Cultura

Filmes em cartaz trazem protagonistas que desafiam as convenções de seu tempo


Matheus Pichonelli
Dois filmes muito esperados entraram em cartaz na última quinta-feira, 17 de agosto. Um deles a gente já falou por aqui, é o Corpo Elétrico, do Marcelo Caetano, que abriu a última Mostra de Cinema Latino-Americano de São Paulo, no mês passado. Nesse vídeo a gente já dava algumas dicas porque esse filme era interessante, mas quanto mais perto da data de estreia, mais entrevistas o diretor concedeu, fui percebendo mais elementos que tinham escapado da leitura e percebi porque eu gostei tanto desse filme. Numa entrevista a Folha de São Paulo, por exemplo, ele comparou a personagem com a Sherazade das Mil e Uma Noites. Para quem não se lembra, esse personagem é um jovem gay, paraibano que vem trabalhar em São Paulo numa confecção no bairro do Bom Retiro, que é um bairro operário.
E ele acaba incorporando uma série de exigências dessa sociedade contemporânea que não consegue dizer o que vai ser da vida dela dali a cinco dias, quanto mais dali a cinco anos. Ele quebra um padrão considerado do que seria um bom trabalhador, de um sujeito que tem planos a longo prazo, que quer virar chefe, que quer virar diretor, que quer ser dono da própria confecção. Ele é um sujeito que não está muito ligando pra tudo isso, o que ele quer é vivenciar o dia, nessa espécie de presente contínuo que é muito comum na sociedade que a gente vive hoje, das urgências de dias que se constroem sem necessariamente ter relações com o dia anterior e com essa perspectiva de futuro que a gente não consegue fazer com um mundo de tantas mudanças e tantas janelas abertas o tempo todo. É um filme que tem uma alta voltagem sexual, por isso que o diretor compara com a Sherazade. Ele ganha tempo e ganha os dias contando histórias de cama em cama com pessoas diferentes o tempo todo. O público que conferir pode sair e falar: é um filme de pegação, só vi sexo o tempo todo. Guarda um pouco o recalque para tentar perceber, se você tiver algum tipo de preconceito ou de restrição ao que você vai ver ali em cena, tenta ir ao cinema desarmado para perceber como esse personagem acaba absorvendo e corporificando essa alegoria do título do filme, essa urgência dos tempos atuais. De um tempo em que as relações são efêmeras, os planos são efêmeros e a gente tenta sobreviver ali na cidade, vivendo um dia após dia como se fosse mesmo a reconstrução de uma Sherazade no século 21. De novo, quanto mais eu vejo análises desse filme, acho que novas vão surgir ao longo do tempo, mais eu percebo porque eu gostei do filme.
Outra obra que entrou em cartaz, nessa quinta-feira, 17 de agosto, é o Lady Macbeth, um filme britânico do William Oldroyd. É um filme baseado num romance russo do século 19, que por sua vez inspirou uma ópera muito polêmica do início do século 20, que inclusive dizem que o Stalin assistiu no Teatro Bolshoi e detestou. Realmente ele provoca um mal estar muito grande, também tem uma alta voltagem sexual, mas é um filme muito violento, muito sombrio também. É a história de um casamento de conveniência. Conta a história desse casamento pela ótica de uma mulher que cai de paraquedas numa casa em que o marido e o sogro são muito opressores. São homens muito hostis, que passam o tempo todo dizendo que ela cuide da casa, que ela está gorda, que não sabe cuidar de nada. Enfim, é alguém que é o tempo todo cobrada pra ficar dentro da linha. E essa personagem reage a esse ambiente hostil também com hostilidade. É um filme que inverte um pouco uma lógica maniqueísta de que se você provocar sofrimento, ela absorver lições dessa experiência e vai se tornar uma pessoa melhor, mais pura, mais humana, mais compreensiva. Não, ela reage chutando tudo.
É uma personagem que a gente passa metade do filme com raiva de tudo que ela passa, inclusive no tipo de roupa que as mulheres usavam no século 19. As mulheres cuidavam da casa, aquele argumento, eu te dou uma casa pra cuidar, mas na verdade você está fechando um portão pro mundo. Um mundo em que só os homens circulam. O marido dessa história sai de casa. Ele fica um tempo sem voltar e quando ele ganha o mundo ele pode fazer qualquer coisa. No universo dentro de casa ele é muito hostil com a própria companheira e no mundo exterior ele é o dono do mundo lá fora. Ela se nega a aceitar esse tipo de padrão e se rebela contra isso, de uma forma que nada pura ou ingênua. Pelo contrário, ela se torna uma assassina. Eu não vou dar spoiler, mas o que, provavelmente, passou na cabeça do diretor, além de recriar a obra de Shakespeare, que faz referência a Lady Macbeth, é recriar uma passagem bíblica que diz o seguinte quando o patrão sai de casa ele espera que as coisas estejam em ordem quando ele voltar. Os empregados nunca sabem quando será o dia do retorno, que é aquela alegoria de que uma hora deus vai voltar pra terra e quer saber se a gente se comportou aqui.
Essa protagonista ela faz uma aliança com o pior dos empregados. O cara que toca o terror quando o patrão está fora. Ela vê nele um aliado poderoso que se torna um amante dela e ela vai assumir o comando daquela casa, o comando das ações. Uma peça central nas ações, ela é determinante na forma como o filme se movimenta. Ela não é alguém que obedece, não é alguém que é parte da paisagem como é tão comum em outros filmes. Ela é uma protagonista de fato. É a história de uma tragédia, mas é uma história de como ambientes hostis produzem atitudes hostis. Tem uma passagem, que provavelmente é uma das passagens mais fortes no cinema. Que é como ela lida com a ideia de maternidade, do que se espera das mulheres naquela época e até hoje. É uma alegoria, mas assim, é um filme forte, muito sombrio e que não é para estômagos fracos não. Mas é um filme muito bem trabalhado, com cenário minimalista dentro de uma casa que parece a definição perfeita de uma família de bem, aquela família pura e feliz e que na verdade, é um terreno propício para todo tipo de agressão e violência física e também psicológica. Então é um filme pra ir preparado, levem as caneleiras porque é um filme que dói de assistir. Boa sessão e boa sorte.

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