 de agosto. Nela estava a mesa formada pelo presidente, o ministro das Relações Exteriores, o general chefe da Segurança Institucional já citados no capítulo anterior, para uma exposição do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sobre o INPE. A reunião durou cerca de 1 hora, incluindo o final com perguntas dos jornalistas e respostas da mesa. E Salles ocupou a parte principal do evento.

O que disse Salles? O vídeo com a íntegra da reunião estava no Youtube, sem edição, até recentemente. No fechamento do texto deste segundo ato de nossa história, já em meados de agosto, continuava na internet, mas com um leve trabalho de edição, aparentemente de uma empresa de publicidade ligada ao governo. Salles faz uma exposição de slides e os comenta. E diz basicamente que: 

1 – Não está negando o fato de que o desmatamento da Amazônia está aumentando, desde 2012, como já vimos pelos números do Prodes de 1988 a 2018 publicados no capítulo anterior;

2 – No dia anterior, se reuniu com as equipes do INPE e do IBAMA e sua exposição sintetiza também as conclusões dessas equipes;  

3 – Na exposição estará trabalhando exclusivamente com os dados do INPE; 

4 – O INPE não tem capacidade para ver inúmeros desmatamentos em tempo real, quando de fato eles estão acontecendo.  Destaca na sua apresentação dois polígonos de desmatamento apresentados como sendo de junho de 2019, mas que, de fato, ocorreram por partes, em meses anteriores e até mesmo em 2017. Um deles, com 470 hectares desmatados, de fato teria ocorrido em 9 pedaços distintos, com tamanhos variáveis entre 7 e 161 hectares. Ao apresentar esses pedaços nos slides ele vai repetindo: “O Deter não pegou”, “o Deter não pegou”, “o Deter não pegou” …

5 – O INPE manipula os dados, conta mais de uma vez áreas desmatadas e infla os números divulgados.

6 – “Pretende contratar” um novo sistema de monitoramento; “foi combinado”, entre ele e o ministro de Ciência e Tecnologia que os quadros técnicos do INPE serão recompostos, porque os levantamentos de dados atuais “não são feitos por profissionais mas por bolsistas” e os futuros profissionais “terão à disposição os dados que estamos contratando”;

A demonstração de Salles não convenceu os jornalistas presentes nem o autor destas linhas. Primeiro porque há indícios claros de que ele mentiu várias vezes. Não é verdade que ele usou apenas os dados do INPE na sua exposição e não é verdade também que a equipe do instituto que foi a Brasília para a reunião de véspera da exposição tenha concordado com o conteúdo dela. No INPE há uma revolta contra o comportamento do governo nessa questão. Os funcionários promoveram uma reunião para esclarecimento do assunto no dia 9 de agosto, no auditório principal do instituto, que cabe cerca de 120 pessoas e tinha cerca de 200, muitas sentadas nas escadarias ou de pé. Estavam presentes funcionários das diversas áreas de pesquisa da instituição. Falou um dos principais encarregados pelos sistemas de sensoriamento remoto, Cláudio Almeida. Ao final de sua exposição houve uma longuíssima salva de palmas, uma verdadeira manifestação de desagravo dos pesquisadores de todo o INPE a seus colegas do setor de sensoriamento. Almeida esteve em Brasília para a reunião com Salles na véspera de sua exposição. Desmente que a equipe do instituto tenha concordado com o que Salles apresentou no dia seguinte. Disse que até meados de agosto, quando ouvido para este texto, Salles não lhe tinha enviado,  como prometera, os dados que usou na exposição, para que o INPE pudesse compará-los com os de seus arquivo a fim de dar uma resposta precisa às acusações que ele fez ao Deter.  

Na sua exposição, em nenhum momento Salles disse que estava apresentando um trabalho feito com os dados de uma empresa privada de sensoriamento que ele pretende contratar. No entender do autor destas linhas, com certeza, por má fé. Porque seu objetivo com a exposição era o de desmoralizar os dados do INPE, apresentar imagens novas, que seriam muito mais precisas, muito mais “de tempo real” que as do Deter, de uma empresa que está pretendendo contratar. O importante na exposição de Salles não é o que ele disse, mas o que deixou de dizer no ato solene de 1 de agosto: que sua palestra foi montada pela empresa que ele quase anuncia que está contratando, mas não o faz porque isso seria, evidentemente, uma ilegalidade. Como, “está contratando” essas imagens extraordinárias? Como contratar sem licitação? Que empresa é esta? 

