Brasil

Eric Nepomuceno entrevista Celso Amorim

Eric Nepomuceno entrevista Celso Amorim – parte 1
“O país vai se enfraquecendo e isso torna mais difícil a recuperação de uma política externa como foi levada adiante no governo do presidente Lula”.

 
Eric Nepomuceno: Embaixador, durante oito anos o senhor foi um condutor da política externa do presidente Lula. Como é que o senhor vê hoje a inserção do Brasil no cenário global?
 
Celso Amorim: Olha, essas coisas são muito chatas de você falar de sucessores, mas o fato é que a presença do Brasil está se desfazendo no cenário internacional. Você vê agora o que acabou de acontecer com o nosso representante dos bancos dos BRICS. Eu não sei exatamente a razão, não conheço detalhe. Mas os próprios representantes brasileiros teriam votado contra ele. Quer dizer, você perde a substância. E tudo isso é reflexo do que está acontecendo no Brasil, um governo ilegítimo. Em algumas coisas isso nos livra de outros problemas, por exemplo, o Brasil está querendo se candidatar para ser membro do OCDE, que é o clube dos ricos. Que tem regras que vão criar dificuldades importantes para nós em política industrial, política tecnológica, política de saúde etc. Mas mesmo essas pretensões não estão indo adiante por causa da falta de legitimidade do governo. São opções que só um governo eleito pode fazer. Independentemente do mérito. Eu sou contra no mérito, poderia  me discorrer longamente porque. Mas independente do mérito, você não dá guinadas desse tipo, você não vai se afastar de uma linha que era a que a gente estava seguindo com relação aos BRICS, com relação aos países sul-americanos, integração sul-americana, para uma outra linha totalmente diferente, como a gente fez com a Venezuela, sem que o governo tenha legitimidade, sem que tenha sido eleito. Então, eu me preocupo. Eu acho que há uma falta de direção. Felizmente algumas coisas que eles prometeram eles não fizeram, como por exemplo, fechar as Embaixadas na África. Mas de qualquer maneira perdeu a densidade que tinha essa política. Eu acho que isso é recuperável. Agora, eu me preocupo também porque eu vejo que as bases internas para uma política externa mais autônoma e independente estão sendo solapadas. Com programa de privatizações acelerado, que além de obedecer uma visão econômica com a qual eu não concordo, ela também está sendo feita para fazer caixa. Então as coisas vão assim rapidamente e isso tudo enfraquece o país no plano internacional para você ter uma política externa mais autônoma. Petróleo, as empresas de engenharia, e não é só privatização porque a gente fala em privatização parece que tem algum empresário brasileiro comprando e não tem. É desnacionalização e até em relação às empresas, certos economistas dizem: não tem problema a gente faz uma concorrência internacional, vai sair até mais barato. Pode ser, mas o país vai se enfraquecendo e isso também vai tornar mais difícil você recuperar uma política externa como foi levada adiante no governo do presidente Lula.
 
Eric Nepomuceno: O senhor no mandato da presidente Dilma Rousseff foi ministro da Defesa. Como o senhor vê esse recente incidente de um general da ativa incitando uma intervenção militar. Que medida o senhor teria adotado?
 
Celso Amorim: Bom, no meu tempo não houve, e não é que faltasse até pretextos. Teve a Comissão da Verdade que era uma coisa difícil de ser absorvida, eu acho que era uma coisa que precisou muita diplomacia para se conseguir levar adiante, mas se conseguiu fazer, os lugares onde houveram torturas foram revisitados. Os próprios militares chegaram pelo menos ao ponto de não negar que tinha havido maus tratos e desrespeito aos direitos humanos. Enfim, eu acho que uma manifestação desse tipo, em tese, mereceria uma punição, pequena que fosse, uma advertência e isso seria talvez suficiente para o general que está a beira da reforma, pedisse para antecipar a reforma, podia ser isso. Não precisava prendê-lo, para também não criar uma crise militar enorme. Me surpreendeu para falar a verdade, porque eu conheço e ele é um militar, profissionalmente, impecável. Mas me surpreendeu a forma leniente que ele tratou. Eu não sou uma pessoa para ficar pensando em punições. Sempre que você puder encontrar uma forma, uma pequena advertência, uma fala mais firme, seria o suficiente talvez para o general pedir para ir pra reserva antecipadamente e a coisa ficaria circunscrita e ultrapassada. Eu não quero superestimar, mas eu estava vendo que tem uma série de associações empresárias do Paraná pedindo que sim que tem que ter intervenção militar. E acho que aí tem um ponto fundamental, que foi uma pena que tenha sido proferido pelo comandante do exército, volto a dizer com quem eu tive muito boa relação, que tratava com muito respeito, que tratava sempre muito bem dos temas da Amazônia. Mas ele comentou que os militares não vão intervir a não ser que haja um caos. Mas quem julga? O problema fundamental é esse. Não está investido nas forças armadas o poder de julgar. A Constituição abre uma brecha ao dizer que a missão militar é a defesa da pátria. Não há como interpretar, é defesa contra ameaça externa, óbvio. E a proteção dos poderes constituídos e a pedido de um deles a lei e a ordem. Então, você pode até dizer que é uma brecha porque se houver um conflito entre os poderes e alguém pedir as Forças Armadas poderia intervir, o que seria muito ruim. Mas é uma brecha que realmente existe. Agora, você não transfere um julgamento para as Forças Armadas porque eles são profissionais que cumprem missões que são dadas pelo poder civil. O que eu pude ver é que a grande maioria dos militares a visão deles era essa: cumprir missão. A visão predominante era essa. E essa abertura que foi dada já permite que algum general da reserva, esses sim já pensavam, várias vezes eu tive manifestação nesse sentido de general da reserva, mas ignorava. Agora, um general da ativa já é diferente.
 
