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Abril de 1980: a crise dos marielitos leva à derrota Jimmy Carter e Bill Clinton

Texto de Fernando Morais
Desenhos de Vallandro Keating

Há quarenta anos um jogo de xadrez político entre os presidentes Jimmy Carter e Fidel Castro gerou uma crise migratória sem precedentes entre Cuba e os EUA. Depois de despachar 125 mil cubanos para os Estados Unidos (“loucos de hospício e criminosos comuns”, acusava a CIA), Fidel acabou sendo protagonista das derrotas de Carter, à reeleição, e de Bill Clinton, a governador do Arkansas.

          As duas primeiras embarcações a cruzar a estreita entrada da baía de Mariel foram o camaroeiro Blanchie III e o rebocador Dos Hermanos. Ambos tinham zarpado do sul da Flórida um dia antes, e para chegar a Cuba enfrentaram um mar tormentoso e picado, com ondas de até dez metros e ventos de vinte nós de velocidade. A despeito do céu escuro, de nuvens baixas, uma vista aérea revelaria que o Blanchie III e o Dos Hermanos eram apenas os primeiros da fila. Atrás deles, a proa de um grudada na popa do outro, vinham milhares e milhares de barcos. A flotilha gigante começava em Mariel, atravessava os 140 quilômetros do estreito da Flórida e só terminava em Caio Hueso, corruptela cubana para Key West, a mais meridional das cidades norte-americanas. Antes que a noite chegasse, inacreditáveis 2.500 embarcações se amontoavam nos exíguos oito mil metros quadrados de superfície da baía de Mariel, a cinquenta quilômetros de Havana. Do outro lado da boca de acesso a Mariel, outros mil barcos aguardavam vagas para atracar. Os marielenses jamais tinham visto tantas embarcações juntas, nem mesmo no Torneio Internacional Hemingway de Pesca de Marlins, que costumava atrair barcos de todo o mundo à costa noroeste de Cuba. No entardecer daquele 22 de abril de 1980, a baía de Mariel parecia um bosque de mastros e chaminés. De todos os tamanhos e calados, as embarcações chegavam vazias, algumas transportando apenas o capitão e um marinheiro, e voltavam atulhadas de pessoas. Dezenas, centenas, milhares e milhares de pessoas que deixavam Cuba em direção aos Estados Unidos.

          O estopim do inusitado movimento tinha sido um editorial publicado na véspera pelo diário Granma, órgão oficial do Partido Comunista cubano, tornando pública a decisão do governo de abrir o porto de Mariel a todo e qualquer cidadão que quisesse emigrar para os Estados Unidos. O Granma anunciou também que a Guarda Costeira cubana recebera ordens para não importunar as tripulações de barcos que viessem da Flórida para recolher interessados em emigrar. Preocupado com o previsível caos que se avizinhava com a medida tomada por Cuba, o governo norte-americano reagiu. Nem mesmo as ameaças de prender tripulantes e confiscar embarcações que navegassem rumo a Cuba, porém, deram qualquer resultado. Como nenhuma lei proibia a livre navegação, não havia como cumprir a punição. Atraídos pela perspectiva de ganhar muito dinheiro – chegava-se a cobrar até dez mil dólares per capita para a travessia –, milhares de marinheiros decidiram ignorar as advertências e enfrentar 24 horas de mar borrascoso para chegar a Mariel.

          A pacata cidadezinha despertou convertida em uma Babel. O caos que se instalara no porto podia ser medido pelas notinhas publicadas diariamente na primeira página do Granma, nas quais os migrantes costumavam ser tratados como “elementos antissociais”:

          (…) Nesta quarta-feira embarcaram 4.501 elementos antissociais em direção aos Estados Unidos.

          (…) No dia de hoje encontravam-se atracadas neste porto 1.208 embarcações procedentes da Flórida.

          (…) Aproximadamente oitocentas embarcações repletas de passageiros deixaram Mariel no dia de ontem.

          (…) Nesta terça-feira saíram 1.400 elementos antissociais rumo aos Estados Unidos. Um bom ritmo!

