Dívida Pública – Nocaute https://controle.nocaute.blog.br Blog do escritor e jornalista Fernando Morais Thu, 21 May 2020 14:47:56 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.4.2 https://nocaute.blog.br/wp-content/uploads/2018/06/nocaute-icone.png Dívida Pública – Nocaute https://controle.nocaute.blog.br 32 32 Bolsonaro se reúne com governadores para discutir apenas a crise econômica https://nocaute.blog.br/2020/05/21/bolsonaro-se-reune-com-governadores-para-discutir-apenas-a-crise-economica/ Thu, 21 May 2020 14:47:50 +0000 https://nocaute.blog.br/?p=65976 Com o Brasil beirando a marca de 20 mil mortos pelo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro reuniu virtualmente com os governadores na manhã desta quinta-feira (21) para discutir a crise econômica. Nenhum plano para enfrentar o vírus foi apresentado, o número de mortos e infectados não foi mencionado, o confinamento e as medidas para diminuir o avanço do Covid-19, foram deixadas de lado. A preocupação do presidente (sem máscara), numa fala curta, era apenas a economia.

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Com o Brasil beirando a marca de 20 mil mortos pelo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro reuniu virtualmente com os governadores na manhã desta quinta-feira (21) para discutir a crise econômica. Nenhum plano para enfrentar o vírus foi apresentado, o número de mortos e infectados não foi mencionado, o confinamento e as medidas para diminuir o avanço do Covid-19, foram deixadas de lado. A preocupação do presidente (sem máscara), numa fala curta, era apenas a economia.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (usando máscara), também falou pouco e deixou clara a sua preocupação com os números da economia. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, mexendo insistentemente na sua máscara azul, contrariando a orientação dos infectologistas, deu parabéns ao presidente pela reunião, chegando a dizer que “a gente tem que comemorar”.

Os três governadores que falaram – Reinaldo Azambuja (PSD-MS), Renato Casagrande (PSB-ES) e João Doria (PSB-SP) – pareciam afinados com o presidente no quesito “não podemos deixar de lado os empregos, a economia do país”.

Falou-se em suspensão das dívidas, prorrogação do pagamento das parcelas, do salário dos funcionários, de arrecadação. E o combate ao coronavírus? Flexibilização, ou não? E a cloroquina? E a “gripezinha” – segundo Bolsonaro – que já matou quase 20 mil brasileiros? E o presidente nas ruas abraçando seguidores? Não se tocou no assunto.

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E se eu fosse o ministro da Fazenda? https://nocaute.blog.br/2020/04/28/paulo-nogueira-batista-junior-e-se-eu-fosse-o-ministro-da-fazenda/ Tue, 28 Apr 2020 13:00:21 +0000 https://nocaute.blog.br/?p=64709 Estava eu, posto em relativo sossego, de quarentena, quando de repente Fernando Morais me surpreende com um convite: responder por escrito, em prazo curto, a uma pergunta ao mesmo tempo instigante e indiscreta: “O que você faria se fosse ministro da Fazenda do Brasil hoje?”.

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Estava eu, posto em relativo sossego, de quarentena, quando de repente Fernando Morais me surpreende com um convite: responder por escrito, em prazo curto, a uma pergunta ao mesmo tempo instigante e indiscreta: “O que você faria se fosse ministro da Fazenda do Brasil hoje?”. 

Hesitei em aceitar o convite pela simples razão de que não me sinto à altura do desafio. Procrastinei alguns dias, depois pedi mais prazo, até que ele aplicou o xeque mate: “O Lula me ligou hoje para saber se você já tinha mandado o texto”. E jurou que não estava invocando o nome do ex-presidente em vão.

Capitulei. E estou aqui agora, espremendo o cérebro para dar conta do recado. Naturalmente, o exercício teórico, ainda que válido, só pode ser levado adiante cum grano salis. Antes de entrar na questão peço vênia ao Fernando para introduzir uma hipótese simplificadora: vamos admitir que o presidente da República fosse o próprio Lula. Sem essa hipótese, ou alguma outra na mesma linha geral, a resposta seria muito difícil, talvez impossível.

