Brasil

Privatizar a Eletrobras é crime contra o patrimônio público

Foto: EBC


 
Por Joaquim Francisco de Carvalho*
A construção do Canal do Panamá começou em 1.881 e foi interrompida em 1.883, com a falência da empresa criada pelo empresário e diplomata francês Ferdinand de Lesseps, para promover e custear o empreendimento, tal como fizera com o Canal de Suez.
A obra ficou célebre na história dos grandes escândalos políticos e financeiros, a ponto de transformar a palavra “panamá” (entre aspas e com inicial minúscula) em sinônimo de negociata. Com a independência do Panamá, retomou-se o projeto e o canal foi aberto à navegação em 1.914; mas aí o Visconde de Lesseps já tinha morrido, depois de ser fustigado pela Justiça francesa e desmoralizado pela imprensa.
Vejam como evoluem os costumes e padrões éticos, de país para país, de época para época. No Brasil, a partir do chamado Programa Nacional de Desestatizações (rebatizado de Programa de Parcerias de Investimentos), temos tido um rosário de “panamás”, cujos mentores, em vez de serem demitidos e desmoralizados como foi o infeliz Lesseps, ocupam cargos importantes no governo e são homenageados nas colunas econômicas e noticiários de televisão. Quase todos, de simples funcionários do BNDES e diretores da Eletrobrás e outras estatais, acabam transformados em empresários ou executivos de grupos poderosos.
 
Caso Light
 
Uma das primeiras “contas” de nosso rosário de “panamás” foi colocada em 1996, com a desestatização da Light, que havia sido estatizada em 1979. Estávamos no governo FHC, com o Sr. José Serra no ministério do planejamento e seu amigo Mendonça de Barros na presidência do BNDES, onde a Sra. Landau cuidava das desestatizações.
A desestatização da Light deu-se a favor da estatal francesa Électricité de France (EDF), associada à norte-americana AES e à Companhia Siderúrgica Nacional, então recém-comprada pelo grupo do Sr. Benjamin Steinbruch.
Curiosamente, os 2,2 bilhões de reais da época que o governo diz ter recebido, vieram em boa parte do próprio governo (BNDES, Eletrobrás e PREVI).
Na época, a PGR não era como hoje, de modo que o Ministério Público não investigou esse “panamá”.
Mas voltemos à Light. A cada pico e queda de tensão, variação de frequência ou “apagão”, a empresa prometia fazer tudo para corrigir falhas e evitar novos problemas, anunciando que investiria milhões, para substituir e manter equipamentos e sistemas.
Quando a empresa era estatal, os serviços eram melhores porque investia-se em manutenção cerca de 700 milhões de reais da época, por ano. Para que o leitor se situe diante desses números, convém assinalar que a Light vendia 31 milhões de megawattshora por ano, cobrando dos consumidores residenciais, comerciais e industriais uma tarifa média de 190 reais por megawatthora; portanto o faturamento anual estava em torno de R$ 5,9 bilhões da época. A eletricidade vendida era em grande parte comprada de Furnas a aproximadamente 44 reais por megawatthora, portanto o lucro operacional da Light ia a mais de R$ 4,5 bilhões da época, por ano. Ao ser privatizada, a empresa funcionava muito bem, com sua estrutura física completamente implantada. As dívidas tinham sido “engolidas” pelo Estado e o consórcio comprador contou com financiamento do BNDES, altamente subsidiado.
Com a demissão de experientes equipes de manutenção e a terceirização de muitos serviços técnicos, as despesas operacionais caíram muito – mas a qualidade dos serviços degradou-se consideravelmente. Graças a isso, o lucro líquido chegou a cerca de 7 bilhões de reais por ano, em valores atualizados, já descontados os impostos.
Uma fatia desse lucro ia para a França, para custear as aposentadorias de nossos “pobres” colegas da EDF.
Por diferentes motivos, a EDF, a AES e a CSN acabaram saindo do empreendimento e, hoje, a Light é controlada pela CEMIG.
O “panamá” das privatizações ficava ainda mais extravagante à luz das promessas feitas por FHC e seu ministro da fazenda, de que as tarifas ficariam mais baratas e que, com a receita obtida, a dívida pública seria reduzida. Prometiam também que, livrando-se da responsabilidade de administrar empresas estatais, o governo poderia concentrar esforços em programas sociais, como os de saneamento, habitação, saúde, segurança pública, etc. O resultado foi o oposto do prometido. De fato, as tarifas, que estavam entre as mais baratas do mundo, hoje estão entre as cinco mais caras; a dívida pública multiplicou-se muitas vezes, os programas sociais estão à míngua, a insegurança é total e a violência é rotineira.
 