          (…) Ontem deixaram este porto, rumo aos Estados Unidos, 722 elementos antissociais. Quando fechávamos esta edição, encontravam-se fundeadas no porto de Mariel 958 embarcações procedentes dos Estados Unidos. Perto disto aqui, o Torneio Internacional de Pesca de Marlins é uma bobagem…

         Da noite para o dia a cidade se transformou. Para receber as tripulações, residências foram adaptadas para funcionarem como hotéis, camelôs competiam com comércios montados às pressas pelo estado, garagens viraram farmácias. O Instituto Nacional do Turismo improvisou hotéis de campanha e passou a servir em Mariel – cobrados em dólares, claro – pratos dos melhores restaurantes de Havana. Furgões faziam uma ponte terrestre entre a capital e o pequeno porto transportando alimentos, remédios e caixas e mais caixas de charutos, de cerveja Hatuey, de rum Havana Club e da aguardente Coronilla. Caminhões pipas abasteciam de gasolina e óleo diesel as embarcações que chegavam. Por todos os cantos era possível ver marinheiros recostados em espreguiçadeiras, garrafa de rum ou de cerveja em uma das mãos e charuto na outra. Do lado de fora da baía, barcos da Guarda Costeira cubana organizavam a fila das próximas embarcações a entrar no porto. Jornalistas de todo o mundo dividiam uma grande tenda com os cinegrafistas do ICAIC – Instituto Cubano de Artes e Indústria Cinematográfica, que desde o primeiro dia filmavam tudo o que se passava ali.

         Nos dias de maior afluxo de embarcações, a diária em um modesto quarto em uma casa de família podia custar estratosféricos oitocentos dólares. Os tripulantes que não conseguiam vagas dormiam nos próprios barcos, enquanto aguardavam os trâmites burocráticos para a liberação dos migrantes, e aproveitavam as tempestades tropicais para se banharem ao ar livre, de cuecas ou calção. Logo começaram a aparecer as primeiras barracas de vendas de galos de briga, uma velha tradição cubana. Galos das mais finas raças, como os trifinos, giros, sumatras e carmelos chegavam a ser comercializados por até mil dólares o animal. No final do dia os conveses dos barcos viravam animadas rinhas, em torno das quais a marujada se juntava em apostas, sacudindo dólares nas mãos. Pequenos botes faziam o serviço de táxi entre a terra firme e as embarcações que ainda se encontravam na fila, em mar aberto.

         A abrupta ocupação de Mariel nascera de um braço de ferro entre os presidentes Fidel Castro e Jimmy Carter iniciado três semanas antes. No começo da tarde de 1º de abril, uma terça-feira, doze cubanos roubaram e arremeteram um ônibus contra o alambrado que protegia a mansão onde funcionava a embaixada do Peru, situada em uma ampla e arborizada avenida do bairro de Miramar, em Havana. Ao tentar impedir a entrada do grupo, o soldado que dava guarda nos jardins da embaixada foi morto a tiros. Vencidos os dois obstáculos, o grupo invadiu a legação diplomática e solicitou asilo ao embaixador Edgardo De Habich. Antes mesmo que o Peru se manifestasse, Cuba exigiu que todos fossem devolvidos. Com o assassinato do soldado, os invasores haviam se convertido em criminosos comuns, sem direito a asilo. Horas depois o conservador general Francisco Morales Bermúdez, chefe de governo do Peru desde 1975, anunciou que seu país concedia o asilo solicitado pelos invasores. Parecia um beco sem saída.

         O uso da força e o sequestro de aeronaves e embarcações para deixar o país vinham ocorrendo com frequência em Cuba. Em fevereiro vinte homens armados sequestraram o cargueiro liberiano Lissette e obrigaram a tripulação a conduzir o navio a Miami. Semanas depois um grupo rendeu o capitão do pesqueiro cubano Lucero, levando-o para Key West, no sul da Flórida. As notícias de que nenhum sequestrador de barco ou avião sofrera qualquer punição nos Estados Unidos funcionavam como um estímulo a ações como a que acabara de ocorrer na embaixada peruana. E como nenhum dos lados parecia disposto a ceder, durante três dias ninguém conseguia vislumbrar uma solução para o problema.

         Considerava-se até a possibilidade de que não houvesse solução alguma, ou seja, os seis permaneceriam indefinidamente dentro da embaixada. Observadores políticos lembravam dois casos célebres de impasses diplomáticos que conduziram a situações semelhantes. Perseguido pelo ditador Manuel Odría, em outubro de 1948 o político peruano Victor Raúl Haya de la Torre, fundador da poderosa Apra – Aliança Popular Revolucionária Americana –, entrou na embaixada colombiana em Lima e pediu asilo político, prontamente concedido pelo governo de Bogotá. Ante a decisão do general Odría de não lhe conceder o salvo-conduto para deixar o país, Haya de la Torre não teve alternativa senão passar cinco anos dentro da embaixada. Situação ainda mais dramática seria vivida pelo cardeal húngaro Jozsef Mindszenty. Após sete anos na prisão, o religioso, um fervoroso anticomunista, foi colocado em liberdade durante a revolta popular de 1956. Com a retomada do controle do país pelos comunistas, dez dias depois, Mindszenty pediu asilo na embaixada dos Estados Unidos em Budapeste – de onde só sairia 15 anos depois, em 1971.

         O que o ninguém poderia imaginar, porém, era que Fidel reagiria com uma insólita decisão, publicada na primeira página da edição do dia 4 do jornal Granma:

          Diante da negativa do governo peruano de entregar os delinquentes que provocaram a morte do soldado Pedro Ortiz Cabrera, o governo cubano se reserva o direito de retirar a guarda de proteção da embaixada. A referida sede, portanto, fica aberta a todo aquele que quiser sair do país.

          Mais rápida que o Granma, a radio bemba, rede informal de difusão de notícias e boatos boca a boca, se encarregou de fazer a novidade chegar logo a todos os confins da Ilha. No fim da manhã a multidão começou a chegar. A pé, de carro, de ônibus, de bicicleta, sozinhas e em grupos, as pessoas foram tomando, aos poucos, todos os espaços disponíveis no velho casarão colonial. Os mais fortes logo ocuparam os melhores quartos e os escritórios mais amplos. Superlotada a residência, foram sendo tomadas as edículas, dependências de empregados, garagens, depósitos, adegas e logo depois o sótão da casa e os jardins. Até nos galhos das árvores havia gente encarapitada. “A maioria era visivelmente composta por delinquentes e antissociais armados de facas e porretes”, se lembraria o embaixador De Habich, “mas também havia muita gente decente e, para preocupação adicional, muitas crianças.” Quando a noite caiu, 10.800 pessoas haviam entrado na casa, na qual não cabia mais ninguém. De Habich abandonou o imóvel, levando consigo todo o pessoal diplomático, à exceção de um encarregado de negócios que passou a responder pela legação. O governo cubano instalou dezenas de banheiros químicos nas calçadas em torno da casa e montou um sistema de distribuição de alimentos para a multidão alojada lá dentro. O abacaxi agora estava nas mãos do general Morales Bermúdez: como receber um grupo de exilados mais numeroso que a população da maioria das cidades peruanas? A comunidade internacional não parecia interessada em compartilhar o problema com o Peru. O Canadá se dispunha a receber mil pessoas, e a Costa Rica, trezentas. O governo de Lima alegava só ter condições de oferecer asilo a mil refugiados. Oito mil continuavam sem destino.

          É então que entra em cena o presidente Jimmy Carter. Dos seis ocupantes da Casa Branca desde o triunfo da Revolução Cubana, três republicanos e três democratas, Carter tinha sido o menos hostil a Cuba. Foram suas as iniciativas de levantar restrições a viagens de exilados à Ilha e de implantar Seções de Interesses em Havana e Washington. Tais gestos seriam reconhecidos por Fidel Castro. Em uma entrevista concedida ao autor deste texto para a revista brasileira Veja, em julho de 1977, o Comandante afirmara que “Eisenhower, Kennedy, Johnson, Nixon e Ford estavam comprometidos com uma política de agressões a Cuba, e este é o primeiro governo dos Estados Unidos, em dezoito anos, que não está comprometido com aquela política. Nixon era um farsante, um velhaco, um indivíduo sem ética de qualquer natureza. Eu não penso o mesmo de Carter”.

          Em abril de 1980, porém, a situação interna nos EUA era outra. Candidato à reeleição, Carter aparecia nas pesquisas com índices de rejeição ameaçadores. Além de enfrentar uma inflação que galopava rumo aos dois dígitos, a população ainda não digerira o que considerava os três piores pecados da política externa do presidente democrata: a devolução aos panamenhos do controle sobre o canal do Panamá, que vinha sendo explorado pelos EUA desde o começo do século XX; o sequestro de cinquenta civis norte-americanos por um grupo de jovens iranianos que ocupara a embaixada dos Estados Unidos em Teerã, seguido por uma malfadada tentativa de resgate dos reféns por um comando antiterrorista das Forças Armadas norte-americanas; e, finalmente, a opinião pública considerava também que Carter fora leniente com a URSS, em 1979, ao não reagir à invasão do Afeganistão por tropas do Exército Vermelho.