Outro prolegômeno: noto que a pergunta menciona “Fazenda” e não “Economia”. Bom que assim seja. Ministério da Economia, como no governo Collor e no atual, resulta da fusão da Fazenda com outros ministérios e equivale a centralizar as decisões da área econômica em mãos de uma única pessoa, um superministro. Não deu certo nas vezes em que foi tentado no Brasil: com Delfim Neto (governo Figueiredo), Zélia Cardoso de Mello (governo Collor) e não dará certo agora, tudo indica, com Paulo Guedes. O excesso de atribuições acaba atrapalhando o superministro e sua equipe. E a existência de um superministro tende a privar o presidente da República de um saudável debate de ideias e propostas dentro da área econômica do governo.

Vamos então à minha resposta. Tempo e espaço não permitem apresentar senão as linhas gerais, mesmo assim de forma telegráfica e exemplificativa. O que temos hoje? Uma economia em recessão e ameaçada de ser jogada em uma grande depressão. A crise internacional desencadeada pelo novo coranavírus tem peculiaridades, como se sabe. Porém, ela apresenta um ponto em comum com as grandes crises econômicas anteriores: uma queda vertiginosa, em espiral, da demanda agregada de consumo e investimento do setor privado, isto é, abandono ou adiamento de despesas de consumo e investimento, retração generalizada da oferta de crédito e aumento abrupto da preferência por liquidez, entre outros aspectos.

Diante disso, não há outra opção senão adotar, de forma rápida e agressiva, políticas compensatórias. Isso significa basicamente promover rápida expansão do gasto fiscal, do crédito público e da liquidez na economia. Requer, portanto, ação simultânea e coordenada das autoridades fiscais e monetárias e dos bancos federais, sob a liderança do presidente da República e com a devida supervisão do Poder Legislativo e vigilância do Poder Judiciário.

Com a rápida expansão da despesa pública e da emissão de moeda, o resultado inevitável será um aumento substancial da dívida em pouco tempo. Cresce a dívida pública stricto sensu e também o estoque da base monetária. Esta última tem a vantagem de não gerar serviço da dívida; a dívida propriamente dita carrega juros e tem (quase sempre, isto é, excetuadas as perpetuidades) um cronograma de devolução do principal.

O aumento da preferência por liquidez abre espaço para a emissão de moeda primária. O Banco Central não só pode como deve ampliar substancialmente a base monetária. Se o aumento da demanda do público por moeda não for acomodado, o resultado será deflação do nível geral de preços, valorização cambial e depressão dos níveis de atividade e emprego. 

No entanto, o grosso do crescimento da dívida latu sensu será na forma de dívida governamental e não de passivo monetário. O impulso fiscal requerido (essencialmente o gasto público adicional) é de grandes proporções, pois sobre a política fiscal recai a responsabilidade principal de estabilizar a demanda em momentos como este. Embora o estoque de base monetária tenha que subir consideravelmente, a principal resultante da crise sobre as finanças públicas é o crescimento do endividamento público, até porque a preferência por liquidez tende a se expressar em demanda por quase-moeda, isto é, títulos públicos de curto prazo com alto grau de liquidez.

Passada a crise restará, portanto, uma dívida pública muito maior do que aquela que tínhamos no final de 2019. O governo geral (inclusive governos estaduais, municipais e empresas estatais) começou o ano com uma dívida bruta de 76% do PIB. Não me surpreenderia se ela viesse ultrapassar a marca de 90% do PIB, em razão do aumento do déficit fiscal primário e da inevitável queda do próprio PIB. As forças contrárias a isso – não só a ampliação da base monetária, mas também a queda dos juros incidentes sobre a dívida pública – não seriam capazes de evitar o rápido crescimento da razão dívida/PIB.

Pode-se prever tranquilamente que, no pós-crise, reaparecerá o clamor pela austeridade fiscal, pelo corte de gastos e pelas reformas “estruturais” do Estado. Cabe ao ministro da Fazenda, nesse segundo momento, evitar aperto fiscal prematuro, pois isto dificultaria ou até impediria a reativação da economia. Qualquer revisão das políticas fiscal e monetária deve ser gradual e cautelosa para não prejudicar as chances de recuperação da economia. Será recomendável, além disso, apresentar também regras fiscais críveis e mais inteligentes do que as vigoravam no Brasil antes da crise – a meta de resultado primário e a regra simplória do teto de gastos. Mas deixo de lado o pós-crise e volto à emergência de 2020.

