Brasil

Presidente do Cebrap: “Se na campanha já tem sangue derramado, imagina se Bolsonaro assumir.”

A socióloga Angela Alonso prevê uma escalada de violência caso Jair Bolsonaro (PSL) seja eleito presidente da República. “Se na campanha já tem sangue derramado, imagina se Bolsonaro assumir.”, disse em entrevista ao jornal Valor Econômico.

Alonso é presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), fundado entre outros pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Para a socióloga, existe a possibilidade de uma “caça às bruxas” promovida por milícias, as quais Bolsonaro já não consegue mais controlar: “Os grupos menos organizados que operam agora, diretamente, vão generalizar contra gays, que já começaram a ser vitimados, contra cotistas, artistas, intelectuais. Essa é a sequência normal dos golpes de Estado, do endurecimento dos regimes. Primeiro os diferentes na paisagem social; depois os críticos. É de se esperar intervenção nas universidades federais. Já vimos essa escalada.”.

Leia abaixo a entrevista na íntegra:

Valor: Há mais de 70 casos recentes de violência por intolerância política. O que pode vir no futuro?
Angela Alonso: Há duas coisas que ajudam a entender isso. Uma é que esta é uma sociedade violenta. A gente gosta muito de se olhar como povo tranquilo, pacífico, cordial, mas o Brasil tem uma longa história de violência política, sistemática. Da proclamação da República até 1964, só de violência política com participação do Estado foram 19 casos de conflitos aterradores. Depois veio a ditadura militar. Se olhar a história do país, a violência está o tempo todo. Com a polarização política, a violência é mais intensa, mas o que aparece é algo que já está inscrito na sociedade. E a outra coisa é que a violência e a polarização estão vindo desde 2013. Havia grupos que iam às manifestações com taco de beisebol, hostilizavam, arrancavam bandeiras, agrediam manifestantes.

Valor: Mas a intensidade da violência é diferente agora…
Angela: Em junho de 2013 já tinha uma grande massa de insatisfeitos com o governo do PT por diferentes razões. Tinham grupos da esquerda, black blocs que usavam a violência contra o sistema bancário, contra símbolos do Estado. A violência é uma linguagem da política. Teve a violência da polícia contra os manifestantes. Teve esses grupos mais à direita, variados, que começaram a aparecer. São pessoas que se apresentam pela força física, que vociferam em vez de fazer discurso. Elas se exprimem por palavras de ordem que são, em geral, de destruição do adversário. Não visam a persuasão.

Valor: E o que difere o atual momento?
Angela: Durante a gestão Dilma era uma mobilização contra o governo e eles foram vitoriosos. Houve uma certa articulação com o sistema político, mas ao contrário do que aconteceu com o impeachment do Collor, não apareceram lideranças que exprimissem os anseios daquela manifestação, que é de corte liberal a reacionário. Criou-se um vácuo e vários grupos tentaram ocupar. A mobilização foi bem sucedida em atacar sobretudo o PT, mas trouxe uma desmoralização da elite política como um todo. Começou a aparecer a defesa de que outras elites sociais deviam ocupar o lugar da elite política. Surgiram figuras do Judiciário, Joaquim Barbosa e Moro; depois, os empresários, Luciano Huck, Doria. E apareceu também a ideia, desde 2013, de que militares podiam ocupar esse papel. A candidatura Bolsonaro é o resultado disso. Ela cristalizou em torno de si esse sentimento difuso de que era preciso uma elite alternativa, capaz de operar os ânimos, inclusive à força. Bolsonaro é político, fez a carreira inteira na política, colocou os filhos na política, mas apresentou-se como alternativa. Nesse sentido ele é muito parecido com o Collor. Mas ele não é um líder, é mais um símbolo do que um líder.

Valor: Ele não lidera o anti-PT?
Angela: Quem foi às ruas durante o governo Dilma e combateu a gestão finalmente achou em que direção ir. Essas pessoas vinham ressentidas com diferentes dimensões de políticas petistas. Bolsonaro é um líder que não lidera. Ele libera. Ele não tem conexão orgânica com esses grupos. Não tem um partido estruturado. O apoio é de natureza mais difusa. É isso o que torna esse fenômeno muito mais perigoso do que a ala liberal que o apoia imagina. Mesmo que adote um discurso mais moderado, ele não vai controlar isso. Ele permitiu que viesse para o espaço público uma forma de ação direta, que não é por meio das instituições. É mito que o povo é cordial e que elites são conciliadoras. Não parece que haja uma solução de conciliação.

Valor: Bolsonaro disse que não tem como controlar seus apoiadores e afirmou ser vítima dessa violência. É um discurso insuficiente?
Angela: Ele funciona como um imã, em que esses grupos vão vindo em torno dele, mas tem razão quando diz que não controla. A candidatura vem crescendo porque tem apoio de grupos diferentes. São três correntes. Tem os liberais que veem o Paulo Guedes como alternativa razoável e próxima do que imaginam. Tem os que acham que o anti-PT é a salvação da lavoura. Só que não basta ser contra o PT senão Alckmin teria ganho. Tem que ser visceralmente antipetista, capturar o ódio, o ressentimento ao PT. E tem o grupo que está votando no líder autoritário intervencionista e se expressa na rua por meio da violência. Esse é o grupo afinado com a candidatura e que vai operar num potencial governo. Se na campanha já tem sangue derramado, imagina se ele assumir. Ele não precisa dizer nada. É uma espécie de senha indireta, de que liberou geral.

