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A luta é contínua

Na terceira e última reportagem sobre uma visita de oito dias à Venezuela, o repórter Pedro Carrano mostra que o povo está de braços abertos para um novo país. 

Reportagem/Parte 3

No caminho até a comunidade de Amatina, em Caracas, vimos vários prédios novos, construções ainda cheirando a novo. Nos últimos anos, o governo venezuelano entregou, através do programa Misiones Vivienda, quase 3 milhões de moradias no país. Curiosamente, lembramos que 3 milhões é o mesmo número de pessoas que perderam suas casas quando estourou a crise financeira mundial, em 2008, nos Estados Unidos. 

Quando chegamos, Juana Maracoina, uma mulher de longos cabelos, sorriso nos lábios, líder nata, antes de pegar o microfone, nos serviu um cafezinho quente com pãozinho.

– Sejam bem-vindos ao território livre!

Ela saúda os visitantes estrangeiros de doze partidos. Num final de tarde calmo e ensolarado, famílias inteiras das janelas de suas casas, acompanhavam a nossa conversa. Soubemos que as cento e trinta e sete famílias que hoje moram em Amatina, construíram elas mesmas as suas moradias, prédios inteiros, em sistema de mutirão e organizadamente. O trabalho durou três anos. Durante esse tempo, as pessoas aprenderam várias técnicas de construção, com a orientação de engenheiros e arquitetos. O desafio que elas enfrentam agora, enquanto movimento social, é manter o sonho que ficou de pé. 

Uma liderança popular nos explica o que aconteceu em Caracas: “Somos uma plataforma de várias organizações, trabalhadores e trabalhadoras que ocupam edifícios. Havia uma política de gentrificação na capital, até a chegada de Chávez ao poder. Iniciamos um processo de mobilização e de luta de classes que viabilizasse a falta de imóveis”.

Algumas famílias nos apresentam com orgulho, sempre acompanhadas por seus filhos, o interior de suas casas. Casas confortáveis, algumas com três quartos, dois andares e com cerca de 90 metros quadrados, bem diferentes dos habituais 37 metros das construções dos programas sociais brasileiros de moradia popular. Aqui, famílias numerosas lutam por um espaço maior.

Conhecemos uma militante argentina, que mora há muitos anos em Caracas, e que teve uma ideia criativa para ajudar a sanar o problema de moradia no país. Ela construiu um apartamento e resolveu dividi-lo em dois, oferecendo a outra metade para duas famílias necessitadas.   

As ocupações geralmente são feitas em terrenos do Exército ou áreas vazias próximos ao centro da cidade, ações que os moradores contam que sempre foram incentivadas pelo próprio presidente Chávez, fortalecendo o incentivo à organização popular e autonomia.  

Juana lembra que o comandante sempre dizia:

  • Ocupem! Ocupem!

Há um bloqueio econômico feroz e também um bloqueio midiático tão sufocante quanto o que acontece com Cuba. É como se a névoa que encobre parte da cidade de Caracas, que olhamos assim do alto, fosse uma parede branca cobrindo as verdadeira informações sobre o que de fato acontece no cotidiano desses venezuelanos. 

O dia do nosso encontro – 7 de outubro – coincidia com o Dia Mundial de Luta por Moradia. Maracoina, entusiasmada, fala também da  experiência de padarias comunitárias, que deu muito certo e empregou doze mulheres eleitas pela comunidade e fortaleceu os Comitês Locais de Abastecimento e Produção. Fica claro pra gente que várias lideranças populares que ouvimos têm a sua forma de pensar o socialismo, o seu processo de organização, sentem-se parte de uma revolução que é deles. 

Aqui na Venezuela, as pessoas se organizam com urgência para a produção autogestionária e, ao mesmo tempo, reforçam a organização e o poder popular. A visita à comuna de Alto Lídice, uma favela no alto de Caracas, no dia seguinte, foi um exemplo disso. O protagonismo popular está na fala de todos. Ao mesmo tempo, não evitam o tema da crise econômica, do bloqueio econômico, da dependência histórica do rentismo petroleiro e o preço caro que isso agora está cobrando. 

Margaud Godoy, governadora do Estado de Cojedes, nos conta que, agora, “temos uma consciência melhor do que já tivemos. Foi o melhor momento para romper com o capitalismo, mas não temos ainda os recursos”. 

Esses membros das comunidades têm relação de cogestão com os recursos governamentais, mas em todos os lugares que passamos defendem autonomia em relação ao Estado. Buscam agora fazer mais com menos, citando o presidente Nicolás Maduro, figura obviamente bem menos citada que o comandante Hugo Chávez, mas reconhecida pelo esforço desses anos recentes de agressão contra o país. 

Para se ter uma ideia do impacto que bloqueio econômico provoca na vida das pessoas, o médico chileno Roberto Bermudes, representante da Junta Comunal de Saúde, que está há cinco anos no país, nos revela que há uma dificuldade de obter remédios que, em virtude das sanções norte-americanas, simplesmente não são vendidos pelos fabricantes ao país. Esses e outros exemplos se multiplicam em qualquer área que se necessite um produto não fabricado na Venezuela. Remédios para doenças graves, como os mal de Parkinson e o Alzheimer, não são fáceis de conseguir.  

Moradores voluntários organizam farmácias populares onde os pacientes,  depois de passar por consultas com os médicos da região, podem retirar os medicamentos e receber atenção ao longo do tratamento. Ainda bem que  número de médicos em relação à população está dentro dos padrões da Organização Mundial da Saúde (OMC).

Na nossa viagem a Venezuela encontramos pessoas decididas a construir um novo país. O jovem Jesus, por exemplo, boné na cabeça, responsável pelas finanças, organizador das Empresas Populares Socialistas, diz entusiasmado:

– Queremos gerenciar nosso próprio gás  e realizar uma obra autogestionada de produção de alimentação. 

É gente que constrói casas com as próprias mãos, planta milho em terrenos não apropriados mas, mesmo assim consegue colher e distribuir entre as comunidades. E o mais importante é que encontramos crianças que, desde pequenininhas, já têm uma consciência do que é produzir, dividir, crescer e ser feliz. Elas estão de braços abertos decididos a fazer um país.  

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Pedro Carrano é jornalista, militante da organização Consulta Popular e coordenador do jornal Brasil de Fato, no Paraná.

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