Para não inviabilizar a recuperação da economia no pós-crise parece-me indispensável usar de forma inteligente e justa os recursos de que dispõe o Estado nacional. Dois requisitos são fundamentais na destinação dos gastos fiscais e parafiscais, do crédito público e dos recursos injetados pelo Banco Central. Primeiro, o dinheiro deve chegar àqueles que estão de fato atravessando uma emergência e têm propensão a gastar rapidamente. Segundo, a forma de enfrentar a crise não deve agravar a concentração da economia e da renda que a crise já tende a produzir de qualquer maneira. Uma recessão é inevitável e o desemprego crescerá rapidamente. Esse crescimento do desemprego, por si só, já tende a prejudicar sobretudo os mais pobres, levando assim automaticamente a maior concentração da renda. Como o Brasil exibe uma das piores distribuições de renda e riqueza do planeta, o segundo requisito é tão importante quanto o primeiro, embora receba muito menos destaque no discurso oficial e na mídia tradicional. 

A economia, disciplina conhecida desde o século XIX como “ciência lúgubre” (dismal science) raramente nos proporciona alegrias. Toda marcada por tradeoffs e dilemas desagradáveis, é uma escola de desilusões. Entretanto, de vez em quando, muito de vez em quando, a economia permite matar dois coelhos com uma cajadada.

Um exemplo são as transferências sociais para assalariados e outros trabalhadores de baixa renda, que colocam dinheiro na mão de pessoas pobres e necessitadas, com propensão a consumir elevada. O seu impacto multiplicador é alto, portanto, ajudando a conter a queda da demanda. Ao mesmo tempo, os programas e transferências sociais mitigam a concentração de renda que a crise produz automaticamente pela via do desemprego e da redução dos rendimentos do trabalho. Inversamente, transferências ou diminuições de tributos que beneficiem os detentores de renda e riqueza elevadas aumentam o déficit fiscal e a dívida pública sem produzir impacto positivo apreciável sobre a demanda efetiva e piorando, de quebra, a já péssima distribuição da renda.

Uma providência urgente, portanto: reforçar os programas de transferência existentes e, se necessário, introduzir novos. No que tange ao bolsa família, por exemplo, é urgente acelerar a inclusão de famílias no programa, reduzindo rapidamente a fila que se formou nos anos recentes. Cabe, também, tornar permanente o pagamento de um 13º para os beneficiários da bolsa. Deve-se buscar, ainda, ampliar a renda básica de emergência e transformá-la no pós-crise em um programa permanente, na linha do que tem sugerido Eduardo Suplicy.

Essas e outras providências do lado do gasto podem ser complementadas por diminuição da carga tributária sobre os setores de baixa renda – outra forma eficiente de estimular a demanda com justiça social. Por razões simétricas, uma possiblidade técnica e socialmente atraente para cobrir uma parte dos gastos públicos adicionais, minorando o aumento do endividamento do governo, é instituir ou aumentar tributação sobre elevadas rendas e riquezas. A história das emergências, não tanto no Brasil, mas em outros países, está repleta de exemplos de tributação solidária, conhecida às vezes como capital levies, ou de empréstimos compulsórios sobre aqueles que têm grande potencial de contribuição.

Do lado da moeda e do crédito, é fundamental coordenar a ação do Banco Central não só com o Tesouro, mas também com os principais bancos públicos federais, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica e o BNDES. Dos bancos privados, pouco ou nada se deve esperar. Na crise, o dirigismo econômico e financeiro precisa prevalecer. O Banco Central, ao oferecer auxílio a instituições financeiras, deve estabelecer contrapartidas. Pouco adianta encharcar os bancos de liquidez, sem definir contrapartidas. Por exemplo, bancos e empresas que recebam auxílio devem ser obrigados a suspender o pagamento de dividendos a acionistas e bônus aos executivos.

No frigir dos ovos, entretanto, os bancos privados vão correr todos para baixo da cama, e de lá não sairão até o fim da crise. O crédito disponível virá do Banco Central e dos bancos públicos, pressupondo-se evidentemente que o ministro da Fazenda, o presidente do Banco Central e os presidentes dos bancos federais trabalhem em consonância, com o propósito de evitar que a economia mergulhe em uma depressão.

A atuação do Banco Central deve incluir a redução da taxa Selic para níveis baixíssimos, nunca vistos no Brasil. Com a inflação bem abaixo do piso da meta e a economia despencando, os juros básicos devem ficar próximos de zero em termos reais. Isso ajuda a recompor as finanças públicas, ao reduzir o custo da dívida, mas acarreta riscos do lado cambial. O diferencial de juros internos e externos, que ainda ajudava um pouco a sustentar o real, se tornará praticamente irrelevante.

A questão cambial é espinhosa e pode se revelar o calcanhar de Aquiles de um país como o Brasil, que não emite moeda de liquidez internacional. Uma coisa é praticar “quantitative easing” e jogar os juros básicos para zero (ou até abaixo de zero) nos Estados Unidos e em outros países ou regiões de moeda forte. Outra completamente diferente é adotar políticas monetárias ultra expansionistas em economias como a brasileira, cuja moeda é estritamente nacional e potencialmente vulnerável.

Assim, é mais do que nunca fundamental preservar as reservas internacionais do país. A depreciação cambial em relação ao nível pré-crise é inevitável e bem-vinda do ponto de vista da competitividade internacional da economia e do ajuste das contas externas. Com a economia deprimida e o ambiente deflacionário, a depreciação do real precisaria ir muito longe para ameaçar o controle da inflação. As reservas podem ser mobilizadas, claro, para intervenções no mercado cambial. Contudo, é imprescindível usá-las de forma judiciosa, substituindo quando possível vendas no mercado à vista por operações com derivativos como swaps cambiais. O nível de reservas requerido para fins de precaução cresceu muito com a crise. Propostas de utilização das reservas para outros fins (diminuição da dívida bruta, financiamento ou garantia de investimentos públicos etc.), que já eram discutíveis, tornaram-se agora perigosas. Não se pode descartar que a economia brasileira volte, como no passado, a ser ameaçada por uma crise de balanço de pagamentos, desencadeada por movimentos de capitais de residentes e não-residentes. Nesse tipo de cenário, medidas de controle cambial e dos fluxos de capitais podem se tornar necessárias.

Paro, leitor, e releio o que escrevi. Fiquei razoavelmente contente e não quero acrescentar mais nada. O texto parece fluir bem. Sinto-me, confesso, até um pouco mais confiante, pensando que talvez esteja, sim, a altura do desfio. Mas foi apenas um instante, um breve devaneio. Logo me lembrei que o cemitério da política está cheio de economistas que chegaram a Brasília com planos coerentes e elaborados e ideias aparentemente sensatas.

Enfim, espero que os pontos apresentados possam ajudar um pouco no debate das alternativas de que dispõe o Brasil para enfrentar esta que se configura como a maior crise já experimentada por todas as gerações de brasileiros vivos.

(*) Paulo Nogueira Batista Jr. é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países. Acaba de lançar pela editora LeYa o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém.
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Macroeconomia na crise de 2020: dívida pública, política monetária e bancos privados¹ https://nocaute.blog.br/2020/04/20/macroeconomia-na-crise-de-2020-divida-publica-politica-monetaria-e-bancos-privados%c2%b9/ Mon, 20 Apr 2020 14:07:49 +0000 https://nocaute.blog.br/?p=64168 O debate econômico no Brasil mudou muito nos meses recentes, mas ainda está engatinhando em face da dimensão avassaladora da crise. Logo nos primeiros momentos, estabeleceu-se virtual unanimidade quanto à urgência de uma rápida e substancial ampliação do gasto público. “Somos todos keynesianos agora”, repetiu-se urbi et orbi.

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O debate econômico no Brasil mudou muito nos meses recentes, mas ainda está engatinhando em face da dimensão avassaladora da crise. Logo nos primeiros momentos, estabeleceu-se virtual unanimidade quanto à urgência de uma rápida e substancial ampliação do gasto público. “Somos todos keynesianos agora”, repetiu-se urbi et orbi. Ora, como dizia Nelson Rodrigues, toda unanimidade é burra – e esta não escapa à regra rodrigueana.

