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O assassinato de Suleimani é parte de uma guerra sem fim

O atentado que matou o general iraniano Qasem Suleimani pode parecer, à primeira vista, apenas mais um gesto tresloucado de Trump. Mas é preciso estar alerta para as razões domesticas de tal decisão, e lembrar que, como acontece desde a guerra do Vietnã, a superioridade militar dos EUA é sempre derrotada pela falta de estratégia politica.

Quaisquer que sejam os motivos que levaram o presidente Trump autorizar o assassinato do general, um dos principais comandantes militares iranianos, tudo leva a crer que a politica doméstica dos EUA seja uma das principais razões (processo de impeachment e eleições presidenciais) que reforça o ímpeto imperialista na região. O fato é que, a partir de então, se iniciou não apenas uma nova etapa nas relações entre Irã e os EUA, mas uma redefinição do quadro geopolítico de todo Oriente Médio.

Por mais paradoxal que possa ser, até o dia 02 de Janeiro de 2020, era possível pensar num novo acordo entre EUA e Irã apesar da tensão crescente entre eles desde a retirada unilateral de Trump do acordo nuclear em 2018 (acordo de 2015 entre o Irã e um grupo de potências mundiais conhecido como P5 + 1 – EUA, Reino Unido, França, China, Rússia e Alemanha) colocando o Irã sob crescente pressão econômica, política e diplomática. Enquanto esteve em vigor, o acordo assinado pelo então presidente Obama, não houve ataques das forças iranianas contra as forças americanas, nem contra instalações petrolíferas sauditas, que estavam mais ocupadas com as manifestações populares contra o governo iraquiano mantido pelos dois paises.

Em junho de 2019, o primeiro-ministro japonês Shinzo Abe esteve em Teerã para ajudar a intermediar um possível diálogo entre os EUA e os iranianos. Abe instou a liderança iraniana a seguir as regras nucleares internacionais e a desempenhar um “papel construtivo” para a segurança regional, logo após a visita do presidente Trump ao Japão, na qual o Irã era um dos principais tópicos de discussão. Em 20 de dezembro, Abe recebeu o presidente do Irã, Hassan Rouhani, para ajudar a manter o acordo. No inicio de dezembro, os EUA e o Irã fizeram troca de libertação de prisioneiros. Trump agradeceu ao Irã no Twitter pelo que chamou de “negociação muito justa”, acrescentando que era possivel haver cooperação entre ambos os países (https://www.reuters.com/article/us-iran-usa-prisoners/united-states-and-iran-swap-prisoners-in-rare-act-of-cooperation-idUSKBN1YB08X).

Um mês depois, em uma coletiva de imprensa, um alto funcionário do Departamento de Estado dos EUA disse que Suleimani era, por vinte anos, “o principal arquiteto” dos ataques terroristas do Irã. Mas os EUA não estavam em guerra com o Irã. Aliás, é importante sublinhar que na noite de sua morte Suleimani não se movia furtivamente pelo Iraque e se dirigia para o aeroporto de Bagdá, região em que tem base militar norte-americana na Zona Verde. Ora, esse livre trânsito de Soulemani era possivel porque havia um entendimento entre os americanos e iranianos.

As relações entre os EUA e o Irã sempre tiveram um duplo caráter no Iraque, desde 2003, com a queda do governo de Sadam Hussein. Há cooperação entre os dois países para “pacificar” o Iraque, mas, ao mesmo tempo, as relações sempre foram de disputa por hegemonia no Oriente Médio. A retirada do governo Trump, em maio de 2018 do acordo nuclear, a reintrodução das sanções econômicas dos EUA contra o Irã, em novembro de 2018, e a derrota de um inimigo comum (o ISIS) criaram uma situação de tensão crescente. Após as eleições parlamentares iraquianas, em maio de 2018, essa rivalidade ficou evidente. Tanto Washington quanto Teerã têm forçado o governo iraquiano a tomar partido.

Os protestos populares contra o governo iraquiano se originaram nas províncias do sul e do centro do Iraque, regiões que tradicionalmente têm sido a espinha dorsal da influência iraniana, se espalharam por todo o pais caracterizando a revolta como não sectária e de carater nacional. Tratava-se de uma revolta contra um dos governos mais corruptos do mundo e uma sociedade onde a desigualdade economica e miséria crescente são decorrentes fundamentalmente de uma política econômica neoliberal (privatizações) e militarização da economia.

