Cultura

Ontem fui eu que emocionei, hoje são vocês e amanhã serão outros

*Por Matheus Pichonelli

A grande novidade desta semana foi a estreia, na última quinta-feira, dia 3 de agosto, de “O Filme da Minha vida”, do Selton Mello. Eu fui à cabine de imprensa, eu assisti, conferi, sai de lá com algumas impressões. De algumas coisas eu gostei, de outras, nem tanto ou muito pouco. Eu queria falar sobre este filme, mas eu vou deixar para a semana que vem, para dar tempo de as pessoas assistirem, e o vídeo funcionar como um debate, uma troca de impressões, o que a gente acaba fazendo, fatalmente, ali, pelas redes.
Em vez disso, eu quero falar sobre a morte, na última segunda-feira, da Jeanne Moreau, aos 89 anos. É uma notícia… ela já tinha cumprido um grande papel no cinema. Mas a gente fica tocado com uma notícia assim. Eu, pelo menos, passei a semana ouvindo “Joanna Francesa”, do Chico Buarque, que é uma das canções de que eu mais gosto do Chico, e ela foi feita para o filme homônimo, Joanna Francesa, do qual ela participa.
Em uma das cenas mais famosas, ela canta “Joanna Francesa”. Mas não é ela que canta, ela é dublada pela Fernanda Montenegro. Mas a personagem dela, dona de cabaré, canta. Enfim, é difícil você dissociar a imagem dela da música. A gente já tem uma relação dela com a música brasileira. E tem outra – eu volto a falar sobre isso.
Nesta semana, eu também voltei a assistir “Julet et Jim”, que é talvez o grande filme da carreira dela. E é também uma grande porta de entrada para o cinema francês dos anos 60, Truffaut, que é a nouvelle vague.
Este filme do Truffaut, é revolucionário para os padrões da época. Ele quis fazer, aliás, os diretores desse movimento, eles queriam trazer para o cinema personagens comuns, atores e atrizes que se parecessem com as pessoas com quem a gente convive na rua, que fazem parte da nossa vivência, e que não tivessem aquele glamour de Hollywood, ou daquele cinema francês pré nouvelle vague. E ela é determinante neste movimento.
A subjetividade dessa personagem, os desejos dela e as ações dela estão em primeiro plano, mais até do que dos outros dois personagens. O filme – a tradução, aqui no Brasil, é “Uma mulher para dois” – e ela não é uma mulher para dois. Ela é uma mulher de quem ela quiser, e não são só dois personagens no filme, é uma dessas traduções mal feitas quando chegam aqui.
Mas eu fico muito tocado, e eu voltei a esse filme depois de um tempo, e você começa a pegar outras coisas que a gente não percebia quando assistia a um filme desse em outros períodos.
A forma como ele é feito, em solavancos, os diálogos, eles não são concluídos. As experiências, elas são interrompidas porque a vida é feita de interrupções. O cinema francês dessa época foi revolucionário porque ele trazia isso. Ele quebrava esse modelo de começo, meio e fim, de coisas que se resolvem, de assuntos que têm grandes desfechos. Quando, na verdade, a vida não é assim. Ela é interrompida. É uma história que é inclusive interrompida pela Primeira Guerra, os dois amigos, um alemão, um francês. Enfim, tem uma série de elementos ali e a gente olha, vai para um filme desse, com um olhar para a atuação da Jeanne Moreau.
E assim, eu quis gravar esse vídeo sobre ela porque, além de uma grande atriz, foi uma personagem muito interessante. Para quem tiver acesso, teve esse DVD, de uma coleção da Folha, recente, em homenagem a ela, que é justamente o filme “Jules et Jim”, com texto de apoio. Textos muito bem escritos. E aqui conta, por exemplo, que ela foi a primeira mulher a entrar na Academia de Belas Artes de Paris. Ela assinou manifestos contra as leis de aborto na França em 1971, e pela desobediência civil em relação à xenofobia em 1977. Quer dizer, ela era uma militante também, uma atriz muito engajada.
E ela tem frases ótimas aqui. Por exemplo, tem uma frase dela que diz o seguinte: “O filme de um homem sobre uma mulher é sempre um filme de entomologista. O diretor é fascinado pelo personagem da mulher, como o entomologista é fascinado pelo inseto. Mesmo na observação mais terna e emocionada, corre o risco de ser apenas uma observação”.