Eric Nepomuceno entrevista Celso Amorim – parte 2
“Eu que sou da geração que infelizmente viveu 64, mas se você pensar na dupla Campos e Bulhões, por exemplo, que a gente via como se fosse o exemplo do entreguismo, etc, eles seriam desenvolvimentistas desvairados comparado com o que está sendo feito hoje com essa desnacionalização acelerada”.

 
Eric Nepomuceno: Embaixador o senhor diria que na América Latina a gente está vivendo uma contra-maré, uma contra onda conservadora e neoliberal? Como o senhor vê o cenário, sobre tudo, sul-americano hoje?
 
Celso Amorim: Eu não tenho dúvidas que estamos vivendo uma contra-maré. Os governos de esquerda, centro esquerda, quase todos perderam a força e nós vemos subir, em alguns casos por meio de eleições, o que é sempre melhor como foi o caso da Argentina, e no nosso caso através de manobras totalmente discutíveis e deploráveis. Em alguns casos, uma derrubada não só de uma presidenta, sem base legal suficiente para que isso acontecesse mas também com uma mudança de projeto. Você não pode fazer um impeachment, mesmo supondo haver razões para um impeachment, que eu acho que não havia, mudar um projeto de governo. O povo brasileiro havia votado em uma chapa com uma determinada visão, que isso seria a continuidade de um governo. Pequenos ajustes poderiam ocorrer mas não passar por uma coisa oposta que é o que está ocorrendo porque o governo hoje está praticando, digamos, uma política neoliberal extremada. Eu que sou da geração que infelizmente viveu 64, e que também teve aquele choque, mas se você pensar na dupla Campos e Bulhões, por exemplo, que a gente via como se fosse o exemplo do entreguismo, etc, eles seriam desenvolvimentistas desvairados comparado com o que está sendo feito hoje com essa desnacionalização acelerada, essa PEC dos gastos, imagina um país como o Brasil, que tem as carências que tem, você congelar em termos reais os gastos por vinte anos.  Vamos supor que aumentem as receitas do governo, que é natural esperar que isso ocorra, com recuperação econômica, com entrada do pré-sal, mesmo assim você não vai poder aumentar os gastos com saúde, educação. Isso é uma coisa desvairada, por reforma constitucional. Enfim, isso cria uma amarra para qualquer governo e certamente para um governo progressista, mesmo que não seja um governo progressista mas vai querer fazer alguma coisa eles vão enfrentar uma dificuldade enorme, vai ter que entrar em  uma negociação do toma lá dá cá para desfazer a emenda constitucional. Isso eu nunca vi, essa aí nem o Barão de Itararé pode dizer, essa aí não dá.
 
Eric Nepomuceno:  É um processo muito parecido com o que está sendo implantado na Argentina.
 
Celso Amorim: Bom, claro que eu me sentiria incomodado com o que está acontecendo na Argentina. Mas o que eu acho que houve no Brasil é pior porque, como eu disse, não houve uma eleição. Talvez tudo faça parte do mesmo processo mas, também, o Brasil tem um peso na região muito grande. O Brasil é metade do PIB da América do Sul, é metade da população, é metade do território, mesmo da América Latina como um todo ele é 35, 40%. É algo muito forte, eu acho que isso tem a ver com razões geopolíticas, o governo brasileiro abriu campos novos. Não só campos de petróleo, vamos dizer, que também é importante, o pré-sal, o Brasil estava construindo um submarino nuclear, não de armamento nuclear mas sim de propulsão nuclear, um dos pouquíssimos países do mundo, acho que há uns dois ou três fora os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. E construímos uma política com a África, uma política com os países Árabes, a criação dos BRICS, a própria integração sul-americana, um conselho de defesa da América do Sul, quando antes o que havia era hemisférico sob a hegemonia de Washington, então tudo isso faz crer que houve interesses externos fortes atuando.  
 
Eric Nepomuceno entrevista Celso Amorim – parte 3
“Nós não podemos aceitar uma limitação a capacidade de escolha do povo brasileiro. A eleição presidencial é a oportunidade mais clara de você escolher o programa que você quer”.

 
Eric Nepomuceno: Com a chegada do novo governo  você notou alguma alteração drástica na estrutura interna do Itamaraty?
 
