Brasil

O Holocausto e a cloroquina

Quem não compreende a dimensão desse genocídio usa de análises psicológicas rasas

por: Natalia Pasternak, Mauro Schechter e Daniel Tabak

Comparações indevidas com o Holocausto — o assassinato planejado, deliberado e em escala industrial de seis milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial – são recorrentes. Muitas vezes até bem-intencionadas, pessoas que não compreendem a dimensão desse genocídio usam de análises psicológicas rasas para defender um ponto de vista sobre comportamentos humanos, não raro referindo-se a “aqueles judeus” dos campos de extermínio. Para nós, judeus descendentes de sobreviventes, a comparação já acende um sinal de alerta. Nada de bom costuma seguir à expressão “aqueles judeus”.

A médica Nise Yamaguchi foi afastada temporariamente de suas funções no Hospital Israelita Albert Einstein após fazer uma declaração pública infeliz em que comparava o medo gerado pela pandemia com o medo sofrido por “aquela massa de rebanho de judeus” intimidados por “uns poucos militares nazistas”. O hospital considerou a declaração “insólita” e achou por bem afastar a médica até averiguar o caso. O próprio hospital afirmou que preferiria não trazer a questão a público. A médica, no entanto, decidiu fazer sensacionalismo e colocar-se como vítima, perseguida por prescrever cloroquina contra a Covid-19, uma conduta clínica sem comprovação científica e que não é recomendada pela direção do hospital.

Independentemente do fato de realmente o uso da cloroquina não ter embasamento científico, a autonomia médica garante à Dra. Yamaguchi o direito de prescrevê-la para seus pacientes. O hospital não infringiu esse direito. A médica, no entanto, distorce o episódio, em uma tentativa midiática de vestir o manto de Galileu e posar de vítima perseguida por defender a Ciência.

Resta a nós, pesquisadores judeus, explicar para a doutora que perseguidos, torturados e cruelmente assassinados foram os nossos antepassados, esses que ela chama de “rebanho”. E que os “poucos militares nazistas” eram tão “poucos”, que por causa deles morreram não apenas seis milhões de judeus, mas também mais de 20 milhões de soldados no conflito armado mais sangrento da História. E nos cabe também lamentar que a médica transforme esse episódio em mais uma tentativa de defender um tratamento médico que não se sustenta diante da Ciência, em vez de aproveitar a atenção da mídia para simplesmente se desculpar perante a comunidade judaica pela infeliz colocação.

A comparação da Covid-19 com uma guerra não é novidade e já foi usada por cientistas e políticos para defender o uso da cloroquina e a urgência que impediria testes para provar a sua eficácia. Essa analogia, no entanto, também é infeliz, pois leva a população a crer que a doença é uma sentença de morte, da qual só se escapa tomando a milagrosa cloroquina.

Covid-19 não é uma sentença de morte. É uma doença com mais de 90% de taxa de cura sem quaisquer complicações. Para uma minoria que necessita de hospitalização, existe tratamento de suporte que salva vidas, mesmo sem medicamento específico.

Por outro lado, ser judeu na época do nazismo era sim uma sentença de morte. Uma sentença da qual nossos pais e avós escaparam, mas que deixou para trás milhões de vítimas cuja memória é desonrada com a expressão “massa de rebanho de judeus”, que teriam “perdido toda a iniciativa”. Isso não apenas demonstra profunda ignorância dos atos de resistência que ocorreram nos campos de extermínio, como menospreza o fato de que é difícil expressar “iniciativa” em meio a fuzis e câmaras de gás.

A Dra. Yamaguchi não está sendo perseguida por convicções “científicas”, que a levam a afirmar, da forma menos cientifica possível, aliás, “ter certeza de que a cloroquina salva vidas”. Ciência não se faz com certezas. Por isso, testamos hipóteses. O medicamento que ela defende foi testado e reprovado para tratamento da Covid-19, através de ensaios clínicos randomizados, que constituem o padrão ouro para testar medicamentos. Seu uso é mundialmente contraindicado, tanto para prevenção como para tratamento. Que a médica insista em administrá-lo mesmo assim, entristece-nos, mas está dentro de suas prerrogativas profissionais.

Mas fazê-lo iludindo as pessoas, e usando indevidamente a memória do Holocausto como analogia, é algo que não podemos permitir. Lembramos a doutora que, para vestir o manto de Galileu, não basta declarar-se perseguido pelo sistema. É preciso que a perseguição seja real. Também é necessário ter razão.


Natalia Pasternak é doutora em Microbiologia pelo Instituto de Ciências Biomédicas da USP,

Mauro Schechter é professor titular de Infectologia da UFRJ,

Daniel Tabak é oncologista e membro titular da Academia Nacional de Medicina

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