          A crise instalada na embaixada do Peru em Havana – e que acabaria desembocando em Mariel – parecia oferecer uma oportunidade para salvar do naufrágio a popularidade do presidente. A distensão política entre Cuba e Estados Unidos chegou ao fim quando Carter convocou a imprensa para anunciar, sob o nome de “Braços e Corações Abertos”, uma nova política migratória para a Ilha. A partir de então, todo cubano que conseguisse “se livrar do jugo comunista” e chegar aos EUA, não importava por que meios, receberia asilo político, status de residente permanente e permissão para trabalhar e inscrever-se no serviço social. Para a estratégia de Carter dar certo, Fidel Castro deveria cercar Cuba de soldados armados para impedir uma fuga em massa para Miami. O tiro, no entanto, saiu pela culatra. O presidente cubano respondeu no mesmo dia e no mesmo tom: ante as ofertas de Carter, a partir daquele momento o porto de Mariel estava aberto para quem quisesse se asilar nos Estados Unidos. Não apenas os 10 mil inquilinos da embaixada peruana, mas qualquer um dos 11 milhões de cubanos que desejasse partir.

          E a fila de candidatos aos privilégios prometidos por Carter era cada dia mais extensa. No início de maio, duas semanas depois do anúncio das decisões do governo cubano, mais de 15 mil pessoas já tinham deixado Mariel rumo aos Estados Unidos, obrigando o governo a decretar estado de emergência em várias regiões da Flórida e abrir um crédito de 10 milhões de dólares para as despesas iniciais com os recém-chegados. Para aumentar ainda mais a tensão, no dia 8 de maio o governo norte-americano iniciou uma manobra militar gigante no Caribe. Da operação, batizada de Solid Shield 80, participaram 350 aviões de combate, 42 navios de guerra e 20 mil soldados.

          Fidel Castro acusou a Casa Branca de estar realizando um “vulgar, descarado e intolerável ensaio de invasão do território cubano” e reagiu colocando nas ruas multidões como nunca se vira antes, em 21 anos de Revolução. A inevitável lembrança dos dias terríveis da Crise dos Mísseis de outubro de 1962, ressurgiu quando o Pravda, jornal oficial do Partido Comunista da URSS, publicou um ameaçador editorial intitulado “Tirem as mãos de Cuba”:

          (…) A ameaça militar dos Estados Unidos colocou Cuba em alerta máximo. As forças armadas cubanas, a população adulta e as tropas soviéticas estão mobilizadas e em prontidão.

          (…) Fique claro que qualquer ataque contra Cuba representará um ataque à União Soviética. Nós vamos honrar o acordo [de outubro de 1962] que colocou a Ilha sob a proteção do guarda-chuva nuclear da União Soviética.

          (…) Cuba não está sozinha. Cuba tem amigos e aliados fortes, e a URSS estará na linha de frente em sua defesa. Por isso, reafirmamos: tirem as mãos de Cuba.

          Os atos de massas, marchas e passeatas se sucediam, assistidos por multidões cada vez mais numerosas e radicais. A afluência popular à comemoração do Dia do Trabalho, na praça da Revolução, surpreendeu o próprio Fidel Castro. “Compatriotas! Eu sabia que hoje teríamos um grande ato, talvez o maior de todos os 21 anos de Revolução!”, festejou, vitorioso. “Mas ninguém poderia imaginar que seria algo de tal magnitude!” Fidel falou para mais de um milhão de pessoas, quase 10% da população cubana, durante duas horas – menos da metade do tempo consumido por ele em setembro de 1960, na Crise dos Mísseis, quando discursou durante exatas 4 horas e 29 minutos. Arrebatado pela energia que emanava daquele mar de gente, Fidel vergastou o governo norte-americano e advertiu Carter de que qualquer tentativa de agressão a Cuba seria rechaçada não apenas por um milhão de pessoas, como aqueles que o ouviam, mas por cinco milhões de cubanos que travariam “dois tipos de guerra: a convencional e a guerra popular”. Cada vez que o nome do presidente norte-americano era citado, a multidão repetia:

Carter y la CIA: la misma porquería!
Carter y la CIA: la misma porquería!

