Brasil

Nos 150 anos de Lenin, toleremos Bolsonaro como os russos toleraram os czares

Esse é um texto sub-reptício. Ele nasce deliberadamente para enganá-lo, caro leitor. O tom edificante de uma efeméride histórica é uma isca, uma armadilha, um subterfúgio.

Texto: Gustavo Conde
Ilustração: Carvall

Eu poderia até começar dizendo algo do tipo: “Os 150 anos de Lenin nos obrigam a uma reflexão que ao menos roce a dicção revolucionária.”

Mas, não direi. A clandestinidade e o espírito revolucionário me acometeram de tal forma no curso dessa destruição de país, que pouparei o leitor das desculpas esfarrapadas.

A lembrança de Lenin é um espasmo do inconsciente. Eu quero falar de Brasil e de Bolsonaro – e da nossa esquerda perdida. Talvez, seja a melhor maneira de homenagear o político-teórico comunista, que faria 150 anos hoje se a ciência lhe concedesse essa graça.

Homenagear um comunista também me parece tarefa ingrata. Comunistas não se homenageiam: replicam-se os seus gestos revolucionários para libertar o povo da estupidez e da boçalidade.

Feita advertência, vamos ao que interessa.

Quero dizer que não vou assistir o meu país morrer fazendo coro com o ‘narcisismo progressista’ que demonstra uma paciência infinita com Bolsonaro por medo de ‘arriscar’.

De uma certa maneira toda a política partidária brasileira já está morta. Vamos deixar de ser hipócritas.

Era essa a mensagem sintomática das jornadas de 2013, com toda a bestialidade que a caracterizou (até as manifestações bestiais deixam algum tipo de lição).

Como rezam as cartilhas marxistas, a resposta não pode mais partir de quem habita a burocracia partidária, por quem já foi governo (e sabe como funciona tudo) ou pelos acadêmicos, que tentam formular soluções inúteis desde 2015, num português empolado e com pressupostos desmanchando de podres.

A resposta tem de vir do povo. Dessa massa que está sendo esmagada por todos nós que ficamos aqui teorizando a sociedade e cadenciando ações.

Em vez de ficarmos fetichizando Lula, é preciso repetir concretamente seu gesto: construir de baixo para cima uma alternativa de país. De uma certa forma, nós devemos isso a ele.

O caso é que essa resposta não encontra condições para seu surgimento de dentro das hostes partidárias viciadas, gravemente institucionalizadas e domesticadas.

É uma agonia ver um dirigente partidário – de qualquer partido – ou um analista político tentando responder à catástrofe Bolsonaro. Eles acham que ainda existe o debate público dos anos 90, em que havia duas correntes ideológicas minimamente postas.

É o colapso da linguagem e o colapso do discurso (e consequentemente, o colapso da política). Podem tentar os próximos 30 anos e morrerão de velhos.

Quando ocorrem essas injunções históricas de ‘transbordamento’ do sentido, ou é povo ou é morte.

Não há mais condições de temer a palavra “revolução” – a menos que insistamos no destino certo do esmagamento.

O uso da palavra ‘revolução’, de fato, implica em romper com tudo o que está posto. Ela enseja riscos? Óbvio. Mas quando o risco de ‘se manter as coisas como estão’ é maior que o risco da ousadia insurgente, a própria razão rudimentar responde com violência cognitiva: faça.

A resposta deve vir do improvável. A liderança deve ser nova. A lógica de ação deve ser inédita. O discurso deve romper com toda essa massa modorrenta, apodrecida e sabotada (apodrecida porque sabotada) das elites intelectuais narcísicas, que se projetam na linha de frente da paralisia política de turno.

De repente, viramos milhões de FHCs.

É humilhante, mas faz parte.

Oxalá o MST materialize o eterno simulacro que lhe foi imputado pelos balbuciantes conservadores brasileiros e concretize as táticas de guerrilha comunistas que faz os militares brasileiros, vendilhões da pátria, mijarem nas calças.