Quer dizer, ela é uma atriz muito consciente do papel dela, da história dela, no momento em que se discute a liberdade sexual e uma série de comportamentos, de mudança de comportamento, de uma fase também de muitas tensões, mas também de muitas experimentações, a partir dos anos 60. O cinema dialoga muito com isso. Ela tem isso, é muito interessante conhecer a história dela e voltar a filmes como esse.
E eu quis falar dela porque, para quem gosta de música brasileira, pode não saber. Tem uma história pouco conhecida que está neste outro livro, “Os sonhos não envelhecem”, do Márcio Borges.
O Márcio Borges, irmão do Lô Borges, o caçula da família, foi um dos primeiros parceiros do Milton Nascimento na música. E ele conta uma história muito interessante aqui sobre o encontro do cinema com a música, no qual todos nós somos, de alguma forma, tributários, que é assim. O Márcio Borges tinha pirado no Jules e Jim, que é esse filme de que a gente está falando, e tinha assistido diversas vezes. Ele queria trazer o Bituca, como o Milton Nascimento era conhecido, para uma sessão em Belo Horizonte.
O Bituca não tinha grandes pretensões artísticas. Ele trabalhava em um escritório ali, ele tocava violão, mas ainda não tinha despertado para a música como uma forma de criação e de vazão de sentimentos, até ele assistir “Jules et Jim”.
Ele ensaiou uma resistência, falou ‘não é possível que esse filme seja tão bom assim, mas vamos lá, vamos ver’. E aí eles entraram na sessão das duas, saíram às oito da noite, atordoados, chorando, cheio de impressões, cheio de coisas dentro do peito. São temas tão caros ali à obra do Milton Nascimento. E começaram a escrever algumas das primeiras composições dessa parceria, que deu início a um dos momentos mais ricos da música brasileira, que foi o “Clube da Esquina”, e transformou o Milton Nascimento em uma espécia de porta-voz da nossa música. Dali, naquela noite, saíram paz do amor que vem, “Novena”, “Gira, Girou” e “Crença”.
Então dá para dizer que se não fosse a Jeanne Moreau, se não fosse o Truffaut, a emoção que eles sentiram assistindo a esse filme, provavelmente eles não teriam feito tantas músicas naquela noite e as carreiras poderiam ter sido outras com cantores e compositores.
Bom, muitos anos depois, já em 1993 – isso foi nos anos 60 – o Milton, já consagrado, vai fazer umas apresentações em Nova York e um amigo em comum diz ‘vou fazer uma surpresa pra você’. E ele levou o Milton até o apartamento da Jeanne Moreau em Nova York. E quando ele viu a Jeanne Moreau, ele ficou emocionado e contou para ela de tudo, do começo, da emoção que ele sentiu vendo o filme dela, da vazão que ele deu para tudo aquilo que ele sentiu, em forma de música, cinema inspirou aquele movimento, aquela verve criativa que estava dentro dele e ainda não tinha sido destampada.
E a Jeanne Moreau fala algo que é ótimo. A gente fica até emocionado lembrando, que é assim, um encontro da obra de arte com o cinema, com a música. “Ontem, fui eu que emocionei. Hoje são vocês, e amanhã serão outros”.
Em um momento em que a gente está falando sobre isso, sobre um novo tipo de cinema e um alguns tipos de histórias, de algum tipo de sensibilidades que estão morrendo de forma cada vez mais veloz, refém de curadorias, em certa medida de gosto duvidoso, dessas grandes plataformas de streaming, de consumo muito rápido de novidades, de coisas que não duram, não perduram, não ficam para sempre na nossa estante, CDs, DVDs, enfim, outras formas físicas de mídia. É um momento de a gente refletir um pouco, pensar um pouco e fazer uma homenagem a esses grandes artistas que trouxeram a gente até aqui, afinal de conta, amanhã serão outros.
Fica aí a nossa dica e homenagem para a gente não deixar que essa sensibilidade do Truffaut, Milton, Jeanne Moreau morram em um mundo cada vez mais veloz, cada vez mais atropelado. É isso, até a semana que vem.

Notícias relacionadas

  1. Avatar
    Mara de Andréa says:

    Eu acho que artistas de cinema e da música não morrem, pois sempre estamos voltando para buscar suas obras. Desta forma, os mantemos presentes nas nossas vidas. Hoje, por exemplo, foi dia de ouvirmos tantas músicas de Luís Melodia, assim como ontem rever “Maria-Maria”, Jules et Jim, Joanna Francesa, etc.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *