América⠀Latina

Eu vi a Venezuela de perto

O jornalista Pedro Carrano passou oito dias na Venezuela e teve uma surpresa. O cenário que encontrou foi muito diferente do caos que a mídia brasileira mostra, quando mostra. Na primeira reportagem de uma série de três, Carrano vai mostrando o que se passa realmente no país.

Reportagem/Parte 1

Eram quatro e vinte da tarde quando chegamos ao Quartel 4F, conhecido como “Montanha”, em Caracas. Faltavam apenas cinco minutos para os portões se fecharem. Todos os dias é sagrado, quatro e vinte e cinco, jovens soldados e milicianos chegam a este local, onde estão os restos mortais de Hugo Chávez, tenente-coronel que governou a Venezuela entre 1999 e 2013, para prestar uma homenagem ao comandante. É sempre bom lembrar que Chávez venceu três eleições e sofreu uma tentativa direta de golpe de estado, em 2002.

Nossa brigada de solidariedade com o país – a Chico Mendes – formada por seis militantes de diferentes organizações políticas e movimentos populares, nesses tempos de bloqueio econômico e risco de uma intervenção ameaçada por Donald Trump, acompanhou essa cerimônia, gracias à compreensão de uma miliciana que cuida do espaço há 17 anos.

Sorriso no rosto, a senhora, já idosa, fez questão de nos acompanhar em cada cômodo do quartel e do museu que conta a história do presidente, que veio da região dos Llanos, de uma família humilde, ascendentes indígenas.

Aqui, um Erramos. Na correria, acabei me esquecendo de anotar o nome desse povo otimista e cálido, sempre muito atencioso com todos nós. Seguimos.

Foi quando começou, no Equador, o levante da população que, a cada dia, ganhava repercussão em todo a América Latina e vários países do mundo. Os canais públicos venezuelanos divulgavam, via TV aberta e durante 24 horas ininterruptas, tudo o que acontecia no país do presidente Lenin Moreno. Os repórteres e apresentadores explicavam os vários motivos que levam o povo às de Quito e outras cidades, passos que foram seguidos também por chilenos, descontentes com o governo neoliberal de Sebastián Piñera. A televisão venezuelana mostrava os preparativos para as eleições no Uruguai e na Argentina, onde o peronista Alberto Fernandez tinha tudo para tirar de cena, o neoliberal Mauricio Macri. No meio dessa América Latina em ebulição, dá gosto ver na TV venezuelana, o questionamento do neoliberalismo em todo o continente e a experiência consolidada da Venezuela como alternativa.

Caia uma chuva fina no quartel, quando jovens milicianos fizeram uma salva de tiros homenagem a Chávez no momento exato de sua morte, há seis anos. Popular, socialista, anti-imperialista, bolivariana e chavista. Esse foi o enfoque sobre a revolução de Hugo Chávez distribuído ali e que passou de mão em mão.

Foi aqui que Chávez comandou, no dia 4 de fevereiro de 1992, a tentativa de insurreição contra o governo neoliberal de Carlos Andrés Pérez, um golpe de estado que fracassou, mas que projetou como liderança nacional o jovem militar que andava com livros do guerrilheiro Ernesto Che Guevara nas mãos. Durante nossos dias em Caracas, os venezuelanos perguntaram muito sobre o Brasil. Conto que participo da Vigília Lula Livre, em Curitiba. Eles me contaram que, na época da prisão de Chávez, que durou dois anos, o mesmo aconteceu, com uma vigília em frente ao presídio onde ele ficou durante dois anos. O estopim para a comoção popular foi a mensagem de Chávez negociou e, ao vivo em cadeia nacional de televisão, disse:

  • Por enquanto, lamentavelmente, os objetivos que nos colocamos não conseguimos lograr.

O povo venezuelano nunca esqueceu a tempestade que caiu no dia 4 de outubro de 2012, no último discurso de Chávez antes de ser debilitado pelo câncer. O episódio é sempre relembrado neste dia.

A primeira vez que estive aqui, em fevereiro de 2006, foi também cheio de experiências e emoção. De lá pra cá, a Venezuela passou, dos anos dourados do petróleo até a crise no preço mundial que impactou o país. Nesses anos que passaram notei diferenças no jeito de conversar das pessoas que encontramos pelo caminho. Se antes, ouvimos que havia recursos e o povo deveria se organizar, hoje, a conversa é outra: “Devido às dificuldades, vamos nos organizar e produzir”.

Embora o país tenha passado por 25 eleições, entre plebiscitos e consultas à população, a mídia empresarial brasileira adotou a terminologia de “ditadura”, quando fala da Venezuela. Curiosamente, a TV Globo, o jornal Folha de S.Paulo, as rádios CBN e Band News não usam a mesma referência a regimes como a Arábia Saudita, por exemplo.

Vi com os meus próprios olhos que não há uma situação de caos, de pobreza e de violência extrema, tão anunciadas pela mídia. O país vive uma certa estabilidade, apesar dos fortes conflitos que duraram de 2014 a 2018. Vi várias lojas e mercados abertos, e também muitas tendas, mercados e lojas fechadas.

O abastecimento de alimentos se dá hoje pelos Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CLAP), rompendo o controle de alimentos e mercadorias exercidos pelo grupo Polar, que detém 60% da distribuição do país. Nas ruas, passamos por boas livrarias que oferecem livros de autores venezuelanos e latino-americanos a preços baratíssimos, todos eles impressos pela Fundação de Arte do governo.

Para os analistas com quem conversamos, a Venezuela enfrenta um momento difícil porque existe uma verdadeira guerra econômica contra o país. Eles contam que foi justamente os produtos básicos que começaram a faltar. E existe também no pais, uma guerra contra as mulheres: faltam fraldas, falta leite, faltam anticoncepcionais. Mas o povo está se organizando, resistindo e vai vencer essa luta. Palavras do vice-ministro de Comunicação, Willian Castilho.

No exterior, existe uma agressão visível de países neoliberais contra a Venezuela e, mesmo dentro da Venezuela, uma tentativa da oposição para desestabilizar a sociedade civil do país. Numa esquina da capital, um vendedor de frutas na sua barraquinha opina, quando perguntamos como está a situação do país.

  • Melhor.
  • Melhor que antes?
  • Sim, o tempo da fome já passou.

Nossa viagem continua amanhã.

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Pedro Carrano é jornalista, militante da organização Consulta Popular e coordenador do jornal Brasil de Fato, no Paraná

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