Brasil

Que país é este, em que uma prisão de Curitiba é mais visitada que o Palácio Presidencial?

Em sua coluna no Nocaute, o ex-chanceler Celso Amorim afirma que, caso Lula não possa ser candidato, o Brasil será um país desacreditado internacionalmente e sem legitimidade junto ao seu próprio povo.

Amigos e amigas do Nocaute,
Estamos vivendo um período crucial desse momento eleitoral, um período crucial da história brasileira porque várias coisas vão ser resolvidas. Obviamente a principal delas é a candidatura do presidente Lula e o respeito da possibilidade dele participar de todas as atividades inerentes a candidatura.

Isso é um teste da democracia brasileira, é um teste das instituições em relação à vontade do povo brasileiro e agora, naturalmente, tudo isso ganha um relevo maior em função da decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU.

Eu quero comentar um pouquinho isso, embora já tenha falado outra vez, porque eu vejo que há muita desinformação. Eu vejo comentaristas de televisão, e, às vezes, até pessoas com posição de autoridade dizendo que é um “comitêzinho”. Não é um “comitêzinho”. O Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas é um órgão de tratado, ele não foi criado por um secretário geral ou por uma resolução de um órgão menor, ele é um órgão do tratado.

Então, todos aqueles que assinaram e ratificaram o pacto de direitos civis e políticos, e sobretudo aqueles que, além disso, como o Brasil, assinaram e ratificaram o protocolo facultativo, que reconhece o direito dos indivíduos se dirigirem diretamente ao Comitê de Direitos Humanos, eles são obrigados por suas decisões.

Ele é um órgão de tratado, ele é para a ONU o órgão mais importante para retificar se os direitos humanos, no caso específico de direitos civis e políticos, estão sendo cumpridos, da mesma maneira que existem outros comitês para direitos sociais, econômicos e culturais, existem outros para direito da mulher.

Então ele é um órgão de tratado, é um órgão da maior importância, só pessoas que desconhecem totalmente a área internacional podem dizer que é um “comitêzinho”. Isso é o primeiro ponto.

O outro ponto são aqueles que dizem que é um problema de soberania. Não se trata de um problema de soberania, porque o Brasil contraiu essas obrigações voluntariamente, são obrigações do Estado brasileiro, não é nem se quer do governo só ou de um dos ramos do poder no Brasil, é do Estado brasileiro e o Brasil assumiu livremente essas obrigações e tem que cumpri-las.

Não somos apenas nós que defendemos o Lula que estamos dizendo isso, isso é dito e foi dito, claro que fora dessa situação atual, por muito dos juristas que defenderam e defendem corretamente, que as normas de tratados internacionais têm uma valor supralegal, elas são mais fortes do que a lei, mais ainda quando se trata de normas de direitos humanos.
Muito dos atuais juízes da Corte gostaram de mostrar – e é bom que tenham mostrado – seu apreço aos direitos humanos e às normas internacionais. Eu acho que alguns deles se referiram até ao caráter civilizatório que tem essas normas internacionais, para que justamente o ordenamento jurídico do país vá se adequando.

A outra falácia que normalmente se ouve é dizer que isso é direito eleitoral e não é direito humano, é outra bobagem. Não sei se é bobagem ou má fé de quem fala, porque alguns podem ignorar os fatos, o artigo 25 do pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, assinala especificamente o direito de votar e ser votado como um direito humano, e foi justamente em função do dano irreparável que pode decorrer para o presidente Lula em relação à interdição de ser candidato, antes que todos os recursos em relação às ações criminais sejam julgadas em um processo justo, também diz o Comitê, é justamente em função do risco que isso ocorra que o tratado emitiu uma medida cautelar.

Uma medida de cumprimento imediato, que por enquanto não está sendo cumprida, esperemos que ela possa ser cumprida. A não aceitação do Lula como candidato, mesmo que depois, digamos, o Lula ganhe os recursos, terá sido um dano irreparável se ele não puder ter sido candidato.

Todas essas discussões que tem havido, de dizer que é um “comitêzinho”, que direito eleitoral não tem a ver com direitos humanos, ou de procurar dizer que não é obrigatório, tudo isso, na realidade, revela em alguns casos o desconhecimento, e talvez até má fé mesmo.

Vejam bem, se o Brasil não cumprir com esse tratado, além da imagem ruim que já tem, porque o mundo inteiro acompanha o que tem ocorrido com o presidente Lula, a natureza absolutamente peculiar e fora do comum como tem sido esse julgamento, a velocidade, a negação até de decisões de próprios juízes que eram os competentes no caso, como foi o episódio daquele habeas corpus concedido pelo juiz Favretto lá de Porto Alegre.

Quer dizer, o mundo inteiro acompanha, hoje em dia não dá mais para esconder isso. Na época da ditadura militar havia alguns que diziam que aqui é uma ilha de tranquilidade, na realidade uma ilha da fantasia porque obviamente as pessoas estavam sofrendo muito.

Então nesse caso não é possível, o mundo vê. As pessoas não podem pensar que elas estão falando só para enganar aquele público, ou para se justificar diante de um público que ignora. O mundo vê e isso afeta a credibilidade do Brasil.

Além desse impacto geral do caso, o não cumprimento de uma norma internacional, o não cumprimento de uma recomendação decorrente do tratado coloca o Brasil, no ponto de vista do direito internacional, como pária.

Como já foi lembrado no passado por um juiz, como é que pode esse país querer ser membro permanente do Conselho de Segurança, tese que eu defendi muito tanto como embaixador do Fernando Henrique Cardoso como quando era ministro do presidente Lula, e aliás, até antes como ministro também do Itamar Franco e que outros embaixadores e ministros brasileiros defenderam também com ardor, como esse país pode querer ocupar um lugar em Conselho de Direitos Humanos? Como ele pode querer ocupar um lugar importante nessa área que é tão vital para nós? Já tivemos, aliás, um brasileiro ilustre nessa área de direitos humanos que era o Sérgio Vieira de Mello. Como a gente pode querer isso se a gente não cumpre os tratados?

Esse é um ponto que temos que prestar atenção. Já que estou falando da repercussão internacional, que é cada vez maior, um artigo importante que saiu do Jorge Castaneda, um intelectual, um homem que de modo algum pode ser dito que é um esquerdista, é crítico aliás da esquerda na América Latina, no Brasil inclusive, ele fez um artigo e diz que o Lula tem que estar na urna e não na prisão, para que a democracia brasileira seja preservada, independentemente de outras questões que são julgadas.

É um artigo, que é muito importante, saiu na primeira página da versão impressa do New York Times. Têm pessoas que ridiculamente dizem que tudo isso é manipulação do PT, que é manipulação minha. Imagina. Se tivesse esse poder, eu hoje seria secretário geral da ONU ou mais, e não íamos ter essa situação horrorosa que nós temos no Brasil.

Na realidade, essas pessoas, além de tudo, demonstram uma grande mesquinharia porque elas são incapazes de compreender que outras pessoas se sintam realmente atacadas e ofendidas com o que está ocorrendo no Brasil.

Quando eu fui visitar o Papa, as pessoas são tão mesquinhas que ficam discutindo a frase do Papa. O Papa sempre, para todas as pessoas, pela humildade que lhe é natural, ao invés de dizer eu vou rezar para você, ele diz: reze por mim.

Hoje eu estive com uma pessoa que é presidente do Partido Social Democrata alemão que ele disse a mesma coisa. Mas como no nosso caso, se a pessoa tivesse lido até o fim a frase é assim: com a minha benção, eu peço que reze por mim.

É a mensagem que ele passou para o Lula. Então, essas mesquinharias são inacreditáveis e elas demonstram a falta de visão e sensibilidade dessas pessoas que estão fazendo esse tipo de observação até sobre Sua Santidade.

Vamos um passo além, vamos ver o que está acontecendo no Brasil hoje. Eu estive visitando o Lula, última vez tem duas semanas, eu levei esse livro que tinha a benção do Papa e o humilde pedido de que o Lula rezasse para ele, que é como ele faz com todas as pessoas. E eu tinha estado com o Papa junto com um ex-ministro chileno e um ex-ministro argentino. Ministros de outros temas, não de relações exteriores. Ambos, Carlos Ominami e Alberto Fernandez, estavam lá para falar do Lula e do Brasil, pelo temor de que o que está acontecendo no Brasil possa se espalhar pela América Latina.

