Armando Sartori – Nocaute https://controle.nocaute.blog.br Blog do escritor e jornalista Fernando Morais Wed, 29 Apr 2020 20:43:33 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.4.1 https://nocaute.blog.br/wp-content/uploads/2018/06/nocaute-icone.png Armando Sartori – Nocaute https://controle.nocaute.blog.br 32 32 Sem plano B https://nocaute.blog.br/2020/04/29/sem-plano-b/ Wed, 29 Apr 2020 19:20:35 +0000 https://nocaute.blog.br/?p=64850 Não está comprovada a ideia de que os infectados pelo vírus SARS-CoV-2 que geraram anticorpos estejam imunes a nova contaminação e não o transmitirão a outras pessoas. Por enquanto, o que resta é o isolamento social

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Não está comprovada a ideia de que os infectados pelo vírus SARS-CoV-2 que geraram anticorpos estejam imunes a nova contaminação e não o transmitirão a outras pessoas. Por enquanto, o que resta é o isolamento social

O ministro da Saúde, Nelson Teich, disse no último dia 22 que o governo prepara diretrizes para que estados e municípios superem a fase do isolamento social como arma para combater a pandemia provocada pelo vírus SARS-CoV-2. E, para isso, deve colocar em andamento uma operação que prevê a aplicação de testes, que seriam realizados em residentes em todas as unidades da Federação (https://nocaute.blog.br/2020/04/23/teich-quer-o-obvio-mais-e-melhores-informacoes/). Os testes serão os do tipo rápido (sorológicos), que detectam a presença de anticorpos do vírus no sangue poucos minutos após a coleta de uma amostra.

“A gente tem que entender mais da doença. Quanto mais a gente entender, maior vai ser a nossa capacidade de administrar o momento, planejar o futuro e sair desta política do isolamento e do distanciamento. Para conhecer a doença, a gente vai ter que fazer um programa de testes”, explicou Teich.

Aplicar testes para conhecer melhor o desenvolvimento da pandemia no Brasil é algo necessário, obviamente. O problema é se os resultados desses testes forem utilizados para definir a condição de imunização de pessoas que apresentarem anticorpos, o que poderia levar à emissão de uma espécie de “passaporte de imunidade”. Algo que a Organização Mundial da Saúde (OMS) condena claramente. “Atualmente não há evidência de que pessoas que se recuperaram do covid-19 e têm anticorpos são protegidos de uma segunda infecção”, informou o órgão em nota emitida no último dia 24 (https://www.who.int/news-room/commentaries/detail/immunity-passports-in-the-context-of-covid-19).

De acordo com a OMS, para o desenvolvimento da imunidade a partir da infecção é necessário um período de tempo de uma a duas semanas. Isso porque o corpo humano responde a uma infecção viral em etapas. Primeiro, gera uma resposta não específica ao patógeno (o agente causador da doença, no caso, o vírus) que pode até impedir a manifestação de sintomas. Depois, vem a “resposta adaptativa”, quando “o corpo produz anticorpos ligados especificamente ao vírus”. Os anticorpos são proteínas chamadas imunoglobulinas. Além deles, são produzidas células-T, capazes de eliminar outras células infectadas com o vírus, processo conhecido como imunidade celular.

A resposta adaptativa, de acordo com a OMS, pode “eliminar o vírus do corpo e, se for forte o suficiente, pode impedir progressão para doença grave ou reinfecção pelo mesmo vírus”. A presença de anticorpos no sangue permite avaliar esse processo.

A OMS informa que a maioria dos estudos referentes ao SARS-CoV-2 “mostra que pessoas que se recuperaram da infecção têm anticorpos para o vírus”. Mas, continua a nota, até o momento, “nenhum estudo avaliou que a presença de anticorpos para SARS-CoV-2 confere imunidade à infecção subsequente por esse vírus em humanos”.

Os testes que captam os anticorpos são justamente os testes rápidos que o Ministério da Saúde (MS) pretende aplicar. “A presença de anticorpos diz que uma pessoa […] não significa que ficou imune, pois a resposta pode não ser forte ou duradoura o suficiente, e tampouco que a pessoa deixou de ser portadora do vírus”, explica Eurico Arruda, professor titular de virologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, em entrevista publicada por O Globo na edição do último dia 28.

De acordo com Arruda, a capacidade de persistência – que permite que o vírus continue “escondido” no organismo – não está definida no caso do SARS-CoV-2. Nessa fase, o vírus “para de se replicar desenfreadamente e de causar doença, mas continua no corpo da pessoa”. Se as defesas do infectado, por qualquer motivo, enfraquecem, o vírus pode voltar a se replicar, provocar sintomas e ser transmitido. Uma hipótese, afirma o infectologista, “é que isso aconteça por que o sistema imunológico esteja ainda aprendendo a atacar o vírus e se adaptando a um novo patógeno”.

Grandes empresas brasileiras parecem estar se preparando para também aplicar testes rápidos em seus funcionários, com o objetivo de tentar captar os que já estariam imunizados e, assim, programar o retorno às atividades. De acordo com estimativa da Câmara Brasileira de Diagnóstico Laboratorial (CBDL), aproximadamente 30 milhões de kits foram encomendados pelo setor privado, com entrega prevista entre maio e julho.

Se a testagem a ser aplicada pelo MS e por empresas tiver realmente como objetivo identificar os supostos imunizados, há o risco de isso incentivar muito precocemente um amplo relaxamento na política de isolamento social. David Uip, médico infectologista e coordenador do Centro de Contingência do Coronavírus do estado de São Paulo, avalia que, “é difícil prever” a volta à normalidade. “Em outros países, tem durado de quatro a cinco meses”, declarou em entrevista publicado por Valor Econômico. “Há duas variáveis que podem mudar isso. Uma é surgir um medicamento eficaz. A outra é a vacina”. Mas, diante do fato de que não há ainda vacina para o SARS-CoV-2 e nem medicamento com efeito comprovado para a covid-19, “o que podemos fazer é o distanciamento social”. “Não temos um plano B neste momento. O plano B é o A”.

Para a OMS, pessoas que assumem estar imunes a uma segunda infecção porque foram encontrados anticorpos em seu organismo “podem ignorar os conselhos de saúde pública”. E o eventual uso de qualquer tipo de “passaporte de imunidade” pode, assim, “aumentar os riscos de transmissão continuada”.

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Teich quer o óbvio: mais e melhores informações https://nocaute.blog.br/2020/04/23/teich-quer-o-obvio-mais-e-melhores-informacoes/ Thu, 23 Apr 2020 22:02:45 +0000 https://nocaute.blog.br/?p=64445 Enquanto isso, apoiadores de Bolsonaro atacam pesquisadores que concluíram que a cloroquina não deve ser utilizada no tratamento da Covid-19.

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Enquanto isso, apoiadores de Bolsonaro atacam pesquisadores que concluíram que a cloroquina não deve ser utilizada no tratamento da Covid-19.

O novo ministro da Saúde, Nelson Teich, disse durante seu discurso de posse, pronunciado na sexta-feira passada, que é preciso ter mais informação sobre a pandemia provocado pelo Sars-Cov-2, o novo coronavírus, e a doença que ele desencadeia, a Covid-19. “Ainda há uma pobreza muito grande de informações, o que leva a um nível de ansiedade e medo. Além da Covid-19, temos que trabalhar para administrar o comportamento da sociedade. Vamos trabalhar trazendo confiança por meio da informação de qualidade, planejamento e conhecimento, porque aí sim será possível achar uma solução”, declarou Teich

Obter informação de qualidade sobre a pandemia é algo buscado em todo o mundo. Pesquisas sobre o vírus, sobre remédios que poderiam ser empregados no tratamento da Covid-19 e sobre o desenvolvimento de uma vacina que previna a doença são parte dos esforços globais em andamento, que podem obter resultados de prazo médio e longo. Além disso, em escalas diferentes, países aplicam testes para tentar identificar os contaminados pelo vírus e os que, alcançados por ele, adquiriram imunidade, o que ajuda a planejar as ações de curto prazo.

No Brasil não é diferente, o que torna a manifestação do ministro sem maior efeito. “Teich falou sobre a importância de termos mais informações sobre o coronavírus. Isso é óbvio. Todos querem no mundo inteiro mais informações sobre o vírus e isso só se conseguirá com aposta maior na ciência, coisa que seu antecessor [Luiz Mandetta] defendia. O presidente [Jair Bolsonaro], contudo, é um negacionista da ciência em todas as áreas”, escreveu a jornalista Míriam Leitão em sua coluna, publicada pelo diário O Globo no último sábado.