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Além disso, sob o peso das remessas de lucros por parte da EDF e da AES, o endividamento externo passou a crescer em ritmo acelerado.
A privatização das empresas elétricas paulistas (CESP, CPFL e Eletropaulo) também foi altamente ruinosa, mas esta é outra história.
Apesar desses descalabros, a cobiça pelo que sobrou do sistema elétrico público (Eletrobrás, CEMIG, COPEL e o que resta da CESP) leva os especuladores e aproveitadores da fragilidade desse governo, inexplicavelmente apoiados pelos ministros da fazenda e da energia, a desfechar autênticas campanhas de lavagem cerebral, para camuflar os prejuízos causados pelas privatizações já feitas e “vender a ideia” de que a vida ficará melhor se tudo no Brasil for – reparem a leviandade – desregulamentado e entregue à exploração privada.
Daí a avalanche de entrevistas e seminários, com a participação de autoridades, em que os palestrantes, com poucas exceções, são funcionários públicos e colunistas econômicos jejunos em matéria de planejamento energético, porém direta ou indiretamente interessados na privatização das empresas de eletricidade, como é o caso de certas autoridades notoriamente corruptas.
É fácil prever que, se o sistema elétrico for totalmente privatizado, as tarifas ficarão mais caras – e os “apagões” mais frequentes.
E, caso as privatizações se façam em favor de grupos estrangeiros, as remessas de lucros pressionarão a economia e agravarão a concentração de renda.
 
Espaço Público x Espaço Privado
 
Para terminar este artigo, penso ser útil lembrar a diferença dentre os conceitos de Espaço Público e Espaço Privado, colocada, entre outros, por Norberto Bobbio:
O espaço privado é ocupado por corporações e empresas industriais; estabelecimentos comerciais; instituições financeiras, e outras, cujo objetivo central é o de gerar lucros para os seus controladores.
O espaço público é ocupado por entidades dedicadas a atividades não lucrativas, tipicamente estatais, como a diplomacia, a segurança nacional e a polícia, além daquelas de caráter social, como a educação primária e a saúde pública. Neste espaço também estão alguns serviços públicos (utilities) vitais para as demais atividades e que, por isso, devem respeitar certos princípios éticos que os afastem dos embates por lucros, que caracterizam o espaço privado. Aí está, por exemplo, o suprimento de eletricidade, que, num país como o Brasil, entra na classe dos monopólios naturais.
Acresce que a eletricidade é indispensável para a produção industrial e o comércio; para as comunicações; a pesquisa científica; os hospitais e laboratórios; o lazer; o abastecimento e a conservação dos alimentos, enfim, para tudo.
Os preços da eletricidade impactam todos os custos da economia, acabando por influir sobre a qualidade de vida das pessoas. Por conseguinte, tarifas elétricas não devem ser formadas no espaço privado, porque os empresários que controlam as empresas de eletricidade procuram lucros em curto prazo, sem pensar na qualidade de vida ou na capacidade financeira dos consumidores.
Quem citar os Estados Unidos como exemplo de país onde o fornecimento de eletricidade é uma atribuição da iniciativa privada, deveria saber que naquele país o sistema é basicamente termelétrico, que de fato é privado (inclusive as usinas nucleares), mas as grandes hidrelétricas pertencem e são exploradas por entidades públicas de âmbito regional, como a Tennessee Valley Authority, a NorthWestern Energy Company e a Bonneville Power Administration, além de inúmeras empresas estaduais e municipais.
A razão disto é a de que a geração de energia é apenas uma das utilidades dos reservatórios hidrelétricos, ao lado de outras, igualmente importantes, como a irrigação de terras agrícolas, a regularização das vazões dos rios, o controle de enchentes, o abastecimento de água para as cidades, a navegação interior, etc.
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* Joaquim Francisco de Carvalho é mestre em engenharia nuclear e doutor em energia pela USP, foi pesquisador associado ao IEE/USP, coordenador do setor industrial do ministério do planejamento, diretor da NUCLEN e engenheiro da CESP.
 

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