Cultura

O cidadão ilustre volta para casa, por Matheus Pichonelli

*Por Matheus Pichonelli

Antes de gravar este primeiro vídeo, eu quero manifestar o meu respeito e a minha admiração por todo mundo que consegue gravar um vídeo de dois três minutos, de uma maneira espontânea, falando o que tem que ser dito. Porque essa deve ser minha décima, décima primeira tentativa, e em todas eu falhei miseravelmente.
Vamos ver se agora eu consigo pegar no tranco e dar uma espécie de meia lua no que são os grandes temas que estão em discussão agora política, economia… Eu quero falar um pouquinho sobre cinema.
Tem um filme que entrou em cartaz recentemente : O Cidadão Ilustre, dos argentinos Gaston Duprat e Mariano Cohn. Eles já tinham feito O homem ao lado, um filme que chamou a atenção há alguns anos.
O filme fala de um escritor, o Daniel Mantovani, interpretado pelo Oscar Martinez (um ator também do Relatos Selvagens), um filme que fez bastante barulho por aqui.
Ele é um escritor que, logo na primeira cena, acaba de receber um prêmio Nobel e vai fazer um discurso de agradecimento. Nesse discurso, declara que a carreira dele como escritor está encerrada.
Isto porque ele considera a literatura dele a partir do momento em que ela se tornou palatável para um júri, para academia sueca, para as autoridades ali presentes, para o próprio público: a literatura dele parou de fazer sentindo porque a função dela era justamente provocar. Era causar mal estar, era tirar as pessoas da zona de conforto. E, se ele estava ali para receber aplausos, não fazia mais sentido trabalhar como autor.
Então, ele passa os cinco anos seguintes em uma profunda melancolia, sem participar de nada. Ele se torna um autor muito recluso: não escreve, não marca presença em seminários, em coletivas. Enfim, ele vive ali em torno daquela melancolia até que recebe o convite para visitar a sua cidade natal, uma cidade que chama Salas.
Repare que há um palíndromo. Você pode ler essa palavra de trás para frente. Foi a cidade onde ele nasceu. Faz quarenta anos ele não visita essa cidade.
Ele nunca voltou para essa cidade, mas os personagens dele nunca saíram de lá. Então, olha só como é interessante essa coisa do retorno. Nessa caminhada, nessa linha até o ponto de origem, ele vai no encontro, não só com a suas raízes, mas ele vai lidar também com série de fantasmas, de demônios que ele acaba deixando por lá.
E assim ele passa por um processo de desconstrução da própria áurea como escritor. Em uma das cenas, por exemplo, o carro enguiça a caminho da cidade e eles estão sem comunicação. Não tem o que fazer ali. O banheiro aberto ao ar livre. Não tem o que fazer, e eles acabam usando as páginas do livro ali para se limpar. Então, ele deixa de ser aquele autor consagrado e incensado por ele vai para o mundo.
À medida que ele se aproxima do ponto de origem, percebe que é um homem, um cidadão ilustre, mas um homem comum que vai precisar lidar um série de questões ali, cara a cara.
Ele vai revisitar uma ex-namorada, reconhecer os amigos. E ele vai ao mesmo tempo lidar e presenciar uma série de atitudes naquela pequena cidade, tão isolada naquela província tão calma, tão longe das grandes capitais, dos grandes centros do trânsito, daquelas pessoas neuróticas, mas que, de alguma forma, replicam e reproduzem as corrupções de uma maneira muito particular as grandes corrupções nacionais ali.
No momento que ele participa como jurado de um curso de pintura, precisa agradar um figurão local, se não ele vai sofrer a represália. Ele vai lidar com pistoleiros da cidade, vai lidar com alguns achaques ali, com algumas pessoas que não eram mais do convívio dele. Então, ele traz essas discussões sobre o papel do artista, aura em torno do artista, desta questão que, na argentina, é muito interessante que a literatura traz sempre isso.
A questão do local do centro e o do provinciano e a gente pode trazer isso para o Brasil também. Se a gente fosse pegar um exemplo de uma autor que também foi consagrado, que escreveu, neste sentido, sobre voltar para casa, que é o Raduan Nassar.
Em Lavoura Arcaica, ele escreve que não importa para onde vamos estamos indo, sempre voltamos para casa. Olha só que interessante: ele também é um autor que ficou sumido por muito tempo. É um autor recluso, atingiu o ápice com dois livros, um deles Lavoura Arcaica, e ele fica um tempão sem escrever, sem querer participar daquele auê, das homenagens a ele.
Muito recentemente ele (Raduan Nassar) voltou à ativa como um intelectual atuante, sobretudo para se posicionar contra o movimento do impeachment. Ele ganhou, recentemente, o prêmio Camões. Quando ele recebe essa honraria, no discurso, ele deixa a literatura um pouco de lado para cravar uma posição política. Ali ele desanca a principal autoridade presente, que era o ministro da Cultura, e fala governo golpista em curso no Brasil.
Isso provoca uma discussão, um mal estar. Mas olha só como é interessante essa questão de como a gente consegue trazer também para um evento local aqui, como a gente consegue pensar em um papel de um intelectual como um ativista mesmo, como alguém que está ali, e não é só pra receber louros. É pra causar desconforto, é para dizer as coisas que precisam ser ditas.
A gente tem esse caso aqui. Quer dizer, eu não vou dizer que a arte imita e a vida, e vida imita a arte, até porque são episódios realizados em momentos paralelos, distintos, que conseguem pensar sobre o papel do artista para apontar coisas que, às vezes, são obscuras. São óbvias demais.
A função dele é justamente tirar a gente da nossa zona de conforto, e o filme acaba mostrando isso de uma maneira bastante tragicômica, bastante irônica. No fim, tem muito a ver com o que a gente pensa, o que a gente vive, com as nossa vivências, no Brasil.
Então, é a minha dica de hoje. Um abraço!
*Matheus Pichonelli é formado em jornalismo e ciências sociais e escreve sobre cinema.

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