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Venezuela: Perguntas e respostas sobre a Constituinte

No último dia 1º de maio, em meio às celebrações do Dia do Trabalhador, o presidente venezuelano Nicolás Maduro anunciou a convocatória de uma Assembleia Nacional Constituinte. O anúncio deu início a um acalorado debate, marcado pelos ataques da oposição nacional e internacional, alimentado por grandes doses de desinformação propagada pelos grandes meios de comunicação. Mas até onde essas críticas se sustentam? Veja no dossiê sobre a Constituinte preparado pelo Nocaute.

  1. A Constituinte convocada por Maduro é constitucional?

Um dos maiores debates sobre a Assembleia Nacional Constituinte na Venezuela gira em torno de sua convocatória: poderia o presidente Nicolás Maduro convocar uma Constituinte sem um referendo popular prévio?
Essa discussão emerge fundamentalmente de dois fatores. Em primeiro lugar, os antecedentes históricos: a convocatória da Constituinte de 1999 foi realizada via referendo consultivo. Por outro lado, a tentativa frustrada de reforma constitucional de 2007 e a emenda constitucional de 2009 foram convocadas diretamente pelo então presidente Hugo Chávez, sem consulta popular prévia. Em segundo lugar, estão as declarações de alguns membros do governo e juristas, com destaque para a procuradora-geral da República, Luisa Ortega Días, que sustentam que a convocatória só poderia ser feita através de um referendo consultivo.

A Constituinte de 1999, que vem sendo colocada como paradigma histórico para o processo constituinte, foi realizada dentro do marco jurídico da antiga Constituição venezuelana, de 1961, que não dispunha sobre mecanismos de consulta popular e não previa mecanismos de alteração do texto constitucional.
Assim, o então presidente Hugo Chávez convocou uma consulta com o constituinte originário – o povo – para colocar em curso um dispositivo que até então não era previsto pela Carta Magna. A convocatória de Nicolás Maduro, por sua vez, acontece no marco da Constituição de 99, que prevê diversos mecanismos de consulta popular, inclusive a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.
Nesse sentido, o artigo 348 da Constituição venezuelana vigente estipula: “A iniciativa de convocatória de uma Assembleia Nacional Constituinte pode ser feita pelo Presidente ou Presidenta da República, em Conselho de Ministros[…]”. Os artigos 342, 343, 344, 345 e 346, que contemplam as emendas e reformas constitucionais, reafirmam o entendimento de que a iniciativa de convocatória pode ser feita pelo Presidente.
Apesar da clareza da norma, discute-se a interpretação da frase inicial do artigo — “a iniciativa de convocatória”. Para alguns intérpretes, isso significaria que as forças políticas descritas no artigo só teriam poder de instigar a convocatória, que deveria então ser referendada em plebiscito popular. Por outro lado – e essa é a interpretação da Sala Constitucional do Tribunal Supremo de Justiça venezuelano –, os atores políticos contemplados no artigo 348 estariam habilitados para convocar a Constituinte.
Esse entendimento também está embasado na interpretação de que os atores políticos previstos na norma – entre eles, o próprio Presidente – são expressão legítima da vontade política do povo, podendo representa-los enquanto fator desencadeante do processo. Para dirimir a discórdia, a Suprema Corte esclarece no acórdão 378 que “a iniciativa de convocar a Constituinte corresponde, em regra geral, aos órgãos do Poder Público que exercem indiretamente e por via de representação a soberania popular”.
Ainda que, diferentemente do que aconteceu em 99, agora não seja condição necessária a convocação de um referendo consultivo para o início do processo constituinte, todas as mudanças precisarão ser aprovadas em consulta popular antes de serem incorporadas à Constituição. Segundo Tibsay Lucena, presidenta do Conselho Nacional Eleitoral, a proposta feita inicialmente por Maduro é apenas uma exortação à Constituinte, sendo necessário que as mudanças propostas pelos Constituintes sejam confirmadas através do voto popular, universal, direto e secreto.
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  1. Como será o processo? Quem serão os constituintes?

Serão eleitos 545 Constituintes, sendo 364 escolhidos pelo critério territorial. Os outros 181 postos serão preenchidos por representantes setoriais de nove categorias: trabalhadores e trabalhadoras, camponeses e pescadores, comunas e conselhos comunais, estudantes, aposentados, empresários, povos indígenas e deficientes físicos. Todos serão eleitos por voto universal, direto e secreto, à exceção dos oito representantes dos povos indígenas, que serão eleitos reconhecendo suas tradições ancestrais de eleição e participação.
Será eleito um constituinte por cada município do país, escolhidos nominalmente e por maioria simples dos votos. O Distrito Capital de Caracas terá sete representantes. Já o processo de escolha dos representantes setoriais é mais complexo. Cada setor, à exceção das comunas e conselhos comunais, fará eleições internas para escolher seus representantes, que serão apresentados e eleitos em listas nacionais, por maioria simples. Os representantes das comunas e conselhos comunais serão eleitos regionalmente, e não por listas nacionais. Cada eleitor poderá votar em um dos vários candidatos setoriais apresentados na lista final, de acordo com o setor social do qual faz parte.
Podem se candidatar todos os venezuelanos e venezuelanas natos, maiores de 18 anos. O prazo para apresentação das candidaturas se encerrou no último dia 12 de junho, e mais de 50 mil cidadãos se inscreveram no processo. O CNE tem até o dia 15 para verificar se os postulantes preenchem todos os requisitos. A campanha será do dia 9 ao dia 27 de julho, e a eleição dos constituintes acontecerá no dia 30 de julho.

  1. Mas dessa maneira os governistas não estarão desproporcionalmente representados?

A metodologia de escolha dos constituintes foi elaborada para, ao mesmo tempo, evitar distorções e garantir a máxima representatividade de todos os setores da sociedade venezuelana. A escolha de representantes setoriais e territoriais reconhece que há diferente níveis de representação dentro do país, e busca colocar em evidência a necessidade da representação de classe dentro do processo participativo. O voto universal, direto e secreto garante que todos os mais de 19 milhões de venezuelanos aptos a votar tenham o mesmo peso no processo.
O argumento de que os representantes setoriais favoreceriam desproporcionalmente o chavismo também não procede. Em primeiro lugar, porque os representantes das regiões e municípios representam a maioria dos constituintes – 364, frente a 181 representantes setoriais. Se as eleições dos constituintes seguirem a tendência das últimas eleições, a oposição leva vantagem: a MUD (Mesa da Unidade Democrática, principal coalizão de oposição no país) conseguiu eleger um grande número de representantes naquele pleito. A inclusão de setores majoritariamente de oposição, como estudantes e empresários, também desmente essa linha argumentativa.

  1. A Constituinte substituirá a Constituição Bolivariana de 1999?

Esse é um tema controverso. Alguns constitucionalistas entendem que não há limites ao poder originário, ou seja, uma vez iniciado o processo, toda a Constituição vigente poderia ser modificada, e, portanto, uma nova Constituição deveria ser promulgada. Por outro lado, a convocatória feita por Maduro é para discutir temas específicos, como, por exemplo, a ampliação das competências do sistema judiciário, a constitucionalização das Missões e Grandes Missões (projetos sociais criados pela Revolução Bolivariana) e das comunas e conselhos comunais. A proposta também abarca a discussão de temas que ficaram de fora da Constituinte de 99, como a mudança climática, direitos da juventude, da comunidade LGBTQI, dos afro-venezuelanos, entre outros.
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A Constituição de 99 tinha como objetivo refundar o Estado e construir o arcabouço legal que embasa a democracia protagônica e representativa proposta pela Revolução Bolivariana. A Constituinte proposta por Maduro, por sua vez, tem como objetivo proteger e blindar as conquistas sociais dos últimos anos, além de iniciar um debate sobre os rumos econômicos e políticos do país – a ideia de uma “Constituinte para a Paz”, por exemplo, expressa a tentativa de retomar o diálogo político através do processo constituinte, e uma das propostas fundamentais colocadas por Maduro é a discussão de como fazer o país avançar no sentido de superar a dependência do extrativismo petroleiro.

  1. Por que uma Constituinte agora?

Desde que assumiu a presidência, Nicolás Maduro vem enfrentando uma tentativa de golpe continuado, levado a cabo por setores da oposição. Para fazer frente a esses intentos, mais de uma vez o presidente democraticamente eleito fez chamados para que essa oposição – que declara abertamente que seu único objetivo é colocar fim ao “regime” chavista – dialogasse com o governo para buscar soluções democráticas para as crises política e econômica enfrentadas pelo país. Frente às sucessivas negativas de diálogo por parte da oposição, o chamado à Constituinte vem como uma alternativa para superar o impasse imposto por essa mesma oposição, trazendo para a mesa de debate o poder soberano do povo.
A convocação de uma “Constituinte para a Paz” supõe, por um lado, a instrumentalização do processo constituinte para trazer novamente à arena do debate político os setores antichavistas. Por outro, pressupõe o reordenamento do Estado e o seu fortalecimento institucional para fazer frente aos intentos golpistas, cada vez mais escancarados, e às crises política e econômica. Frente ao impasse imposto pela oposição, o chavismo aposta na via política e no diálogo.
É importante destacar que, se bem a MUD se recuse a participar do processo constituinte, outros atores de oposição vêm apostando no diálogo. Porém, o que vemos é uma marginalização desses atores dentro dos setores golpistas, que insistem em manter a violência nas ruas como instrumento para uma transição forçada ao pós-chavismo. Nesse sentido, a convocatória feita por Maduro é um chamado ao debate, que estabeleça regras claras não só para convivência sadia das forças políticas do país, mas também para pensar uma nova etapa da Revolução, aprofundando os objetivos colocados pela Constituição de 99, trazendo novos temas à mesa e projetando novos rumos para o país. A Constituinte também é uma oportunidade para renovar a legitimidade do pacto social. Em essência, o objetivo é resolver, através do debate político, a situação política atual. O chamado à Constituinte é para o conjunto da sociedade. A proposta de Maduro pode quebrar o curso de acumulação mantido pelo plano golpista, uma vez que a Assembleia Nacional Constituinte é um mecanismo com potencial para superar a crise institucional induzida pela oposição, desbloquear o Estado, aprofundar a democracia, adequá-la à nova etapa de expansão do Poder Popular, e assentar as bases jurídicas de um novo modelo, que transcenda o rentismo petroleiro.

  1. Por que a oposição não quer a Constituinte?

É interessante notar que, apesar de estar há mais de quatro anos em campanha pela Constituinte, a oposição venezuelana agora se recusa a participar do processo. Não é a primeira vez que a oposição muda de estratégia quando seus pedidos são atendidos. Antes pediam eleições regionais; agora que já está definido o calendário eleitoral, pedem eleições gerais (instrumento inconstitucional, segundo as leis vigentes) e se recusam a participar das eleições regionais. Se recusam também a participar dos diálogos propostos no âmbito da UNASUL e apoiados pelo Vaticano, mas estão constantemente pedindo que Luiz Almagro e a OEA intervenham na Venezuela.

Se, por um lado, essa falta de coerência deixa claro que a oposição antichavista na Venezuela não tem um plano político, por outro, também revela que está disposta a instrumentalizar todo e qualquer meio de ação política para levar à transição forçada ao pós-chavismo – inclusive incitando à violência desmedida nas ruas do país e apostando todas as suas fichas em meios não-eleitorais para derrocar o chavismo. A recusa em participar de uma nova Assembleia Constituinte é conveniente para esses setores golpistas, uma vez que serve para aguçar o confronto político e aumentar a violência nas ruas, para seguir construindo e fortalecendo a narrativa que justifique uma intervenção estrangeira no país e a mudança forçada de governo.
Não há interesse, por parte da oposição, em um processo democrático para resolver disputas políticas. Não há interesse em discutir uma reorganização do Estado que ajude a superar os desafios que agora enfrenta a sociedade venezuelana, em particular o modelo produtivo. Participar da Assembleia Constituinte seria reconhecer a legitimidade do chavismo, uma contradição que a oposição venezuelana não está preparada a enfrentar: o que os une não é um projeto de país, é a extinção do chavismo – física e ideologicamente.
 
 

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  1. Avatar
    José Eduardo Garcia de Souza says:

    A análise da articulista é, como sempre, despida de argumentos e lógica e é usada em meio a uma verdadeira salada inconstitucional para tentar justificar o injustificável. A “interpretação” da Suprema Corte da Venezuela favorável à Constituinte sem referendo explica-se por ela estar “no bolso de Maduro” – as famosas “Quatro Comadres”. Uma Constituinte cujo objetivo é “blindar conquistas revolucionárias” é claro desvio de finalidade, e a composição viciada dos constituintes urdida por Maduro assim o reflete. Em suma, mais uma “Madurada” que só tem como acabar muito mal. Mas não vai acontecer porque ninguém em sã consciência o vai aceitar.

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