          O Comandante guardou para o fim do discurso a notícia mais impactante. Frente às ameaças dos Estados Unidos, Cuba anunciava a criação de uma nova força de defesa – as Milícias de Tropas Territoriais, um verdadeiro exército civil que poucos meses depois contaria com um contingente de mais de um milhão de pessoas em armas:

          O partido deu instruções ao comando das Forças Armadas para formar imediatamente as Milícias de Tropas Territoriais [aplausos], que serão integradas por homens e mulheres, operários, camponeses, estudantes… Por todos que estejam em condições de combater, a fim de que possam defender cada pedaço do território nacional! [aplausos]. Todos que sejam capazes de combater poderão pertencer às Milícias de Tropas Territoriais! [aplausos].

          No começo de junho, quando a invasão da embaixada peruana completava dois meses, a situação adquiria contornos de calamidade pública. Até então já haviam chegado às costas dos Estados Unidos, embarcadas em Mariel, nada menos que cem mil pessoas. Fotos aéreas mostravam os 140 quilômetros do estreito da Flórida pontilhados por um rosário de embarcações, e a onda migratória parecia não ter fim. Um paliteiro de mastros de navios à espera de passageiros continuava se espremendo na baía de Mariel. Sob protestos dos contribuintes norte-americanos, Carter foi obrigado a sacar mais 10 milhões de dólares do Fundo de Emergência a Refugiados para assentar e alimentar o aluvião humano. Além disso, a CIA havia alertado a Casa Branca para um problema adicional: aparentemente Cuba abrira as portas dos hospícios e prisões, despachado entre os “marielitos” – neologismo qual ficaram conhecidos os passageiros daquela ponte marítima – dezenas de milhares de loucos e criminosos comuns. Quando a imprensa norte-americana noticiou o fato, Fidel Castro reagiu com ironia.

          Os ianques estão assombrados com a descoberta de que há alguns delinquentes entre os que se foram. Mas que tipo de gente eles imaginavam que tinha se alojado na embaixada do Peru? Pensavam que eram intelectuais, artistas, técnicos, engenheiros? Eles não viviam dizendo que era uma injustiça nós chamarmos de lúmpens a “pobres dissidentes políticos”? Pois agora eles estão vendo que a imensa maioria das pessoas que estava lá era isso mesmo: lúmpens!

          O tempo parecia jogar contra o destino de Jimmy Carter. Como acontece pontualmente na primeira terça-feira de novembro de cada ano bissexto, dali a algumas semanas os norte-americanos iriam escolher, entre ele e o ultraconservador Ronald Reagan, quem seria o ocupante do Salão Oval pelos próximos quatro anos. Os marielitos que Carter imaginara serem a tábua de salvação de sua candidatura viraram um estorvo que só fazia empurrar para baixo o nome do presidente nas pesquisas de opinião pública. Um editorial do jornal Granma revelava a indiferença com que Cuba enxergava os problemas eleitorais do presidente norte-americano:

          (…) Agora querem que ajudemos Carter a resolver o problema de Mariel? Mas quem criou esse problema foi a torpe política anterior dos Estados Unidos! E se ganha Carter, quem garante que se poderá confiar em uma mudança da política dos EUA em relação a Cuba? Não sentimos nenhum pânico ou temor com relação a Reagan ou a qualquer outro. Já lutamos contra seis presidentes ianques e nenhum nos atemorizou ou poderá jamais nos atemorizar. Por simples considerações domésticas dos Estados Unidos, não vamos enrolar nossas bandeiras nem renunciar a nossas justas demandas: fim do bloqueio, fechamento da base de Guantánamo e fim dos voos espias. Não faremos concessões à espera de maior sensatez ou de melhores tempos.

