Brasil

O Sars-Cov-2 e a dependência internacional do Brasil

O Brasil encontra dificuldades em adquirir equipamentos básicos de saúde para enfrentar a crise provocada pela Covid-19. Uma consequência da visão estreita dos que acham que, em vez de produzir aqui, a solução é ir às compras no supermercado global.

A pandemia gerada pelo coronavírus Sars-Cov-2, cuja doença, a covid-19, já produziu mais de 1,5 mil óbitos no Brasil e superou os 100 mil em todo o mundo, vem mostrando a importância dos serviços públicos de saúde estruturados nacionalmente para atender de forma universal as populações. Como é o caso do serviço de saúde do Reino Unido, que socorreu o primeiro-ministro Boris Johnson, vitimado pela Covid-19, um dos políticos que, de início, menosprezaram a pandemia, assim como o presidente dos EUA, Donald Trump. O dirigente britânico, que recebeu alta após ser internado no Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês), escreveu, no domingo passado, uma mensagem de agradecimento em sua conta no Twitter. “Deixei o hospital, depois de uma semana em que o NHS salvou minha vida, sem dúvida”.

O serviço de saúde britânico é tido como uma das fontes de inspiração para a montagem do Sistema Único de Saúde (SUS), que ganhou forma com a Constituição de 1989. O serviço de saúde brasileiro tem se mostrado essencial no combate à Covid-19, pois permite que as ações das autoridades sanitárias, executadas por agentes de estados e municípios, tenham orientação nacional, definida com o Ministério da Saúde. Além disso, tem capilaridade – atua em todos os municípios do País.

A atuação do SUS, no entanto, já vem sofrendo limitações importantes no combate à doença devido à falta de insumos e equipamentos básicos, situação que pode se agravar durante o transcorrer deste mês e no início de maio, período em que se estima que o Sars-Cov-2 atinja o pico de contaminação. E essencialmente, esses problemas decorrem da brutal dependência do sistema de saúde brasileiro em relação a esses itens, que vão de luvas e máscaras até respiradores, em grande parte importados. Em meio à pandemia, a procura por esses produtos aumentou em todo o mundo, o que fez os preços subirem e, em, muitos casos, provocou escassez. Além da alta dos preços, vem ocorrendo também a proibição por parte de muitos países da exportação desses bens, numa política de atendimento prioritário às necessidades de suas populações atingidas pela pandemia.

A dependência da saúde brasileira pode ser expressa com base na balança comercial do setor. “Saímos de um deficit de 3 bilhões de dólares, há 20 anos, para um deficit de 15 bilhões”, afirma Carlos Gadelha, economista e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) durante entrevista publicada na edição do diário O Globo no domingo passado.

O cenário traçado por Gadelha não é novo. “Desde o início dos anos 2000, eu e outros especialistas propomos olhar para o sistema produtivo da Saúde como algo que deve ter centralidade na política de desenvolvimento”. A razão dessa proposta é que não há “condições de ter um sistema que viabilize o acesso universal, como é o SUS, com a dependência que o Brasil tem de equipamentos, produtos farmacêuticos e outros serviços de saúde”.

O pesquisador é enfático em sua crítica. “Não poderíamos ter um sistema universal de saúde para 200 milhões de pessoas, o maior do mundo, sem uma base produtiva e tecnológica que envolva indústria farmacêutica, equipamentos, serviço de saúde”.

Integrante do Ministério da Saúde entre 2011 e 2015, Gadelha afirma que, embora o problema não seja recente, a busca por soluções diminuiu nos últimos anos. “Por volta de 2007, houve um movimento importante no sentido de tentar solucionar isso, configurar uma política de Estado. Algo que passou por quatro ou cinco ministros de diferentes partidos. Houve a criação de um Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde que congregava 14 ministérios. Mas ele foi extinto no final de 2017. Depois foram extintos os departamentos do Complexo Industrial e da Coordenação de Equipamentos e Materiais. Todos esses instrumentos acabaram”.

Como resultado desse processo mais amplo, o pesquisador da Fiocruz aponta problemas específicos. “A produção nacional de respiradores representa 40% da nossa demanda. Mas mesmo nessa produção, os componentes mais sofisticados são importados. Nosso grau de dependência é de cerca de 80% do mercado internacional. Mas não é só com ventiladores: estamos de pires na mão buscando equipamentos como luvas”.

A União e os estados têm competido na tentativa de comprar ventiladores, tanto de produtores brasileiros quanto daqueles localizados no exterior, especialmente na China. O governo federal alega que realiza as compras para exercer seu poder de compra em larga escala, o que facilitaria as aquisições. A ideia é que os produtos adquiridos seriam distribuídos entre estados e municípios. Com isso os entres estaduais e municipais ganhariam tempo para se organizar.