Por aqui há registro de inúmeros estudos do mesmo tipo dos que se acham em desenvolvimento lá fora. A questão é que, até agora, no Brasil ou no exterior, há dificuldades em obter as tais “informações”, essencialmente devido à situação inédita que o Sars-Cov-2 provocou.

Um exemplo é o que ocorre na China, país onde surgiram os primeiros casos de contaminação pelo novo coronavírus e que parecia ter controlado sua disseminação. No último domingo, a província de Heilongjiang, situada no nordeste chinês e fronteiriça com a Rússia, registrou 61 casos de transmissão local, incluindo assintomáticos, informou o governo chinês. Os casos estão concentrados na cidade de Harbin. Isso, de alguma forma, parece contradizer o anúncio feito pela China no mês passado, segundo o qual a taxa de transmissão local – isto é, sem levar em conta os casos em que a infecção se deu a partir de pessoas vindas do exterior – estava próximo de zero.

Na última sexta-feira, mesmo dia em que o  Teich tomou posse, a Xinhua, agência de notícias oficial do país asiático, informou numa breve nota que o total de casos confirmados de Covid-19 na área continental chinesa até o dia anterior fora atualizado para 82,7 mil. Segundo Mi Feng, funcionário da Agência Nacional de Saúde, o número de mortos cresceu para 4.632. Isso ocorreu essencialmente porque as autoridades da cidade de Wuhan – onde a doença se originou –, na província de Hubei, alteraram os dados locais. O número total de casos confirmados cresceu em 325 para 50,3 mil, enquanto o de mortos aumentou em 1.290, alcançando 3.869, uma alta de 50% em relação ao dado anterior.

A notícia gerou imediatamente a reação do presidente dos EUA, Donald Trump. “A China acaba de anunciar uma duplicação no número de mortes pelo ‘Inimigo Invisível’. É muito maior que isso e muito mais alto que nos EUA, não chega nem mesmo perto!”, postou Trump, em sua conta no Twitter

A diplomacia chinesa respondeu ao dirigente americano. “Nunca houve nenhuma ocultação e não autorizaremos nenhuma”, disse Zhao Lijian, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores. Segundo ele, houve  “atrasos, omissões e imprecisões” nos registros  de mortes no início da epidemia, em razão da saturação dos hospitais”.

A ideia de que a recontagem do número de casos apresentada pelo governo chinês seria evidência de uma suposta ação deliberada para esconder suas dificuldades no combate ao coronavírus não foi compartilhada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Maria Van Kerkhove, responsável pela gestão da pandemia na entidade internacional, declarou, durante entrevista coletiva realizada no mesmo dia do anúncio chinês que “é algo difícil de perceber durante uma crise, identificar todos os casos e identificar todos os mortos”. Maria explicou que, para gerar o novo balanço, as autoridades chinesas utilizaram dados não computados de funerárias, hospitais, laboratórios, prisões, clínicas e asilos. Segundo ela, é de se esperar que “inúmeros países se encontrem em uma situação similar, na qual terão de revisar seus registros”.

A revisão, aliás, chegou ao país governado por Trump ainda antes de alcançar a China. Isso porque a cidade de Nova York passou a contabilizar, devido a uma decisão adotada no meio da semana passada, mortes não provadas (aquelas cujos resultados dos testes não foi positivo), mas prováveis, o que elevou em 3,7 mil os óbitos ocorrido na cidade por causa da Covid-19. A informação foi divulgada pelo Departamento de Saúde novaiorquino. Com isso, o número de óbitos na cidade superou 10 mil. Em todo o país, são mais de 40 mil, informou a Universidade Johns Hopkins. E o país superou os 740 mil casos confirmados.