Examinados os slides com mais detalhe se vê o selo dos serviços do Planet, um sistema de sensoriamento remoto, americano, com 120 satélites, ultramoderno, com muito maior capacidade de revisitação da área que está sendo desmatada e muito mais poder de resolução do que a do sistema de satélites do Deter. Mas, em compensação, é muitíssimo mais caro. O sistema está sendo negociado através da empresa paulista de geoprocessamento Santiago & Cintra com o Ministério do Meio Ambiente e o Ibama, diz o diário O Estado de S. Paulo. Já estaria sendo usado num “teste gratuito” dentro do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), diz o jornal. A empresa já teria realizado diversas reuniões com representantes do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente, mas nem o Ibama nem o ministro dão detalhes sobre essas negociações. Poucos dias após a exibição de 1 de agosto com as imagens da Planet o Ibama publicou uma portaria nomeando uma “equipe de planejamento de contratação” para escolher um sistema de sensoriamento com a estimativa de que ele custaria cerca de R$ 7 milhões. O Estado ouviu “especialistas em captação e processamento de imagens”. Para eles, da forma como foi descrito na portaria, trata-se de um jogo de cartas marcadas, o único fornecedor do sistema capacitado é a Santiago & Cintra. A empresa não quis comentar o assunto com o jornal. No Ibama, o responsável pelo “planejamento da contratação”, Olivaldi Borges Azevedo, disse ao jornal “não ter tempo para tratar do assunto”. 

Amazônia em perigo! Noruega corta repasse de 133 milhões de reais

O Planet já foi usado no Pará. Segundo o atual governador do Estado, Helder Barbalho (MDB), em declarações a O Estado, o serviço foi feito por doação da própria empresa ao governo anterior. Depois, o programa foi pago com recursos do Fundo Amazônia.  Ao chegar ao governo, neste ano, Barbalho decidiu não comprar mais os serviços. “Se o governo tem recursos para comprar isso, deveria entregar as imagens para o Inpe. Ninguém tem melhor capacidade para processar isso no Brasil”, disse ao jornal o secretário de Meio Ambiente do governo, Mauro Almeida. O governo do Pará teria de pagar R$ 3,5 milhões iniciais pelo serviço, mais R$ 4,5 milhões ao ano em imagens à Santiago & Cintra. “Por que gastar esse dinheiro se temos os serviços gratuitos do INPE? 

O Estadão diz ainda que o governo do Mato Grosso decidiu que deixará o INPE e adotará o sistema da Santiago & Cintra. O governador, Mauro Mendes (DEM), disse ao jornal que já tinha começado “a usar o sistema”. O contrato feito, sem licitação, é de R$ 5,9 milhões e seria bancado também pelo Fundo Amazônia. O argumento do governador do Mato Grosso para a contratação sem licitação é o fato de o sistema ter custo zero porque foi pago pelos alemães. Mas o governador parece estar vendo as árvores do seu Estado e não o quadro mais geral.  O Fundo Amazônia não é um acordo entre países estrangeiros com estados brasileiros. Ele foi proposto em 2006 pelo Brasil numa das conferências das Nações Unidas sobre o clima. Foi criado por decreto do governo brasileiro em 2008 para receber doações e financiar projetos contra o desmatamento e a degradação da grande floresta, sob a administração do BNDES. Até agora, teve três apoiadores, um deles, a Noruega, destacadamente o principal: contribuiu com 97,4% dos 3,4 bilhões de reais arrecadados – os outros dois são a Alemanha, com 2,1% do total e a Petrobras, com 0,5%. 

Mas, há meses o ministro Salles entrou em conflito com o Fundo. Primeiro com o seu gestor, o BNDES. Tentou obter, numa visita surpresa, sem solicitação formal, os contratos da centena de projetos financiados onde vislumbraria irregularidades. Rechaçado pelos funcionários, conseguiu do então presidente do banco, Joaquim Levy, a demissão da chefe do Departamento do meio Ambiente, Daniela Baccas. Mais recentemente, mudou as regras de gestão do fundo sem consulta aos seus parceiros europeus. A Noruega e a Alemanha deixaram o acordo. Para completar o malfeito, ele e Bolsonaro atacaram os dois países. O presidente disse que o Brasil não precisava desses recursos e que a Noruega deveria repassá-los à Alemanha para seu reflorestamento. 