Uma das razões da competição pode estar na desconfiança alimentada pelo comportamento do presidente da República, Jair Bolsonaro. Embora os governos estaduais pareçam apoiar amplamente as diretrizes do ministério comandado por Luiz Mandetta, é inegável que o presidente age no sentido de boicotar suas recomendações básicas para o enfrentamento da covid-19. Assim, os governadores procuram alternativas imediatas para não dependerem do governo federal.

Os estados de São Paulo e do Nordeste estão entre os que buscam suprir as necessidades de ventiladores com fornecedores chineses. O governo paulista acionou seu escritório instalado em Xangai para comprar 2 mil respiradores. A Bahia encomendou respiradores, agindo em nome do Consórcio do Nordeste.

A busca pelos equipamentos no exterior decorre, em parte, das consequências da edição da Lei 13.979/2020,que criaria dificuldades para a obtenção de equipamentos no mercado nacional, já que permitiu ao Ministério da Saúde requisitar, na visão oficial do governo do estado do Maranhão, citada por O Estado de S.Paulo, em sua edição do último dia 12, “a totalidade de aparelhos já produzidos, disponíveis e em montagem pelos próximos 180 dias dos fornecedores no Brasil e representantes de multinacionais”.

A primeira tentativa de compra feita pelo consórcio nordestino na China é ilustrativa das dificuldades causadas pela dependência. A encomenda, a caminho da Bahia, num total de 600 respiradores, foi desembarcada numa escala em Miami, nos EUA. A Embaixada americana no Brasil negou a interferência de seu governo no caso, responsabilizando o fornecedor chinês pela decisão. A Embaixada chinesa, por sua vez, informou que o governo do país não sabia da aquisição e que tem recomendados aos governantes brasileiros que comprem de fornecedores confiáveis, cuja lista consta de um catálogo entregue pelos representantes do país asiático às autoridades brasileiras. A Bahia fez nova encomenda de 300 respiradores de empresas chinesas e, desta vez, para evitar nova retenção, o governo baiano vai usar uma rota alternativa que não passe pelos EUA.

Segundo Qu Yuhui, porta-voz da representação chinesa em Brasília, seu país está com a capacidade de fabricação de respiradores artificiais comprometida em razão da proibição, pelos EUA e por países da União Europeia, das exportações de equipamentos médicos destinados ao combate da Covid-19. Segundo ele, cerca de 50 países proibiram ou limitaram exportações de materiais médicos, como máscaras, luvas e respiradores, além de imporem restrições às exportações de medicamentos e substâncias para fabricação de remédios.

De acordo com Qu, a China tem 21 fábricas que podem produzir, cada uma, mil respiradores invasivos por mês. Somente o Ministério da Saúde e 14 estados brasileiros apresentaram 248 pedidos de materiais médicos, que incluem aproximadamente 15 mil respiradores.

Esse conjunto de dificuldades, além de provocar uma demora maior do que o normal para a chegada do material – exatamente no momento em se espera o pico de casos provocados pela pandemia –, resulta num aumento de preços de aproximadamente 100%. E mais: as empresas chinesas passaram a cobrar adiantado 50% do valor das compras e os outros 50% no ato da entrega (antes, o pagamento podia ser parcelado).

Como explica Gadelha, a política de encarar o mundo como um supermercado global, no qual se deve atuar com o critério absoluto do preço mais barato, não funciona numa época como atual. “O problema dessa visão é que se fica num mercado muito imperfeito, dominado por poucas empresas e, quando a demanda explode, o Brasil perde o controle. É o que está acontecendo”.

O pesquisador chama a atenção para a necessidade de adoção de perspectiva radicalmente diferente. “Não adianta ter uma visão de curto prazo, quando tudo está bem. Tem que ter uma visão estratégica”. E cita o exemplo da China. “Quando começamos a produzir insulina aqui, eles derrubaram o preço para um terço. Remédios para Aids, câncer, tudo isso. A China mostra, na verdade, que é possível fazer. Eles respondiam por 2% das nossas importações na área de saúde. Hoje, 16%. Já ultrapassaram os EUA”. Para Gadelha, é possível seguir os passos do país oriental. “Nós temos a base industrial. Fragilizada, mas temos. Temos o SUS, milhares de estabelecimentos, mercado. Temos ciência e tecnologia”. Mas, é claro, falta a decisão política de seguir nesse rumo.

Notícias relacionadas