Mas as seguidas ações militares dos EUA, matando dezenas de combatentes iraquianos, fizeram com que as questões geopoliticas preponderassem sobre as revoltas populares. Como já acontece desde a guerra do Vietnã, a superioridade militar dos EUA é sempre derrotada pela falta de estratégia politica. O parlamento iraquiano votou pela expulsão das tropas norte-americanas, o antiamericanismo em todo o Oriente Médio atinge seus niveis mais elevados, aumentaram as possibilidades da presença russa e chinesa na região, criticos e dissidentes do regime iraniano e iraquiano se uniram no repúdio à ação dos EUA.

Tudo isso pode nos dar a impressão de uma ação tresloucada de Trump e seus assessores. Contudo, como foi dito no inicio desse texto é preciso estar atento, sobretudo, para as razões domesticas de tal decisão. Mas, não apenas às questões propriamente políticas. É bastante conhecida a assertiva do grande estrategista Clausewitz de que a “a Guerra é a continuação da política por outros meios”. E a politica nos EUA é feita, sobretudo, a partir da lógica econômica. CEOs de grandas empresa militares dos EUA devem colher enormes lucros a partir de uma possivel escalada de conflitos com o Irã. Assim que as notícias do assassinato do general chegaram aos mercados financeiros, os preços das ações dessas empresas dispararam.

Em Dezembro de 2019, Trump conseguiu autorização do Congresso para gastar mais de US$ 738 bilhões no Pentágono para o ano fiscal de 2020, o que representa um aumento de US$ 21 bilhões em relação ao ano de 2019. Isso é mais do que foi gasto nas forças armadas durante as Guerras da Coréia e do Vietnã.

De acordo com estimativas do projeto Costs of War, do Instituto Watson de Assuntos Públicos e Internacionais da Universidade Brown, a guerra ao terror custou aos americanos por volta de US$ 6 trilhões desde 2001, quando os EUA invadiram o Afeganistão. Isso significa que, ao longo desses dezenove anos os norte-americanos gastam US$ 32 milhões/hora. Desde 2001 a guerra continua a se espalhar pelo mundo e não se limita ao Afeganistão, Iraque ou Síria, mas as forças armadas dos EUA e as empresas militares de segurança fazem parte de uma rede de operações em todo o mundo – em pelo menos 76 nações, ou 40% dos países do planeta.

Como se sabe toda essa maquina de guerra em operação tem como consequência aumentar o numero de revoltas no mundo, portanto, quando os presidentes dos EUA dizem em alto e bom que seu objetivo é derrotar o terrorismo, pode-se entender que, no fundo, eles sabem que isso só vai alimentar o aparecimento de mais conflitos e, por mais pradoxal que possa ser, isso deve ser visto como um exitos políticos.

Creio que um texto de Trotsky, escrito no final da década de 1920, sobre os problemas da política mundial e da política europeia decorrentes da expansão irresistível do poder norte-americano, traduza de certa forma o futuro que nos aguarda. Com sua expansão, explicava Trotsky, os norte-americanos “introduziram no subsolo de seu edifício os barris de pólvora do universo inteiro”. Ou seja, passaram a querer lidar com todos os antagonismos do Ocidente e do Oriente, a luta de classes na Europa, as insurreições dos povos coloniais, todas as guerras e todas as revoluções. De um lado, isso fez com que o capitalismo norte-americano se tornasse a força fundamental da contrarrevolução internacional, cada vez mais interessado em manter a “ordem” em todos os lugares do mundo. Mas, por outro lado, essas ações podem preparar o terreno para uma explosão revolucionária gigantesca deste poder imperialista mundial em expansão.

(*) Reginaldo Nasser é mestre em Ciência Política (UNICAMP), doutor em Ciências Sociais (PUC-SP) e livre-docente do Departamento de Politica da PUC-SP desde 1989. Foi professor do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais de 1999 a 2009 (Unesp, Unicamp e PUC) e chefe do Departamento de Relações Internacionais da PUC-SP de 2013 a 2017.

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