Celso Amorim: Na estrutura interna do Itamaraty não tanto porque não foram eliminadas subsecretarias, que eu saiba não. Alguns programas específicos, por exemplo, que eram muito ligados ao combate a fome, programas que tinha a ver com a solidariedade do Brasil aos países africanos, su-americanos, países pobres esses foram cortados porque a visão aqui, muito antes do Trump, só não é Brasil em primeiro lugar em relação aos grandes mas em relação aos mais fracos é tudo considerado desprezível. Isso sim, mas não chegou haver uma mudança estrutural mas o problema é que o Itamaraty, como uma instituição do Estado, ela é como um violino, você toca ela fica bem, se você não toca ela começa a desafinar e eu acho que isso é um pouco o que está acontecendo. As pessoas estão inibidas, tem medo de tomar posições, ou as vezes recebe instruções para posições totalmente incompatíveis com o histórico do Brasil, causando muita surpresa, em áreas variadas como em direitos humanos, trabalho, por exemplo, o Brasil tem tido uma postura muito criticada na COET, no Conselho de Direitos Humanos por não ter assumido a liderança que se esperava dele em temas comerciais e econômicos.
 
Eric Nepomuceno: Quando o senhor, de manhã, olha pela janela do seu apartamento que perspectiva o senhor vê de futuro?
 
Celso Amorim: Para o Brasil ou para o Rio de Janeiro?
 
Eric Nepomuceno: Vamos falar primeiro de Rio de Janeiro.
 
Celso Amorim: O Rio de Janeiro é, talvez, o estado mais afetado pela crise, inclusive por essas medidas. Porque o Rio de Janeiro, historicamente, sempre dependeu muito do governo federal, até mesmo o seu desenvolvimento industrial está ligado a políticas para as quais o governo federal é muito importante, seja no caso do petróleo, e toda a cadeia do petróleo que é importantíssima aqui, e também áreas como a indústria naval, que indiretamente também estão ligadas ao petróleo e a Petrobras por causa das encomendas feitas aos estaleiros. Eu acho que o Rio foi muito afetado, claro que o Rio tem problemas específicos que são dele mas eu acho que em termos de estrutura econômica ele foi o mais afetado, pela crise em geral, mas especificamente por essas medidas de privatização, de fechamento, de contenção de gastos e essa crise nas Universidades, nos hospitais, isso tudo é uma coisa terrível. E deixou de ser, o que foi no passado, o farol do Brasil por que as grandes discussões brasileiras se davam em grande parte no Rio e isso não está acontecendo.
 
Eric Nepomuceno: E o Brasil?
 
Celso Amorim: O Brasil eu acho que vai acabar se recuperando porque não é possível. Mas o sofrimento que tem causado. O Brasil é um país muito desigual, eu acho que uma coisa que o presidente Lula fez, e a presidenta Dilma continuou, foi buscar uma maior igualdade. Anteontem, por exemplo, eu fui dar uma aula na Federal de Minas Gerais e a plateia, a cor da plateia, mudou graças aos vários programas. Então não basta você dizer, “não, não nós não somos racistas” basta não ter dinheiro. Se você não tiver dinheiro para fazer os programas, para fazer o PROUNI entre outros programas que tenham relação com educação, você naturalmente vai recriando, reproduzindo as condições que favorecem a desigualdade e atrás da desigualdade vem a discriminação e isso é algo que também resulta em uma divisão marcada da sociedade brasileira. Eu acho que para as pessoas de nossa geração isso é uma coisa – estou te incluindo, eu acho que sou mais velho que você – é uma coisa que preocupa muito.   
 
Eric Nepomuceno: Embaixador o senhor acha que hoje, no Brasil, a democracia está em perigo?
Celso Amorim: Eu não tenho a menor dúvida. Primeiro ela já foi atingida por tudo o que aconteceu, da forma como ocorreu o impeachment, o afastamento da presidenta Dilma ao meu ver é um golpe. Independente da aparência legal que você possa dizer, ela substantivamente é um golpe porque é uma mudança de projeto sem uma eleição, sem manifestação popular. Eu continuo preocupado, não quero sobrevalorizar nem dizer que vai acontecer golpe militar, mas eu acho muito importante que nesses vários manifestos, inclusive eu participei muito ativamente desse liderado pelo professor Bresser e a muitos outros, nós temos enfatizado muito a soberania, que eu acho que é muito importante mesmo, projeto nacional. Mas nós temos que enfatizar muito a democracia, por isso mesmo o próprio grupo, Projeto Brasil Nação, acaba de lançar um manifesto sobre a democracia no Brasil. E a democracia envolve, do ponto de vista imediato, eleições diretas para presidente sem exclusões que tirem de fora candidatos populares, se acham que há alguma coisa deixem o povo julgar. Nós não podemos aqui aceitar uma limitação a capacidade de escolha do povo brasileiro e a eleição presidencial é a oportunidade mais clara de você escolher o programa que você quer. Programas que são encarnados em personalidades.

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