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Confissões de um adolescente soviético

Em sua vídeo-coluna semanal no Nocaute, o jornalista e tradutor Irineu Franco Pérpetuo comenta o livro “Diário de Kóstia Riábtsev”, do escritor soviético Nikolai Ognióv.

“Medicina, a luta contra a coceira na língua. O professor Iv Iv Imbecílov encontrou um meio de curar a coceira na língua, que recentemente se alastrou ao ponto de tornar-se uma ameaça de epidemia. O respeitado astro do mundo da medicina, que por sinal recebeu outro dia um Prêmio Nobel do tamanho de dois pepinos salgados, dedicou a menor parte de sua vida à luta contra a referida doença. E Imbecílov localizou o bacilo da coceira na língua, que é transmitida pela mordida da serpentona em caso de ociose aguda. Nosso conceituado cientista de maneira totalmente abnegada inoculou o citado bacilo em si mesmo. Por isso começou a tagarelar. Falando até mil palavras por minuto das quais 120% eram compostas do tipo mais detestável de fofoca e asneira. No entanto, graças à heroica firmeza do seu caráter ele descobriu um meio de lutar contra a doença. Esse meio que consiste em excertos de Kautsky e outros autores que escreveram sobre a ética marxista foi chamado por Iv Iv Imbecílov de antimexeriquina. Recomenda-se que seja administrada nos períodos entre as aulas e também antes de dormir.”

Esse trecho faz parte de um livro que eu gostaria de chamar de confissões de um adolescente soviético, mas que se chama: Diário de Kóstia Riábtsev, de um escritor chamado Nikolai Ognióv.

Eu vou confessar que eu mesmo que venho tentando me ocupar da literatura russa nas últimas décadas não conhecia tanto o livro quanto o Ognióv, até ele sair nessa coleção da editora 34, planejada para o final de 2017, mas que transbordou um pouco para 2018, chamada Narrativas da Revolução.

Então o Ognióv, que viveu entre 1888 e 1938, escreveu esse livro entre 1925 e 1926. Bem no calor da hora da Revolução. E então é o diário desse Kóstia Riábtsev, um menino de 15 anos. Então no calor da Revolução, ele pega um ano do Kóstia entre 1923 e 1924. A Revolução tem seis anos. Acabou a guerra civil, está na época da nova política econômica. Tem o funeral do Lenin, uma época bastante conturbada da história soviética.

A gente poderia chamar isso de um romance de formação. Pega um ano da vida dele durante o período escolar. Com várias questões específicas da sociedade soviética, questões da construção do novo sistema e também questões gerais desse momento de passagem, desse momento de transição.

Então a gente vê a sexualidade adolescente, adolescentes grávidas. A gente vê as festinhas, as orgias que eles dão, as bebedeiras. Uma tal festa do repolho, que poderia ser uma bela rave de periferia nos dias de hoje. Situações de privação social. Coisas que, lá para a frente, o realismo socialista já não deixaria serem divulgadas.

Aqui, embora a visão geral seja bastante positiva ao processo revolucionário, mostra todos os problemas e contradições dessa época. E o Kóstia Riábtsev estuda nessa escola, justamente em uma época, dentro do espírito revolucionário, está se tentando adotar um novo método pedagógico chamado de plano Dalton.

Plano Dalton seria um desses conceitos pedagógicos que quer que o aluno seja responsável pelo aprendizado e que o Kóstia recebe de maneira bastante zombeteira.

Ele diz: “É um sistema em que os funscolares não fazem nada, enquanto o aluno tem que descobrir tudo sozinho”. Funscolar é um neologismo, dos muitos neologismos inventados naquela época. “Vamos ter laboratório em vez de sala de aula. Em cada laboratório vai ficar um funscolar, como especialista designado para um assunto. Como aranhas e nós somos as moscas.”

O Diário De Kóstia Riábtsev, além de toda essa questão comportamental, ele traz muito do humor, que é presente na literatura russa, mas às vezes nem sempre chega até aqui. Às vezes as editoras preferem trazer só a vertente mais trágica.

Mas aqui essa vertente do humor, presente desde (Nikolai) Gogol está muito clara e se traduz especialmente na belíssima tradução do Lucas Simone. O Lucas teve a sensibilidade e o espírito de dialogar com a linguagem juvenil dos anos 20 e trazê-la para nós, colocar gírias e um coloquialismo, sem que isso fique muito artificial.

No português do terceiro milênio, o Lucas soube reconstruir muito bem o russo da época da Revolução. Talvez não seja o livro russo mais marcante que você vai ler, mas certamente vai ser uma das leituras mais divertidas que você pode propiciar a si mesmo.

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