Chamou a atenção a desfaçatez com que economistas ortodoxos (de galinheiro, claro) passaram subitamente a clamar por intervenção estatal e políticas macroeconômicas expansionistas – não keynesianas, diga-se, mas hiperkeynesianas. Até mesmo aqueles que insistiam em proclamar, há pouco tempo, que o Estado brasileiro estava “quebrado” deram para pregar que a salvação da economia nacional dependia agora deste mesmíssimo Estado quebrado. Ironias da história.

Galbraith tinha toda razão em dizer que o humor é, sempre e em toda parte, uma ferramenta indispensável para a análise econômica. No Brasil, os varões de Plutarco de galinheiro, proeminentes e inveterados arautos da austeridade fiscal e monetária, defendem de repente imediato aumento do gasto e da moeda. Não se dão ao trabalho de explicar ao distinto público o que autoriza tamanha reviravolta de recomendações. Tampouco explicam por que se pode tolerar e até exigir um crescimento do déficit fiscal, da dívida pública e do passivo monetário do Banco Central. 

Aí tem … A unanimidade é burra porque, tal como a estatística e o bikini, esconde o essencial. No caso em tela, ela joga o foco sobre uma questão de ordem macroeconômica – a estabilização da demanda agregada e do nível de atividade – e desvia atenção de uma outra dimensão essencial – a questão distributiva. Protegida pela mídia, a ortodoxia de galinheiro lança ao mar o que lhe restava de coerência e aparência de seriedade, correndo sofregamente para garantir o essencial – uma tremenda socialização de prejuízos por meio de medidas de política fiscal e, em especial, da ação do Banco Central. 

Corremos o risco de experimentar uma concentração brutal da renda e da riqueza – isto num país que já exibe uma das piores distribuições do planeta. O risco não pode ser negligenciado, como diria um inglês das antigas. Não há controle nem transparência suficientes. A opinião pública, alarmada com a pandemia, e distraída pelo comportamento aberrante do presidente da República, não percebe ou não consegue entender o que estão armando. 

Tentarei oferecer aqui algumas explicações, sem a pretensão de ser exaustivo, ou mesmo totalmente certeiro. A confusão é grande e não é nada fácil acompanhar a avalanche de notícias, medidas e providência, misturadas com fake news, debates politiqueiros e desinformação, tanto do lado do governo como dos seus críticos. 

Vamos por parte, como faria “Jack the Ripper”. 

A expansão do déficit e do endividamento públicos – quem se beneficia?

Primeiro ponto: não basta exigir a expansão do gasto, da dívida e da moeda. A exigência é correta, mas deixa em aberto perguntas básicas: para onde estão indo os recursos liberados? quem é atendido, quem deixa de ser? qual a sua eficiência em termos de estabilização da economia?

Os gastos realizados e a moeda posta em circulação têm destinatários e constituem obrigações estatais. A moeda primária é um passivo que não carrega juros, mas a dívida implica, em condições normais, um fluxo de encargos financeiros. Infelizmente, a maior parte do gasto público adicional será coberta por ampliação do endividamento. Não será surpreendente se, depois da crise, a dívida bruta do setor público (excluindo a base monetária e incluindo estados e municípios) se aproximar da marca de 100% do PIB. Portanto, passada a pandemia, o debate sobre austeridade será retomado sem muita demora. Os de sempre apontarão, alarmados e não inteiramente sem razão, para a dívida pública tremendamente aumentada e para o tamanho inflado do balanço do Banco Central. Ouviremos de novo o coro: “O Estado ‘quebrou’”, “é urgente cortar despesas”, “é preciso restabelecer a normalidade da política monetária e desinchar o ativo do Banco Central” etc. Acenarão com ameaças de volta da inflação e de desordem fiscal e financeira.

A urgência do momento atual não permite muito refinamento. Respostas rápidas serão indispensáveis, erros e tropeços, inevitáveis. Contudo, não se pode perder inteiramente de vista a dimensão de médio e longo prazos, ainda que toda crise traga sempre um encurtamento de horizontes.  

É importante perguntar desde logo: como ficarão as finanças governamentais no pós-crise? Em especial: será possível evitar, após a crise, o crescimento contínuo da dívida como proporção da receita tributária e do PIB? A questão só seria facilmente solucionável se o Brasil convergisse para taxas de juro baixas ou próximas de zero, a exemplo do que se observa em diversos países desenvolvidos, mesmo antes da pandemia. Nesse cenário, mesmo com crescimento modesto da economia seria perfeitamente factível estabilizar a razão dívida/PIB ou dívida/receita fiscal.

O mais provável, entretanto, é que as finanças públicas pós-crise se caracterizem pelos seguintes traços, entre outros: a) uma relação dívida/PIB muito maior do que antes da crise; b) taxas reais de juro positivas; e c) taxas de crescimento do PIB modestas, possivelmente prejudicadas pelo retorno de políticas de austeridade fiscal e por certa “normalização” da política monetária. 

Se isto for verdadeiro, é especialmente recomendável usar o recurso da expansão do endividamento público de forma inteligente e justa durante a crise. As despesas relacionadas diretamente ao combate à pandemia têm prioridade absoluta, claro. Mas, além disso, é essencial, por exemplo, ampliar gastos que se destinem a setores com alta propensão a consumir, notadamente transferências sociais a setores de baixa renda. Esse tipo de gasto mata dois coelhos com uma cajadada (algo relativamente raro em economia, dominada por trade offs): não só socorre os mais necessitados, como é mais eficiente na sustentação da demanda efetiva. Em outras palavras, alcança-se com um dado aumento da dívida pública um resultado melhor em termos de distribuição social da renda e um impacto maior sobre a atividade econômica. Outra prioridade é ampliar, sempre que as precauções quanto à saúde pública permitam, os investimentos de infraestrutura. Esses investimentos, como se sabe, têm a dupla vantagem de estimular, por um lado, a demanda e o emprego correntes e, por outro, de ampliar a oferta agregada da economia e o seu produto potencial.

Inversamente, gastos e injeções de recursos que beneficiem setores de alta renda e riqueza não só agravam a já elevada concentração de renda no país, mas produzem em geral menos efeitos em termos de sustentação da demanda. Isso vale, a fortiori, para medidas que estão sendo (ou podem ser) tomadas pelo Banco Central. Pouco ajuda encharcar os bancos de liquidez, de forma horizontal. Um exemplo disso é a decisão de reduzir os depósitos compulsórios dos bancos no Banco Central. Sem direcionamento e contrapartidas claramente estabelecidas, os compulsórios liberados irão simplesmente engordar o colchão de liquidez dos bancos. Estes, principalmente os privados, tendem a um comportamento pró-cíclico. Mostram-se mais propensos a emprestar quando a economia está aquecida, os lucros elevados e os riscos menores. Tendem a se retrair quando a economia entra em recessão, os lucros caem e os riscos aumentam. Ou seja: o sistema bancário segue a corrente, agravando as tendências em curso, inclusive as problemáticas, como aquecimento excessivo ou contrações perigosas. Em momentos como o atual, em tempo de recessão e ameaça de depressão, o crédito privado se torna escasso e caro.

Desse modo, a única consequência prática da diminuição dos compulsórios é a mudança para pior da composição da dívida pública. Os recursos liberados não são direcionados ao crédito, mas aplicados pelos bancos em títulos públicos. Cai um passivo relativamente barato e sob controle do Estado – os depósitos compulsórios dos bancos junto à autoridade monetária – e sobe na mesma medida um passivo mais caro e de prazo curto: o estoque de dívida pública mobiliária em poder do mercado. Aumentam, assim, os resultados dos bancos à custa das finanças governamentais. Como o crédito bancário não cresce ou quase não cresce, pouco ou nada se alcança em termos de estabilização da demanda efetiva. Renda flui para os bancos e seus proprietários, e não circula. Principais resultados em poucas palavras: aumento da dívida do Tesouro, mudança e encarecimento do passivo consolidado do Tesouro e Banco Central, aumento da liquidez e dos lucros dos bancos, ausência de efeitos sobre a demanda e o crédito. 

Temos aí, em apertada síntese, como dizem os advogados, um exemplo do tipo de política anticrise que não é recomendável e virá certamente dificultar a retomada da economia no pós-crise.

A captura do regulador pelos regulados

Essas considerações apontam para riscos que são, tudo indica, especialmente relevantes para o Brasil e, mais ainda, para o Brasil em tempos de crise. O banco central brasileiro tem historicamente uma relação de dependência com os bancos. Deveria supervisionar e regular o sistema bancário, com isenção e autonomia em relação a interesses financeiros privados, mas não alcança senão parcialmente esses objetivos. 

Esse é um dos temas abordados em livro que publiquei recentemente (O Brasil não cabe no quintal de ninguém, editora LeYa, 2019), onde argumento que a forma habitual de constituição da diretoria do Banco Central torna a instituição vulnerável à influência dos bancos que deveria regular, com prejuízo para o interesse público. É a chamada porta giratória. O fenômeno não é exclusivamente brasileiro; nos Estados Unidos fala-se da revolving door. Mas aqui o problema se manifesta de forma particularmente clara. Executivos oriundos do mercado financeiro privado, e destinados a retornar a ele, são chamados a integrar a diretoria do Banco Central e tendem a dominá-la. No exercício do cargo de presidente ou diretor do Banco Central são obrigados, por assim dizer, a dançar conforme a música – no interesse, claro, do seu retorno a funções ainda mais prestigiadas e bem-remuneradas em instituições financeiras privadas. Trata-se, em última análise, de uma forma sutil e intransparente de corrupção – palavra forte, porém apropriada, acredito. 

No governo Temer, por exemplo, o Banco Central foi presidido por Ilan Goldfayn, paquidérmica figura com origem no Itaú. Goldfayn deixou muito a desejar como presidente do Banco Central, como explico no livro acima citado, mas fez o necessário para deixar o cargo sob aplausos da mídia e da turma da bufunfa, aninhando-se depois de curta quarentena em confortável cargo no Credit Suisse. Foi substituído no comando do Banco Central por um executivo do Santander, Roberto Campos Neto, cujo destino após a passagem pelo setor público será – posso apostar – alguma sinecura no mercado financeiro privado. A previsão não é difícil – a turma da bufunfa cuida dos seus.

Pois é este ex-executivo do Santander que comanda o Banco Central na maior crise de que se tem notícia². Com o argumento de que precisa preservar a estabilidade do sistema financeiro e ajudar a salvar a economia da depressão, Campos Neto acionou diversos instrumentos e pediu autorização legal e constitucional para ampliar os mecanismos de intervenção da autoridade monetária, estendo-os inclusive à compra no mercado secundário de papéis de empresas não-financeiras. As medidas têm natureza horizontal e podem levar facilmente ao uso inapropriado dos recursos à disposição do Estado nacional. Na linha do que argumentei acima, essas medidas tendem a resultar em ampliação ou encarecimento da dívida pública, benefícios para os bancos e concentração da renda – sem ajudar em nada ou quase nada a estabilização dos níveis de atividade econômica e de emprego. O único emprego totalmente garantido por essas medidas é o emprego futuro do economista bufunfeiro que atualmente comanda o Banco Central. 

Tudo isso é absurdo, mas não inesperado. Sem controle de outras instâncias do setor público, recebendo basicamente carta branca, o Banco Central atuará em consonância com os lobbies bancários.  

É preocupante. Alarmante, na verdade. Cabe aos que prezam o interesse público usar todos os meios a seu alcance para impedir a continuação dessas práticas e abusos.   

O autor é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países. Acaba de lançar pela editora LeYa o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém.

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² Um detalhe: o referido executivo é neto de Roberto Campos, economista liberal brilhante, polemista agressivo, porém menos radical na prática do que na teoria. Como ministro de Estado e homem público, Roberto Campos, o avô, sabia ser eclético quando necessário. Ficaria, imagino, horrorizado com o radicalismo doutrinário da equipe econômica de que faz parte seu neto. 