As dificuldades enfrentadas pelas autoridades de saúde para definir com precisão o número de infectados pelo Sars-Cov-2 e mesmo os óbitos provocados pela Covid-19 são muito grandes, como se pode avaliar. E no Brasil certamente não é diferente. O número de infectados divulgado pelo Ministério da Saúde (MS) é seguramente subestimado. Segundo uma das estimativas feita por pesquisadores, poderia ser multiplicado por 16. Assim, estaria próximo dos 600 mil. Contribui para a subnotificação o baixo número de testes realizados, decorrente da falta de material: a capacidade nacional de produção dos insumos para a realização dos testes é baixa em relação às necessidades atuais e a importação – da China, que concentra a produção mundial – é dificultada pelo enorme aumento da demanda global.

Leia também: O Sars-Cov-2 e a dependência internacional do Brasil

Para tentar traçar um cenário mais real da situação brasileira, o MS anunciou a realização de duas pesquisas, cujos dados – agregados a informações já coletadas pelo ministério – vão compor um painel que permitiria a tomada de decisões mais fundamentadas sobre as ações relacionadas à pandemia. “Sem esses dados mais claros, como a gente vai voltar atrás na orientação de isolamento? Sem ter um pouco mais de informação precisa para tomar essa decisão? Não dá”. A declaração é de Erno Harzheim, secretário da Atenção Primária à Saúde do MS. “A gente está preparando esses três mecanismos para ter um mapeamento mais completo e conseguir tomar as decisões de forma mais precisa e com mais segurança”, disse Harzheim a O Globo.

Um dos levantamentos é um estudo nacional coordenado pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Utilizando pesquisadores do instituto Ibope, serão realizadas entrevistas e testes rápidos para detecção de anticorpos da Covid-19 em aproximadamente 100 mil pessoas residentes em todas as unidades da Federação.

A iniciativa, ao que tudo indica, foi planejada ainda sob a gestão de Mandetta. Já Teich, se quiser uma “riqueza” maior de informação, precisará apoiar, como diz Míriam Leitão, os esforços de cientistas e pesquisadores. E esse esforço precisa incluir, por exemplo, alguma forma de enfrentamento de adeptos do presidente Bolsonaro. Como se dá no caso denunciado no último sábado pela Academia Brasileira de Ciências (ABC) e pela Academia Nacional de Medicina (ANM), que condenaram em notas emitidas separadamente ataques sofridos por autores de um estudo que revelou o risco de efeitos colaterais graves em pacientes de Covid-19 tratados com cloroquina, a droga que o presidente da República indica como a solução para a crise atual.

O estudo foi feito pelo grupo Cloro Covid-19, composto de mais de 70 profissionais de instituições como Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado, do governo do estado do Amazonas, a Fiocruz, a Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e a Universidade de São Paulo (USP).

A nota da ANM afirma que, “apesar da repercussão favorável na comunidade médica e científica”, os pesquisadores “foram vítimas de acusações torpes e covardes, totalmente descabidas, inclusive com ameaças de morte”. Para a entidade, “o estudo foi desenhado e conduzido com respeito a todos os requisitos éticos e legais”.

Ficou muito claro desde a divulgação da pesquisa de onde partiu o ataque: o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-RJ) disse no Twitter que o estudo “causou 11 mortes após pacientes receberem doses muito fora do padrão”.

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O Sars-Cov-2 e a dependência internacional do Brasil https://nocaute.blog.br/2020/04/15/o-sars-cov-2-e-a-dependencia-internacional-do-brasil/ Wed, 15 Apr 2020 20:34:02 +0000 https://nocaute.blog.br/?p=63972 O Brasil encontra dificuldades em adquirir equipamentos básicos de saúde para enfrentar a crise provocada pela Covid-19. Uma consequência da visão estreita dos que acham que, em vez de produzir aqui, a solução é ir às compras no supermercado global.

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O Brasil encontra dificuldades em adquirir equipamentos básicos de saúde para enfrentar a crise provocada pela Covid-19. Uma consequência da visão estreita dos que acham que, em vez de produzir aqui, a solução é ir às compras no supermercado global.

A pandemia gerada pelo coronavírus Sars-Cov-2, cuja doença, a covid-19, já produziu mais de 1,5 mil óbitos no Brasil e superou os 100 mil em todo o mundo, vem mostrando a importância dos serviços públicos de saúde estruturados nacionalmente para atender de forma universal as populações. Como é o caso do serviço de saúde do Reino Unido, que socorreu o primeiro-ministro Boris Johnson, vitimado pela Covid-19, um dos políticos que, de início, menosprezaram a pandemia, assim como o presidente dos EUA, Donald Trump. O dirigente britânico, que recebeu alta após ser internado no Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês), escreveu, no domingo passado, uma mensagem de agradecimento em sua conta no Twitter. “Deixei o hospital, depois de uma semana em que o NHS salvou minha vida, sem dúvida”.

O serviço de saúde britânico é tido como uma das fontes de inspiração para a montagem do Sistema Único de Saúde (SUS), que ganhou forma com a Constituição de 1989. O serviço de saúde brasileiro tem se mostrado essencial no combate à Covid-19, pois permite que as ações das autoridades sanitárias, executadas por agentes de estados e municípios, tenham orientação nacional, definida com o Ministério da Saúde. Além disso, tem capilaridade – atua em todos os municípios do País.

A atuação do SUS, no entanto, já vem sofrendo limitações importantes no combate à doença devido à falta de insumos e equipamentos básicos, situação que pode se agravar durante o transcorrer deste mês e no início de maio, período em que se estima que o Sars-Cov-2 atinja o pico de contaminação. E essencialmente, esses problemas decorrem da brutal dependência do sistema de saúde brasileiro em relação a esses itens, que vão de luvas e máscaras até respiradores, em grande parte importados. Em meio à pandemia, a procura por esses produtos aumentou em todo o mundo, o que fez os preços subirem e, em, muitos casos, provocou escassez. Além da alta dos preços, vem ocorrendo também a proibição por parte de muitos países da exportação desses bens, numa política de atendimento prioritário às necessidades de suas populações atingidas pela pandemia.

A dependência da saúde brasileira pode ser expressa com base na balança comercial do setor. “Saímos de um deficit de 3 bilhões de dólares, há 20 anos, para um deficit de 15 bilhões”, afirma Carlos Gadelha, economista e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) durante entrevista publicada na edição do diário O Globo no domingo passado.

O cenário traçado por Gadelha não é novo. “Desde o início dos anos 2000, eu e outros especialistas propomos olhar para o sistema produtivo da Saúde como algo que deve ter centralidade na política de desenvolvimento”. A razão dessa proposta é que não há “condições de ter um sistema que viabilize o acesso universal, como é o SUS, com a dependência que o Brasil tem de equipamentos, produtos farmacêuticos e outros serviços de saúde”.

O pesquisador é enfático em sua crítica. “Não poderíamos ter um sistema universal de saúde para 200 milhões de pessoas, o maior do mundo, sem uma base produtiva e tecnológica que envolva indústria farmacêutica, equipamentos, serviço de saúde”.

Integrante do Ministério da Saúde entre 2011 e 2015, Gadelha afirma que, embora o problema não seja recente, a busca por soluções diminuiu nos últimos anos. “Por volta de 2007, houve um movimento importante no sentido de tentar solucionar isso, configurar uma política de Estado. Algo que passou por quatro ou cinco ministros de diferentes partidos. Houve a criação de um Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde que congregava 14 ministérios. Mas ele foi extinto no final de 2017. Depois foram extintos os departamentos do Complexo Industrial e da Coordenação de Equipamentos e Materiais. Todos esses instrumentos acabaram”.

Como resultado desse processo mais amplo, o pesquisador da Fiocruz aponta problemas específicos. “A produção nacional de respiradores representa 40% da nossa demanda. Mas mesmo nessa produção, os componentes mais sofisticados são importados. Nosso grau de dependência é de cerca de 80% do mercado internacional. Mas não é só com ventiladores: estamos de pires na mão buscando equipamentos como luvas”.

A União e os estados têm competido na tentativa de comprar ventiladores, tanto de produtores brasileiros quanto daqueles localizados no exterior, especialmente na China. O governo federal alega que realiza as compras para exercer seu poder de compra em larga escala, o que facilitaria as aquisições. A ideia é que os produtos adquiridos seriam distribuídos entre estados e municípios. Com isso os entres estaduais e municipais ganhariam tempo para se organizar.

Uma das razões da competição pode estar na desconfiança alimentada pelo comportamento do presidente da República, Jair Bolsonaro. Embora os governos estaduais pareçam apoiar amplamente as diretrizes do ministério comandado por Luiz Mandetta, é inegável que o presidente age no sentido de boicotar suas recomendações básicas para o enfrentamento da covid-19. Assim, os governadores procuram alternativas imediatas para não dependerem do governo federal.

Os estados de São Paulo e do Nordeste estão entre os que buscam suprir as necessidades de ventiladores com fornecedores chineses. O governo paulista acionou seu escritório instalado em Xangai para comprar 2 mil respiradores. A Bahia encomendou respiradores, agindo em nome do Consórcio do Nordeste.

A busca pelos equipamentos no exterior decorre, em parte, das consequências da edição da Lei 13.979/2020,que criaria dificuldades para a obtenção de equipamentos no mercado nacional, já que permitiu ao Ministério da Saúde requisitar, na visão oficial do governo do estado do Maranhão, citada por O Estado de S.Paulo, em sua edição do último dia 12, “a totalidade de aparelhos já produzidos, disponíveis e em montagem pelos próximos 180 dias dos fornecedores no Brasil e representantes de multinacionais”.

A primeira tentativa de compra feita pelo consórcio nordestino na China é ilustrativa das dificuldades causadas pela dependência. A encomenda, a caminho da Bahia, num total de 600 respiradores, foi desembarcada numa escala em Miami, nos EUA. A Embaixada americana no Brasil negou a interferência de seu governo no caso, responsabilizando o fornecedor chinês pela decisão. A Embaixada chinesa, por sua vez, informou que o governo do país não sabia da aquisição e que tem recomendados aos governantes brasileiros que comprem de fornecedores confiáveis, cuja lista consta de um catálogo entregue pelos representantes do país asiático às autoridades brasileiras. A Bahia fez nova encomenda de 300 respiradores de empresas chinesas e, desta vez, para evitar nova retenção, o governo baiano vai usar uma rota alternativa que não passe pelos EUA.

Segundo Qu Yuhui, porta-voz da representação chinesa em Brasília, seu país está com a capacidade de fabricação de respiradores artificiais comprometida em razão da proibição, pelos EUA e por países da União Europeia, das exportações de equipamentos médicos destinados ao combate da Covid-19. Segundo ele, cerca de 50 países proibiram ou limitaram exportações de materiais médicos, como máscaras, luvas e respiradores, além de imporem restrições às exportações de medicamentos e substâncias para fabricação de remédios.

De acordo com Qu, a China tem 21 fábricas que podem produzir, cada uma, mil respiradores invasivos por mês. Somente o Ministério da Saúde e 14 estados brasileiros apresentaram 248 pedidos de materiais médicos, que incluem aproximadamente 15 mil respiradores.

Esse conjunto de dificuldades, além de provocar uma demora maior do que o normal para a chegada do material – exatamente no momento em se espera o pico de casos provocados pela pandemia –, resulta num aumento de preços de aproximadamente 100%. E mais: as empresas chinesas passaram a cobrar adiantado 50% do valor das compras e os outros 50% no ato da entrega (antes, o pagamento podia ser parcelado).

Como explica Gadelha, a política de encarar o mundo como um supermercado global, no qual se deve atuar com o critério absoluto do preço mais barato, não funciona numa época como atual. “O problema dessa visão é que se fica num mercado muito imperfeito, dominado por poucas empresas e, quando a demanda explode, o Brasil perde o controle. É o que está acontecendo”.

O pesquisador chama a atenção para a necessidade de adoção de perspectiva radicalmente diferente. “Não adianta ter uma visão de curto prazo, quando tudo está bem. Tem que ter uma visão estratégica”. E cita o exemplo da China. “Quando começamos a produzir insulina aqui, eles derrubaram o preço para um terço. Remédios para Aids, câncer, tudo isso. A China mostra, na verdade, que é possível fazer. Eles respondiam por 2% das nossas importações na área de saúde. Hoje, 16%. Já ultrapassaram os EUA”. Para Gadelha, é possível seguir os passos do país oriental. “Nós temos a base industrial. Fragilizada, mas temos. Temos o SUS, milhares de estabelecimentos, mercado. Temos ciência e tecnologia”. Mas, é claro, falta a decisão política de seguir nesse rumo.

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