Aliás, até certo ponto já está acontecendo, mas há uma grande preocupação de que esse sistema, que é movido pelo capital financeiro, por interesses que não sabemos bem onde estão, interesses estratégicos, econômicos, dizem respeito não só ao Brasil, mas à toda nossa região.

A gente pergunta: que país é esse em que uma cela de prisão em Curitiba é mais visitada por personalidades políticas internacionais, autoridades, do que o Palácio Presidencial? Tem algo de muito errado no país para que isso ocorra. Não é possível que essa situação se perpetue. Temos que ter a liberdade do Lula e o direito dele ser candidato. A liberdade do Lula porque é uma exigência do povo, de todos os que se debruçam sobre o assunto, partidos longe de serem radicais, que são críticos ao PT, e o direito dele ser candidato por todos esses motivos também, inclusive pela soberania popular, o povo quer escolher. É preciso que o novo presidente do Brasil tenha legitimidade.

Além disso, essa decisão de hoje do Comitê de Direitos Humanos da ONU.O Brasil quer ser um pária internacional em matéria de direitos humanos? Acho que a ditadura tomava jeito e não assinava os tratados. Esse tratado por exemplo é de 66, só foi assinado com Sarney e ratificado no governo Collor. Mas ela tomava o cuidado de não assinar para não ficar na posição em que estamos hoje, de correr o risco de abertamente não cumprirmos com uma obrigação internacional.

Mas eu ainda tenho esperança que uma luz chegue, um bom senso. Acredito que tenha uma dose de sinceridade na defesa que esses juízes e procuradores fizeram das normas internacionais de direitos humanos e que a única solução para pacificar o Brasil é deixar o Lula concorrer.

Me perguntaram hoje, esse presidente atual da fundação Friedrich Ebert, que foi presidente do PSD, presidente do Parlamento Europeu, não estamos falando de uma pessoa leviana, mas de alguém que exerceu todos os cargos de importância na Alemanha e na Europa, me perguntou o que será do Brasil se não cumprir essas normas, se Lula não puder ser candidato?

Acho que é um futuro imprevisível. As pessoas não podem se iludir. Temer se beneficiou da provisoriedade, todo mundo ficou concentrado na eleição. Mas acho que vamos ter uma situação muito grave e séria no Brasil, com o país desacreditado internacionalmente e sem legitimidade junto ao seu próprio povo.

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  1. Avatar
    LUIZ HORTENCIO FERREIRA says:

    Caro Celso Amorim, eu, como milhões de brasileiros, somos leigos em leis e tenho certeza que muitos, não entendem o que realmente está acontecendo com relação a este processo judicial contra o Lula. Portanto, gostaria muito que alguém esclarecesse algumas perguntas simples e objetivas que acho que muitos brasileiros, como eu, gostaríamos de saber:
    O que vale no país são as leis ou a constituição quanto à assuntos como presunção de inocência, prisão provisória, antecipada, prisão em segunda instância, etc. Pode-se ser preso antes do tal do transito em julgado? No caso do Lula, com base em em que lei ele foi preso? O tal pacto da ONU existe ou não? O que vale como lei é o pacto da ONU com base em que? Finalmente, muitas coisas são ditas de forma bonita e cheia de linguagem difícil que o povo leigo não entende, acho que se explicassem com linguagem objetiva e simples seria interessante para que muito mais gente entendesse o que realmente está acontecendo quanto ao Lula e o judiciário.

  2. Avatar
    LUIZ HORTENCIO FERREIRA says:

    Outra coisa que quero saber, se o brasil era obrigado a cumprir a decisão da ONU, porque não o fez? E se não fez, com que base legal? E se TSE foi contra a decisão da ONU que supostamente tinha que obedecer ou cumprir, quem vai punir ou reverter a decisão ilegal do TSE?

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