          Para retirar parte daquele peso de seus ombros, Carter decidiu compartilhar os marielitos, distribuindo-os entre os estados governados por democratas. O primeiro aliado a espernear foi o jovem governador do Arkansas, Bill Clinton, também candidato à reeleição no pleito de novembro. Pelas contas da Casa Branca, ao Arkansas caberiam nada menos que vinte mil marielitos. Receoso de que os incômodos hóspedes pudessem ameaçar uma eleição garantida, Clinton voou para Washington na esperança de reverter a decisão. Sua primeira e radical proposta de solução para o problema foi prontamente rejeitada por Carter. Clinton propunha pura e simplesmente que os mais de cem mil cubanos saídos de Mariel fossem levados à base de Guantánamo, o enclave militar norte-americano em território cubano. “Ainda temos uma base em Guantánamo e deve haver um portão na cerca que a separa de Cuba”, esbravejava. “Então levem-nos para Guantánamo, abram o portão e mandem-nos de volta a Cuba.” A segunda sugestão, igualmente estapafúrdia, foi ignorada: Clinton propôs que um porta-aviões gigante fosse fundeado no estreito da Flórida e que ali se realizasse uma triagem para separar os delinquentes dos demais. Nada feito. Na opinião do governador, Fidel estava “ridicularizando os Estados Unidos e fazendo parecer fraco o presidente Carter, que já tem problemas demais com a inflação e a crise dos reféns no Irã”.

          No final de maio Clinton veria desembarcar no Arkansas não os 20 mil prometidos, mas exatamente 25.390 cubanos. E logo ficou claro que seus temores procediam. Um dia depois da chegada, duzentos exilados fugiram do acampamento e realizaram um quebra-quebra no comércio local, só sendo contidos pelas tropas da Guarda Nacional, armadas de cassetetes e bombas de gás lacrimogêneo. Metade dos fugitivos desapareceu. Preocupado com o risco de uma confrontação sangrenta, Clinton falou por telefone com Carter e pediu tropas federais para manter a ordem e segurar os cubanos no interior da base. “Eu temia que o povo da região começasse a atirar nos cubanos”, escreveu em suas memórias. “Tinha havido uma corrida por rifles e pistolas em todas as lojas de armas em um raio de oitenta quilômetros ao redor de Fort Chaffee.” Uma semana depois, armados de paus, pedras e garrafas, mais mil refugiados escaparam e saíram em passeata pela rodovia que une Fort Smith a Barling, cidadezinha situada dez quilômetros ao sul. Mesmo sabendo que corria o risco de promover um banho de sangue, Clinton deu ordens à Guarda Nacional para impedir que os fugitivos avançassem. Os marielitos enfrentaram a tropa a pedradas, mas acabaram se rendendo e retornaram ao acampamento. Quando a fumaça baixou, os distúrbios tinham deixado um saldo de 62 feridos, dos dois lados, e três edifícios incendiados.

          O único incidente grave registrado desde a abertura do porto de Mariel ocorrera no final de junho. Um avião-espia SR-71 Blackbird que fazia sobrevoos diários sobre a baía fotografou uma embarcação que se destacava das demais pelas dimensões – muitas vezes maior que qualquer um dos barcos que coalhavam a baía. As fotos revelaram tratar-se de um cargueiro de aço de 55 metros de comprimento, sem bandeira que permitisse qualquer identificação e em cujo casco podia-se ver apenas seu nome: Blue Fire. Após analisar pilhas de fotos do navio, os técnicos da CIA concluíram que o Blue Fire havia sido adaptado às pressas para o transporte de passageiros e preparava-se para embarcar de uma só vez 5 mil marielitos – o equivalente a mais de quatro dias de fluxo no porto de Mariel desde que a onda migratória começara. Segundo o informe da agência de inteligência norte-americana, a operação era uma provocação armada por Cuba e deveria concluir com o Blue Fire apinhado de cubanos atracando na Flórida no dia 4 de julho, data da Independência dos Estados Unidos e dia em que Jimmy Carter estaria iniciando sua campanha eleitoral em Miami. O governo cubano negava qualquer responsabilidade sobre as atividades do Blue Fire, que segundo Havana era apenas mais um barco em busca de passageiros, mas Carter não podia correr riscos. Disposta a impedir a qualquer custo que o misterioso cargueiro deixasse as águas territoriais cubanas, a Casa Branca ordenou o estacionamento de navios de guerra e barcos-patrulha da Guarda Costeira a exíguos vinte quilômetros de Mariel. A despeito da tensão gerada pela agressividade dos EUA, em atenção a um pedido formal do secretário de Estado Edmund Muskie, e em um gesto de boa vontade, o governo de Cuba proibiu o capitão do Blue Fire de embarcar passageiros e exigiu que o navio deixasse o porto de Mariel. Só ao interceptarem a embarcação, já em águas internacionais, é que as autoridades navais norte-americanas se convenceram de que os cubanos não haviam mentido. O capitão do navio – de bandeira norte-americana, como se apurou – era só um aventureiro a mais, interessado apenas em ganhar dinheiro com a crise migratória e que jamais pensara em estragar a festa de Carter.