Alguém aqui tem medo de sangue? Se tiver, parem de ler esse texto. Vai piorar.

Há uma ideia estúpida de que o brasileiro é cordial, boa praça e diligente. A elite quer que se acredite nisso e impõe essa leitura como forma de controle.

Mas o brasileiro é tal qual todos os povos do mundo – talvez até pior, porque todos os povos do mundo aqui habitam: podemos cerrar os punhos e atropelar os genocidas encrustados no poder e a plateia desinteressante do Twitter progressista.

Povo neles. Povo em todos.

O cansaço com a falta de perspectivas bateu e isso é uma ótima notícia – porque nos obrigará a finalmente realizar o primeiro movimento.

Tanta gente despolitizada à solta pode também não ser o fim do mundo (como a ‘gente politizada’ de turno faz parecer ser): motoristas de Uber, entregadores de iFood, ’empreendedores’ de si, estudantes secundaristas, moradores de rua, pescadores, pequenos agricultores… É dessa gente que virá a resposta para que assassinemos o imobilismo (e não dos profissionais de ‘home office’, como este chato, abusado e inconveniente, que não frequenta o clube que o aceita como sócio e que vos escreve).

Nós estamos em um momento muito pequeno-burguês, debochando dos trabalhadores desorganizados que vêm sustentando a atividade econômica do país nos últimos anos, sem uma réstia de ajuda do Estado ou mesmo dos setores ainda sindicalizados.

É bom não subestimar.

Está claro que eles precisam de um líder, alguém que acenda a fagulha – o que não é trivial, mas também não é o fim do mundo.

Basta de Bolsonaro e basta desse discurso caquético dos setores pretensamente progressistas (na verdade, são ‘regressistas’) que ficam ‘ensaboando’ a passagem ao ato como escultores domesticados em suas linhas de produção digital, na dança das frases de efeito e das reflexões autoconfirmatórias.

A experiência da escrita revolucionária não pode ser essa miséria de textinhos bacaninhas cheios de clichês. A escrita precisa incomodar, precisa deixar o leitor em situação desconfortável. Esse é o gatilho, esse é o gesto, essa é a transmutação do texto em ação.

A política morreu. É preciso reinstalá-la em novas bases. O processo para isso é longo. É preciso ousadia, é preciso romper com nossa covardia estrutural, é preciso expropriar o lugar de fala dos agentes políticos entranhados nessa mixórdia brasileira e realinhá-los a uma nova realidade, a realidade revolucionária.

Até pouco tempo atrás, eu acreditava que o Brasil poderia ser reconstituído através do diálogo. Agora, eu não apenas não acredito: eu desejo com todas as forças o tombamento dessa engrenagem política apodrecida, com militares, com Bolsonaro, com Mourão, com esquerda cirandeira, com tudo.

O legado dos revolucionários que romperam com suas estruturas de poder não poderia ser mais atual: a pandemia faz renascer o papel do Estado e faz renascer o papel das revoluções.

Os 150 anos de Lenin devem ser aproveitados não como efeméride apenas, mas como centelha para fazer acordar um povo massacrado como o brasileiro.

Não há mais razões para não sonhar com um Brasil mais justo e mais igualitário, na acepção máxima das palavras.

Eles provocaram e agora é a hora de dar a resposta correta a essa provocação.

Como na Rússia czarista, a solução para o Brasil não é diálogo nem conciliação (nem cordialidade). Bolsonaro nos fez e nos faz despertar a ira.

Como romper com essa cultura de golpes, de desigualdade, de execuções, de jornalismo venal, de vísceras partidárias apodrecidas, de mentiras?

Sinceramente, eu quero que o Brasil seja uma imensa Cuba e que esses empresários bastardos que nos esmagam e debocham da nossa cara sejam expropriados e enviados para Miami.

Aí sim, poderei dormir com tranquilidade.

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