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O que é realmente deficitário no nosso orçamento são os juros da dívida pública https://nocaute.blog.br/2019/02/18/o-que-e-realmente-deficitario-no-nosso-orcamento-sao-os-juros-da-divida-publica/ Mon, 18 Feb 2019 18:37:20 +0000 https://nocaute.blog.br/?p=45669 Na coluna desta semana, o economista Paulo Kliass fala sobre a reforma da Previdência de Bolsonaro. “O governo esconde um elemento essencial. Se ele quer resolver um problema de gastança, como alega, devia se ater à conta que é a maior gastadora de todo o orçamento. Ao longo de 2018 foram gastos 380 bilhões para pagar juros e serviços da dívida pública”, afirma Kliass.

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Na coluna desta semana, o economista Paulo Kliass fala sobre a reforma da Previdência de Bolsonaro. “Em relação à reforma da Previdência, o governo esconde um elemento essencial. Se ele quer resolver um problema de gastança, como alega, devia se ater à conta que é a maior gastadora de todo o orçamento. Ao longo de 2018 foram gastos 380 bilhões para pagar juros e serviços da dívida pública”, afirma Kliass.

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Enquanto o exército gasta R$6,5 mi em camarão e caviar, Temer corta R$4 bi da educação https://nocaute.blog.br/2018/06/14/enquanto-o-exercito-gasta-r65-mi-em-camarao-e-caviar-temer-corta-r4-bi-da-educacao/ https://nocaute.blog.br/2018/06/14/enquanto-o-exercito-gasta-r65-mi-em-camarao-e-caviar-temer-corta-r4-bi-da-educacao/#respond Thu, 14 Jun 2018 22:33:49 +0000 https://www.nocaute.blog.br/?p=22643 O Brasil, em matéria de investimentos por aluno e por ano, investe em educação cerca de um terço do esforço que é feito nos Estados Unidos ou em um país europeu. A falta de recursos faz com que mais da metade das escolas brasileiras não tenham o mínimo necessário para funcionarem.

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Um dos traços mais importantes de um governo progressista é a importância que ele dá para a área da educação.
O Governo Federal acabou de realizar mais de uma das suas proezas, cortou uma emenda, uma disponibilidade de recursos no orçamento da união, de cerca de 4 bilhões de reais, dinheiro que deveria ser destinados à educação e principalmente a educação básica.
Decidiu-se capar esse recurso para compra de corvetas para a Marinha e para o pagamento da dívida pública – que, em geral, vai para os bancos brasileiros.
O Brasil padece de problemas crônicos em relação a investimentos na área da educação. Praticamente todos os países que avançam no mundo, e avançam do ponto de vista econômico e social, fazem esses avanços exatamente porque realizam investimentos continuados em educação.
Para se ter uma ideia, o Brasil, em matéria de investimentos por aluno e por ano, investe em educação cerca de um terço do esforço que é feito, por exemplo, nos Estados Unidos ou em um país europeu.
É muito pouco.
Nós temos um déficit educacional onde precisaríamos investir muito mais, relacionado ao próprio PIB, do que esses países investem porque eles já fizeram o seu trabalho. O Brasil, há muito e muito tempo, deixa de fazer o que tem que fazer em matéria de educação.
Mais da metade das escolas brasileiras não dispõem do mínimo necessário para funcionarem. O que é esse mínimo? Água, esgoto, luz elétrica, sala de leitura ou biblioteca. Esse conjunto falta em mais da metade das escolas brasileiras.
Só neste ano, o orçamento da União, em matéria da educação, teve uma redução de 3,1 bilhões de reais. Na área do Programa Nacional do Livros Didáticos, por exemplo, foram cortados 544 milhões de reais.
Tudo isso caracteriza, exatamente, o perfil de um governo.
Um governo que acha que o país pode se desenvolver e sabe que só pode desenvolver a partir da educação, tem que investir mais e tem que investir melhor em educação.
O atual governo brasileiro corta recursos da educação, destina recursos que são da própria educação para a área militar, ou para a área de pagamento da dívida e Isso, ao meu modo de ver, caracteriza um governo que é contra os destinos melhores que o Brasil precisa ter.
Esse destino só pode ser melhor quando investirmos pesados em matéria de educação, principalmente em educação pública.
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