Valor: O vice, general Mourão, defendeu intervenção militar em caso de caos. Isso pode construir as bases para uma ação autoritária do governo?
Angela: Temos muitos cenários possíveis. O mais benigno é o que o leão vai ser domado, que Paulo Guedes domará Bolsonaro, políticos tradicionais como Renan Calheiros vão organizar a base no Congresso, que será um governo de direita, com rompantes, mas sem grandes desatinos. É o que o mercado aposta. Mesmo no cenário mais benigno pode ter situação muito crítica de polarização social, porque vai ter a esquerda na rua e é provável que os defensores do Bolsonaro saiam em defesa do governo. As medidas que Guedes trará são impopulares, como a reforma trabalhista, da Previdência. Vai gerar grandes manifestações, pode ter greve do funcionalismo. No fim do regime militar teve mostras disso. Isso pode dar razão para intervenção, mas para intervir precisa de quadros e não é fácil dar golpe de Estado. Precisa de gente para ocupar todas as posições.

Valor: E o pior cenário?
Angela: O cenário mais crítico é o de generalização do que estamos vendo, de grande caça social às bruxas, em que grupos organizados, como milícias, vão operar livremente. Os grupos menos organizados que operam agora, diretamente, vão generalizar contra gays, que já começaram a ser vitimados, contra cotistas, artistas, intelectuais. Essa é a sequência normal dos golpes de Estado, do endurecimento dos regimes. Primeiro os diferentes na paisagem social; depois os críticos. É de se esperar intervenção nas universidades federais. Já vimos essa escalada.

Valor: Pelo fato de Bolsonaro ser mais um símbolo do que um líder, há o risco de ser substituído por uma outra força de direita?
Angela: Vai depender de quem levar para o governo. Mas esse tipo de figura como ele, Trump, funciona bem. Não são administradores do governo, propriamente. Alguém administra, assume o poder de fato e ele pode ficar como a face pública. Se for isso pode ser até um governo muito estável.

Valor: Mesmo com a renovação no Congresso?
Angela: A renovação é relativa. Kim Kataguiri, por exemplo, é um líder de movimento, mas não tem experiência parlamentar. O que esses novos não percebem é que vão ser engolidos por quem sabe. A não ser que cheguemos a uma situação filipina, de desmonte do Congresso. Senão é muito provável que líderes mais experimentados, do Centrão, MDB, DEM controlem porque sabem jogar o jogo. O MDB já deu mostras ao falar que não vai apoiar nenhum dos lados. Vai apoiar quem ganhar.

Valor: O que despertou tanto ódio nas ruas e nas redes sociais?
Angela: É preciso entender melhor o modo pelo qual a sociedade reagiu às políticas redistributivas e à mudança social que aconteceu no governo Lula. A ascensão social não se deveu exclusivamente às políticas petistas. Teve a economia internacional, mudança demográfica. E talvez a mudança não tenha sido tão assim… Mas teve mudança. O mais importante é como ela foi percebida. Há indícios de como a classe média, que não foi beneficiada diretamente, se sentiu negligenciada, ameaçada. Tem manifestações de um desconforto com a presença pública de grupos que até então eram subalternos. Esses grupos ficaram ameaçados em sua identidade.

Valor: Há uma dimensão moral?
Angela: Essa dimensão moral vem desde o Fernando Henrique, com a liberalização de costumes, sobretudo no campo dos comportamentos sexuais. Casais homossexuais adotam crianças, se beijam em público. Tivemos manifestações de que isso não é tolerado. Vai criando um clima de tensão, de gente com raiva do que ofende seu status ou crença.

Valor: Como explicar o avanço do bolsonarismo entre os beneficiados por políticas sociais?
Angela: O avanço entra pela chave do moralismo, da família, do cidadão de bem, da religião. E a ideia de que o PT fez sempre o discurso de nós e eles, o que fazemos e o que o adversário não fez. O discurso do Bolsonaro é o da nação, dos patriotas, que vem desde 2013. A ideia do Brasil acima de tudo, que não quer se dividir, uma só raça. E a esquerda demorou muito para disputar os símbolos nacionais. As Diretas Já foram muito eficientes em disputar esses símbolos do governo militar e agora eles retomaram. Agora a campanha do Haddad colocou o verde-amarelo, mas e é um pouco tarde. Desde 2013 a direita retomou os símbolos nacionais. É preciso figuras de centro-direita que possam vir e dizer: não vamos defender nossas ideias com violência.

Valor: É possível ter conciliação ou a tendência é de radicalizar?
Angela: Há dois mitos sobre a sociedade brasileira. Além do mito do povo cordial, há o de que as elites são conciliadoras. As elites políticas disputam o poder com unhas e dentes, tapas e socos. Não me parece que haja uma solução de conciliação. O que pode haver é uma grande coalizão de centro-direita, mas a esquerda vai para oposição.

Valor: Uma eventual vitória do PT vai incendiar o cenário?
Angela: Toda lenha já está na fogueira. A questão é se vai chegar algum bombeiro, porque qualquer um dos dois que ganhar vai sofrer oposição forte e eventualmente violenta nas ruas, nas instituições, na imprensa. Não vejo futuro próximo pacificado. Em 2013 teve a explosão e depois foi até decepcionante para analistas que achavam que vinha a grande revolução de esquerda. Acalmou. Em 2015 cresceu de novo, depois o impeachment. Agora tem essa outra onda eleitoral. Pode dar uma acalmada, mas é um conflito que não está resolvido. Somos uma sociedade profundamente desigual e dividida sobre o sentido que devemos ter. Isso não resolve de um dia para o outro, de uma eleição para outra. Vejo com muito pessimismo.

Valor: A ditadura já não assusta mais? Tem certa simpatia?
Angela: Tem. Quando olhamos os apoiadores do Bolsonaro, os mais velhos apoiam menos. Quem viveu a ditadura sabe que não é um governo comandando abstratamente. É o controle da vida cotidiana. Escolas, espetáculos artísticos, a circulação nas ruas, a internet. Os mais jovens, que não viveram essa experiência, não têm a imaginação da ditadura. O regime autoritário desrespeita valores em geral. Não é a vida dos líderes do PT que serão exilados, é de cada um.

Valor: É possível comparar esse radicalismo a outro momento histórico do país?
Angela: Tem muitas semelhanças com o final do processo de abolição. Teve uma mobilização social de duas décadas e acirramento do conflito mais para o final do processo, a partir de 1884, quando há a possibilidade concreta de abolição. A radicalização acontece no interior das instituições políticas, com dois grupos que não conseguem negociar. Tem uma eleição muito disputada, como tivemos em 2014, entre a oposição e o governo, e no período subsequente ganha um governo muito conservador. Esse governo fez algo que pode acontecer agora: não só reprime a oposição, mas libera grupos sociais que estão operando.

Valor: E como foi?
Angela: Os clubes da lavoura, as milícias escravistas começam a perseguir abolicionistas, escravos que fogem, desobedientes. Em fevereiro de 1888, na véspera da abolição, teve o linchamento de um delegado acusado de acoitar os escravos fugidos. O delegado era muito moderado e quem foi linchá-lo foi a elite social da cidade de Penha do Rio do Peixe, que depois disso mudou de nome para Itabira. A elite, a gente de bem foi com cassetete no meio da noite e não só lincharam como o fizeram na frente da filha pequena, da mulher, que também apanharam. É muito expressivo do que pode acontecer. A gente sempre pensa em quem está praticando violência são os brucutus. Quando esse processo é liberado, não são só os brucutus que operam violência. É a gente de bem que se defende do que acham que é o mal. Isso e a decisão dos abolicionistas de resistir levou a uma decisão política importante para desarmar o conflito. As elites sociais que estavam fora entraram como mediadores.

Valor: Como se deu a mediação?
Angela: Agora temos uma sociedade polarizada sem mediação. Naquela hora apareceram mediadores. A igreja apareceu, juízes, a coroa começam a aparecer e fazer uma solução negociada. Nenhum lado ganha, nenhum perde completamente mas vamos achar o caminho de pacificação. A questão agora é quem pode operar assim.

Valor: Quem poderia?
Angela: O Judiciário está comprometido, tomou lado o tempo todo, se politizou. A igreja pentecostal também. Essa é a hora que os líderes políticos que a nação reconhece como estadistas ou pessoas respeitáveis precisam vir a público e se apresentar, dizer que não é a mesma coisa. Tem um lado que é liberador da barbárie e precisamos de um compromisso que permita transitar para outro estado de coisas. Senão vamos nos destruir como economia, como sociedade, como institucionalidade política.

Valor: Não demorou muito para ter esse tipo de mediação? Até que ponto o pronunciamento de um estadista como Fernando Henrique conseguirá mudar um voto?
Angela: Precisaria mais do que pessoas como o Fernando Henrique. Precisaria de líderes da direita que falassem com responsabilidade. Líderes religiosos, do mercado, grandes empresários que são respeitados. Entrar em cena gente que é do mesmo campo do Bolsonaro. A esquerda já se posicionou toda. No caso da abolição, uma figura chave foi o Antonio Prado, que era ministro do governo Cotegipe, repressor. Era um grande fazendeiro de São Paulo, um bastião dos escravistas e trocou de lado. Disse: ‘não dá mais, vamos fazer a abolição’. Esse tipo de figura é que precisa aparecer. São figuras de centro-direita que podem vir e dizer: não vamos defender nossas ideias com violência.

Notícias relacionadas

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *