Brasil

A “direita simpática” e a saúde pública paulista

Como foi possível, em plena ditadura, criar a política de saúde pública que Bolsonaro quer destruir? Este artigo revela como Walter Leser (foto), um cientista e secretario de Saúde conservador, plantou as primeiras sementes do sistema público de saúde de São Paulo, enviando à Itália, para estudar, jovens médicos comunistas que na volta fariam uma revolução no estado. 

A contaminação do médico infectologista Hélio Bacha por corona vírus, como ele mesmo divulgou, foi uma consequência do fato de estar na linha de frente de combate à epidemia. Um risco calculado, mesmo que cercado por todas as cautelas possíveis. A política de isolamento e construção de leitos emergenciais pelo governo de João Doria parece indicar, em contraste com a política federal, um governante conservador mas esclarecido. Situação que faz pensar o que há em comum entre Bacha, historicamente um homem de esquerda, e o oportunista João Doria, que até outro dia se alinhava automaticamente com Bolsonaro.

Arrisco dizer que ambos são expressões de uma estrutura de saúde pública que se formou ao longo de décadas no estado de São Paulo. Bacha, como um dos seus artífices, João Doria como um governante ao qual essa lógica se impôs de modo obrigatório.

Se tudo deve ter um começo, ele se deu nos anos 1970 com Walter Leser na Secretaria de Saúde do estado. Esse cientista e estatístico, já notório por sua tese “Contribuição para o estudo dos métodos estatísticos aplicáveis à medicina e à higiene” e por seus estudos relacionando mortalidade infantil, renda  e saneamento, foi convocado, em plena ditadura, para dar um jeito na saúde pública. 

Homem conservador, foi o organizador de um sistema de atendimento preventivo da população e, por duas vezes, ocupou o cargo de Secretário de Saúde. Na primeira, no governo Abreu Sodré, montando um arcabouço de serviços nos moldes da reforma administrativa federal, orientada pelo Decreto-Lei 200, de 1967, que visava eficiência operacional,  administrativa e valorização do servidor público – numa perspectiva que se contrapunha à cultura patrimonialista. Mesmo sob o clima geral de caça às bruxas, Leser soube proteger os “seus comunistas” sob o manto da eficácia que deles esperava. 

No seu segundo mandato, sob o governo Paulo Egydio, organizou a saúde pública – inclusive criou a carreira de médio sanitarista – e, como epidemiologista, colocou a tarefa de prevenção em primeiro plano, com campanhas de vacinação em massa, atingindo 90% da população, e saneamento. Instituiu a prosaica caderneta de vacinação, renovou o Código Sanitário de 1918, definiu política de compra de medicamentos, criou centros de saúde escolar, combateu a febre tifoide, erradicou a epidemia de meningite, derrubou os índices de mortalidade infantil e assim por diante.  

Visando a formação de quadros para operar essa nova máquina de saúde, enviou jovens sanitaristas para estudar na Itália e, dentre eles, foram alguns comunistas que tiveram destaque no período seguinte, como David Capistrano Filho, Hélio Bacha e Pedro Dimitrov. É provável que esse viés político progressista tenha, contudo, servido de pretexto para a extinção da carreira de médico sanitarista em 1987.

David Capistrano Filho/ Hélio Bacha/ Pedro Dimitrov

Um desses comunistas, David Capistrano Filho, teve carreira brilhante, seja como secretário da saúde em Bauru e Santos, e depois duas vezes prefeito de Santos, ou em outros trabalhos de definição de políticas públicas: com o médico Adib Jatene, concebeu, em 1994, o programa Qualis-Saúde da Família, os programas Médico de Família e de Agentes de Saúde. Dirigente paulista do Partido Comunista Brasileiro, que buscava renovar, foi dele destituído pela direção nacional, indo se refugiar no PT, assim como Hélio Bacha e Dimitrov, que viria a ser o braço direito de Eduardo Jorge, Secretário de Saúde do governo Erundina. 

Essa cultura pró-saúde pública como um bem da nação, se consolida como um modelo universal com o SUS, em 1988, como desdobramento da nova Constituição. Era indubitavelmente um triunfo daqueles jovens médicos paulistas, formados num modelo de prática que só pode se desenvolver a partir da política esclarecida de Walter Leser. Coisa que perdura até o advento da política antinacional de Jair Bolsonaro. E não é por acaso que este ataca, como primeiro obstáculo às suas pretensões, justamente a política de saúde e o quanto de progressista havia nela, através do gesto mais que simbólico de expulsão dos médicos cubanos.

No entanto, mesmo à direita, não se forma a unanimidade bolsonarista quando o assunto é esse patrimônio da nação. Parte da elite conservadora, embora tenha apoiado a eleição de Bolsonaro, não está disposta a, com ele, mergulhar nas trevas. É o caso de João Dória e de Ronaldo Caiado, ambos governadores posicionados na contramão do presidente quando as tensões politicas sobre a saúde se aguçam por conta da epidemia de corona vírus. Também no ministério, o médico Luiz Henrique Mandetta não realizou a “despetização” dos quadros da saúde, conforme esperado pelo presidente, e ganhou notoriedade por defender uma política necessária para debelar a epidemia.

A formação profissional médica de Caiado e Mandetta parece ter falado mais alto do que os desvarios políticos do chefe. Junto com Doria, da tradição do conservadorismo esclarecido da elite paulista, formam um grupo importante de alianças para os defensores da saúde pública, seja em defesa do isolamento, seja em defesa do SUS nas lutas que se seguirão à debelação da epidemia. 

Reconstruir a nação em frangalhos será fruto da reunião da maioria dos brasileiros em torno do bem comum, repudiando a facção e o “miliciamento” da política. Quis o acaso do destino que a política de saúde se convertesse no primeiro terreno de convergência dos brasileiros não sectários, numa “prova dos nove” de que seremos capazes de resgatar o país das garras dos facinorosos.

(*)Carlos Alberto Dória é sociólogo e colaborador regular do Nocaute.

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