          No dia 25 de setembro Cuba faria outro gesto em direção aos Estados Unidos, determinando o fechamento do porto de Mariel, pelo qual haviam saído nada menos que 125 mil pessoas – mais de 1% da população cubana. Era o primeiro passo para a normalização da crise e para a assinatura de novos acordos migratórios, mas para Carter e Clinton já era tarde demais, e a história terminou sem um final feliz. Ao serem abertas as urnas de novembro, viu-se que os marielitos haviam derrotado ambos. Para o lugar de Clinton os eleitores tinham escolhido o republicano Frank Durward White. No plano nacional o desastre democrata fora idêntico. Jimmy Carter não só perdera feio, mas entregara a Casa Branca ao ultraconservador Ronald Reagan. Carter reconheceu a derrota e a parcela de responsabilidade que Mariel tivera nela:

          O problema dos refugiados cubanos nos prejudicou fortemente. Não só na Flórida, mas em todo o país. Fez-nos parecer impotentes. Olhando retrospectivamente esses últimos seis meses, não vejo o que poderíamos ter feito de forma diferente ou melhor, mas, sem dúvida, isto teve um custo político.

          O diplomata norte-americano Wayne Smith, que desde 1979 chefiava o Escritório de Interesses dos Estados Unidos em Cuba, e que depois se tornaria um ativista pró-diálogo Cuba-EUA, acredita que a derrota de Carter adiou indefinidamente a possibilidade de reatamento das relações entre os dois países:

          Eu acredito firmemente que se Carter tivesse sido reeleito nós teríamos alcançado a normalização das relações com Cuba. O Conselho de Segurança Nacional tinha sido colocado à margem das decisões sobre Cuba, e Carter decidira que assim que Fidel fechasse Mariel os Estados Unidos iniciariam negociações ponto a ponto com os cubanos. A atmosfera era propícia, e não só do lado dos Estados Unidos: Castro também tinha chegado à compreensão de que era muito melhor negociar com Carter do que com Reagan e estava inclinado a mover-se nessa direção.

          É possível que a avaliação de Smith fosse correta. A única coisa certa é que Carter foi quem pagou o preço mais alto para a solução da crise. Mas se para ele o fim da onda migratória significara encerrar a carreira política, para os moradores de Mariel representava a volta da paz. Na luminosa manhã de 26 de setembro de 1980, uma tempestade tropical desabou sobre Mariel. A chuvarada arrastou para o alto-mar os escolhos e a sujeira que tripulantes e passageiros haviam atirado na água durante 150 dias e 150 noites. O último navio de passageiros zarpou, e a cidade retornou à placidez de sua vida cotidiana, com os pescadores indo para o trabalho e as crianças nadando nas pequenas e pedregosas praias que contornam a baía. O habitual silêncio da cidade só voltaria a ser quebrado três décadas depois, em junho de 2010, pelo ruído dos motores dos primeiros buldôzeres que transformariam o porto no mais importante empreendimento da história da Revolução.

Este texto é parte integrante do livro “Mariel – Cinco Séculos de Histórias/Mariel – Cinco Siglos de Historias” editado em português e espanhol. As tiragens, não comerciais, foram destinadas exclusivamente aos 34 chefes de Estado e de Governo presentes à II Reunião de Cúpula da CELAC – Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos – em Havana, Cuba, em fevereiro de 2014, da qual participou a presidente Dilma Rousseff. Em 2019 o Brasil abandonou a CELAC por determinação do governo Bolsonaro.

  • Fernando Morais é jornalista, escritor e editor do Nocaute.
  • Vallandro Keating é arquiteto e artista plástico. É autor de grandes painéis incorporados a obras de Oscar Niemeyer, entre os quais se destacam, em São Paulo, murais no Memorial da América Latina, no Parlamento Latino Americano e no Novo Auditório Ibirapuera; em Brasília, o mural do Superior Tribunal de Justiça. É coautor, entre outros, do livro “A Bordo do Rui Barbosa”, em parceria com Chico Buarque de Holanda.

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