Brasil

Relacionamento pendular e as fronteiras da arte


Logo nas primeiras cenas do filme “Pendular” da Julia Murat o casal interpretado pela Raquel Karro e Rodrigo Bolzan traçam uma linha imaginária que divide um galpão onde eles vão improvisar uma residência, a casa deles, com um estúdio onde eles vão desenvolver trabalhos artísticos. Ele é um escultor e ela uma dançarina.
Quando os dois recebem a visita de uma amigo esse amigo, por brincadeira, fala o seguinte: “olha esse cenário está parecendo aquele do Lars von Trier o Dogville”; para quem não se lembra Dogville é um filme todo montado em um cenário em que você não tem casas e nem ruas, você tem desenhos e representações de casas e ruas, e a trama se desenvolve nessas projeções de cenários.
O filme da Julia Murat brinca com essas projeções de fronteiras que são o tempo todo atravessadas e ultrapassadas, tanto na produção artística que se desenvolve ali na relação dos corpos com o espaço, como na relação desse casal. Mesmo na relação em que a intimidade os gestos as encenações os diálogos, tudo isso circula em uma fronteira que a gente nunca sabe quanto eles estão interpretando ou quando eles estão encenando.
O próprio filme em algum momento se parece com um documentário, parece que acompanha uma apresentação de dança e que incorpora outras linguagem artística que não só o cinema, a própria fotografia toda construída em sombras, o preto e branco, para mostrar que aquela relação entre os dois tem uma tensão permanente. Apesar de você estabelecer uma fronteira imaginária uma linha imaginária essa linha nem sempre é respeitada, tanto para mostrar como a arte acaba abraçando outras linguagens como para mostrar como os relacionamentos, se eles não funcionarem como um pêndulo, onde você tem questões como vulnerabilidade e confiança num certo equilíbrio, você tem uma outra coisa no lugar você tem uma briga por território.
Não por acaso ele é inspirado numa apresentação de 1980 da Marina Abramović, nessa apresentação ela e o companheiro, na época, dividiam seu peso em um arco e em uma flecha. Eles jogavam o peso para trás buscando um equilíbrio enquanto a flecha poderia ser disparada a qualquer momento se não houvesse um cálculo de força, equilíbrio e concentração e até mesmo cuidado. Você, ali, está falando de uma relação pendular porque aquela flecha estava apontada para o peito dela.
Essa performance da Marina Abramović inspirou a Julia Murat a criar a linguagem desse filme pra falar como os relacionamentos também operam nessa relação pendular, ou eles precisam operar nessa relação pendular, porque de um lado você tem a vulnerabilidade desse casal e a relação de confiança. Quando a relação de confiança é construída a partir da vulnerabilidade onde alguém ganha e alguém perde nesse jogo de força a flecha fatalmente vai ser disparada.
Então é um filme que trabalha com esses elementos, com os detalhes de um galpão, ele é todo filmado dentro desse galpão, a gente tem uma cena em que a porta é aberta e de lá a gente consegue reparar os ruídos da cidade para mostrar as tensões desse relacionamento, de desejos que se desencontram. É um filme que conta um relacionamento em crise a partir dessas luzes e sombras do próprio trabalho artístico que também é muito sensível a isso.
Em um mundo em que não temos fronteiras muito bem definidas sobre o que é trabalho, sobre o que é encenação, sobre o que é descanso e o que é entretenimento a gente consegue pensar em tudo isso a partir de um galpão, onde o filme se desenvolve e, também, onde essa relação se desenvolve.
Esse é um filme diferente de qualquer coisa que você vai assistir em cartaz no cinema.
A gente falava, na semana passada, do “Como Nossos Pais” e também sobre “As duas Irenes” que vai falar sobre as configurações familiares tradicionais, pai e filho e a mãe no mesmo cenário, esse filme é sobre um casal com projeções de filhos e projeções de fronteiras e interdições e que de alguma forma estão ainda sujeitos a um desequilíbrio de forças que ainda operam nesse mundo de fora dos galpões onde se desenvolve esse trabalho artístico deles e o relacionamento deles também.
Esse é um filme que vale a pena conferir, um filme muito rico nesses elementos e é a minha dica dessa semana, uma abraço e até a próxima.

Notícias relacionadas

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *