Brasil

Sem plano B

Não está comprovada a ideia de que os infectados pelo vírus SARS-CoV-2 que geraram anticorpos estejam imunes a nova contaminação e não o transmitirão a outras pessoas. Por enquanto, o que resta é o isolamento social

O ministro da Saúde, Nelson Teich, disse no último dia 22 que o governo prepara diretrizes para que estados e municípios superem a fase do isolamento social como arma para combater a pandemia provocada pelo vírus SARS-CoV-2. E, para isso, deve colocar em andamento uma operação que prevê a aplicação de testes, que seriam realizados em residentes em todas as unidades da Federação (https://nocaute.blog.br/2020/04/23/teich-quer-o-obvio-mais-e-melhores-informacoes/). Os testes serão os do tipo rápido (sorológicos), que detectam a presença de anticorpos do vírus no sangue poucos minutos após a coleta de uma amostra.

“A gente tem que entender mais da doença. Quanto mais a gente entender, maior vai ser a nossa capacidade de administrar o momento, planejar o futuro e sair desta política do isolamento e do distanciamento. Para conhecer a doença, a gente vai ter que fazer um programa de testes”, explicou Teich.

Aplicar testes para conhecer melhor o desenvolvimento da pandemia no Brasil é algo necessário, obviamente. O problema é se os resultados desses testes forem utilizados para definir a condição de imunização de pessoas que apresentarem anticorpos, o que poderia levar à emissão de uma espécie de “passaporte de imunidade”. Algo que a Organização Mundial da Saúde (OMS) condena claramente. “Atualmente não há evidência de que pessoas que se recuperaram do covid-19 e têm anticorpos são protegidos de uma segunda infecção”, informou o órgão em nota emitida no último dia 24 (https://www.who.int/news-room/commentaries/detail/immunity-passports-in-the-context-of-covid-19).

De acordo com a OMS, para o desenvolvimento da imunidade a partir da infecção é necessário um período de tempo de uma a duas semanas. Isso porque o corpo humano responde a uma infecção viral em etapas. Primeiro, gera uma resposta não específica ao patógeno (o agente causador da doença, no caso, o vírus) que pode até impedir a manifestação de sintomas. Depois, vem a “resposta adaptativa”, quando “o corpo produz anticorpos ligados especificamente ao vírus”. Os anticorpos são proteínas chamadas imunoglobulinas. Além deles, são produzidas células-T, capazes de eliminar outras células infectadas com o vírus, processo conhecido como imunidade celular.

A resposta adaptativa, de acordo com a OMS, pode “eliminar o vírus do corpo e, se for forte o suficiente, pode impedir progressão para doença grave ou reinfecção pelo mesmo vírus”. A presença de anticorpos no sangue permite avaliar esse processo.

A OMS informa que a maioria dos estudos referentes ao SARS-CoV-2 “mostra que pessoas que se recuperaram da infecção têm anticorpos para o vírus”. Mas, continua a nota, até o momento, “nenhum estudo avaliou que a presença de anticorpos para SARS-CoV-2 confere imunidade à infecção subsequente por esse vírus em humanos”.

Os testes que captam os anticorpos são justamente os testes rápidos que o Ministério da Saúde (MS) pretende aplicar. “A presença de anticorpos diz que uma pessoa […] não significa que ficou imune, pois a resposta pode não ser forte ou duradoura o suficiente, e tampouco que a pessoa deixou de ser portadora do vírus”, explica Eurico Arruda, professor titular de virologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, em entrevista publicada por O Globo na edição do último dia 28.

De acordo com Arruda, a capacidade de persistência – que permite que o vírus continue “escondido” no organismo – não está definida no caso do SARS-CoV-2. Nessa fase, o vírus “para de se replicar desenfreadamente e de causar doença, mas continua no corpo da pessoa”. Se as defesas do infectado, por qualquer motivo, enfraquecem, o vírus pode voltar a se replicar, provocar sintomas e ser transmitido. Uma hipótese, afirma o infectologista, “é que isso aconteça por que o sistema imunológico esteja ainda aprendendo a atacar o vírus e se adaptando a um novo patógeno”.

Grandes empresas brasileiras parecem estar se preparando para também aplicar testes rápidos em seus funcionários, com o objetivo de tentar captar os que já estariam imunizados e, assim, programar o retorno às atividades. De acordo com estimativa da Câmara Brasileira de Diagnóstico Laboratorial (CBDL), aproximadamente 30 milhões de kits foram encomendados pelo setor privado, com entrega prevista entre maio e julho.

Se a testagem a ser aplicada pelo MS e por empresas tiver realmente como objetivo identificar os supostos imunizados, há o risco de isso incentivar muito precocemente um amplo relaxamento na política de isolamento social. David Uip, médico infectologista e coordenador do Centro de Contingência do Coronavírus do estado de São Paulo, avalia que, “é difícil prever” a volta à normalidade. “Em outros países, tem durado de quatro a cinco meses”, declarou em entrevista publicado por Valor Econômico. “Há duas variáveis que podem mudar isso. Uma é surgir um medicamento eficaz. A outra é a vacina”. Mas, diante do fato de que não há ainda vacina para o SARS-CoV-2 e nem medicamento com efeito comprovado para a covid-19, “o que podemos fazer é o distanciamento social”. “Não temos um plano B neste momento. O plano B é o A”.

Para a OMS, pessoas que assumem estar imunes a uma segunda infecção porque foram encontrados anticorpos em seu organismo “podem ignorar os conselhos de saúde pública”. E o eventual uso de qualquer tipo de “passaporte de imunidade” pode, assim, “aumentar os riscos de transmissão continuada”.

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