Pobre Amazônia

Mas, como foi amplamente mostrado em nossa história, o Deter apenas aponta áreas que estão sendo desmatadas para verificação pelo Ibama e eventual ação repressiva dos órgãos encarregados dessa tarefa. E o que aconteceu nesses primeiros meses do governo Bolsonaro foi o Ibama ter reduzido em muito o seu trabalho de autuação dos infratores – de uma média de 2 alertas do Deter para cada autuação do órgão entre os anos 2016-2018, para uma média de perto de 30 alertas do Deter para cada autuação, nos primeiros meses do governo Bolsonaro. Os dados são de 3 de junho passado, e foram fornecidos ao Jornal do Brasil digital pelo MapBiomas, iniciativa que reúne universidades, ONGs e empresas de tecnologia.  O MapBiomas utiliza diversos bancos de dados nacionais, como o do Deter, o Cadastro Ambiental Rural e o Sistema Nacional de Controle da Origem de Produtos Vegetais (Sinaflor). Tasso Azevedo, coordenador do MapBiomas, disse ao jornal: “O mais importante é ir atrás dos alertas que já são gerados e garantir que quem fez errado será penalizado. Enquanto as pessoas acharem que, em 150 mil alertas, apenas 1% será penalizado, o estímulo ao desmatamento é muito grande.” Azevedo apresentou ao jornal um corte raso de 14,76 km2 dentro da Floresta Nacional (Flona) do Jamanxim, que fica na região da base do IIbama em Novo Progresso, no Pará. A região era uma das prioridades do GEF (Grupo Especializado de Fiscalização), a unidade de elite do Ibama. Sob Bolsonaro, porém, até agora não houve nenhuma operação na Amazônia e a base de Novo Progresso Ibama estava fechada. 

Da ação do ministro Salles em defesa de uma política adequada para o meio ambiente brasileiro se deve esperar pouco. Advogado, 44 anos, Salles é uma espécie de Bolsonaro mais jovem. Tem 44 anos, foi secretário particular de Geraldo Alckmin e Secretário do Meio Ambiente do governador de São Paulo entre 2013 e 2017. Começou a se destacar na política em 2006, quando, com alguns amigos, fundou o movimento Endireita Brasil e se candidatou a deputado federal pelo PFL. Com 9466 votos, não se elegeu. Em 2010 foi candidato pelo DEM, teve 26552 votos e também não se elegeu. Em 2018 se candidatou pelo Partido Novo, teve 36.603 votos e também ficou de fora. Nesta campanha se destacou pela propaganda aberta da violência. Escolheu o número 3006, que é o de uma bala para fuzil, como o de sua candidatura, sugerindo que a munição fosse usada “para combater a praga do javali”, “a esquerda e o MST”. 


Cartaz da propaganda de Salles com o número da bala de fuzil

Desde 2017  responde a ação do Ministério Público de São Paulo sob a acusação de ter, como secretário do Meio Ambiente do governo de São Paulo, fraudado o Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental da Várzea do Rio Tietê. Foi enquadrado nos crimes de advocacia administrativa e enriquecimento ilícito. Ele e a Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) teriam modificado mapas elaborados pela Universidade de São Paulo, alterado minutas do decreto do plano de manejo da APA e promovido a perseguição a funcionários da Fundação Florestal do Estado, com o propósito de favorecer em especial empresas da área de mineração filiadas à entidade empresarial. Em dezembro do ano passado foi condenado por improbidade administrativa e a perda de seus direitos políticos, contra o que recorreu. No governo Salles prometeu acabar com a “festa” de multas ambientais, Indicou para a presidência do Ibama Eduardo Fortunato Bim que já se manifestou a favor da revisão completa das regras de regulação ambiental, qualificando-as de precárias e artesanais e disse que pretende autorizar os produtores rurais a emitirem seu próprio licenciamento. 

Para a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva, Bolsonaro não promoveu a política de fundir o Ministério da Agricultura com o do Meio Ambiente, mas, sim, está fazendo uma política de demolição do ministério do Meio Ambiente Um manifesto popular contra sua nomeação teve mais de 285 mil assinaturas. Em maio deste ano sete ex- ministros do Meio Ambiente se reuniram e divulgaram um manifesto suprapartidário no qual acusaram Salles e Bolsonaro de promoverem ativa e deliberadamente um programa sistemático de anulação de todas as conquistas ambientais das últimas décadas, o que inclui o desmantelamento de instituições de importância central como o Ibama e o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade. A propósito do notável ambientalista acreano, Salles escreveu acusando-o de explorador dos seringueiros.

(A série uma “Uma tragédia amazônica” será publicada também por Manifesto Jornalismo,  revista impressa, com a qual Nocaute está desenvolvendo uma parceria).

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