Brasil

Coronavírus nos obriga a reescrever o mundo

Dadas certas características que circundam historicamente a pandemia de coronavírus, é preciso dizer que, talvez, estejamos entrando em um tempo para não mais voltar.

O fascismo, a intolerância no trato, a ganância, as redes sociais, as vídeoconferências…

Tudo parece cirurgicamente alinhado para que a experiência social presencial dos seres humanos jamais volte a patamares anteriores, de liberdade e de trânsito amplo pelo mundo.

Sobreviver a essa tragédia de proporções colossais já seria uma espécie de ‘lucro’. Parte da humanidade ficará pelo caminho.

Peço desculpas àqueles que se escravizaram pela autoimposição de controlar as palavras duras, gesto que enseja mínima soberania intelectual.

Negar a gravidade do que passamos, com os inúmeros relatos chocantes que nos chegam da Europa é fazer jus à tradição de subserviência que sempre caracterizou o povo dócil e trabalhador brasileiro.

Tem gente elogiando João Doria, elogiando Witzel, elogiando autoridades, enquanto todas elas (todas) apenas ganham tempo.

É da índole de brasileiro elogiar autoridade. Décadas a fio, ele é ‘escravizado’ pelos textos de quinta categoria da nossa imprensa nativa, alinhada estruturalmente a mercados e ao poder conservador.

Há pessoas até elogiando a imprensa.

Essa bajulação interminável associada ao medo é um coquetel atamente tóxico, suicida e sombrio.

O cinema-catástrofe americano nos deixou como legado uma trágica ilusão: a de que potenciais aniquilamentos da espécie humana é “coisa de filme”.

É um instrumento de controle. Glamourizado, estético, complexo, mas instrumento de controle.

Essa dimensão do imaginário nos impede de raciocinar neste momento. O resultado está estampado diante dos nossos olhos incrédulos: Europa e EUA.

O brasil é a sequência lógica e catastrófica dessa realidade que supera os mais extravagantes ‘delírios’. É uma armadilha da linguagem: há pressões históricas no gerenciamento semântico dos enunciados que nos impedem de pensar.

Isso está relatado nas teorias embrionárias do discurso desde os anos de 1960, com Louis Althusser, Jacques Lacan, Michel Foucault e Michel Pêcheux.

A gente precisaria muito de filosofia – e de linguística – agora, mas quem dá valor prático a essas tecnologias do sentido?

Sabem quem dá valor? Google e Facebook, as gigantes que irão gerenciar o mundo pós-pandêmico – até porque a experiência presencial da espécie pode estar comprometida para todo o sempre.

É bom irmos nos acostumando com as videoconferências. É a nova fronteira tecnológica da frágil perpetuação da espécie e dos rastros de afeto.

Como somos predadores de sentido, temos imensa adaptabilidade a um mundo definitivamente virtual, uma vez que as trocas linguísticas saciarão nossa demanda cognitiva.

A experiência social terá de ser reorganizada em outro patamar – e especulações aqui iriam parecer literatura distópica (relaxem, porque em alguns anos, a ‘literatura distópica’ mudará de prateleira nas livrarias virtuais e será transferida para a ‘historiografia antecipatória’).

Afinal, para quê tentar argumentar se as bases semânticas para a argumentação ainda não estão postas?

De todo modo, estamos nos despedindo de um mundo.

A Covid-19 é ‘uma’ crise. Há muitos estudos já antecipando que ela passará a ser regra. Ou: teremos de conviver com o surgimentos de vírus desconhecidos em intervalos menores de tempo e diante de uma nova codificação da realidade propiciada pelas redes sociais e pela proliferação de declaração de especialistas em tempo real – o que acentua o represamento preventivo dos contatos humanos presenciais.

Não há mais dúvidas: depois dessa crise-catástrofe, o mundo jamais será o mesmo não só no universo conceitual do capitalismo e/ou do darwinismo social: o mundo não será mais o mesmo na própria dinâmica dos contatos humanos.

Estamos com 7,3 bilhão de habitantes no planeta. Metade da população global vive abaixo da linha da pobreza (Banco Mundial, 2018). Não há qualquer condição estrutural nem moral para seguir esse caminho.

É curioso: em 2020, a China iria anunciar a erradicação da pobreza em seu país, com parâmetros mais exigentes dos postulados pelo Banco Mundial.

Esse anúncio estava sendo esperado com grande apreensão pelos americanos, que têm mais de 140 milhões de pobres (39 milhões de crianças – Fonte: ONG Poor People’s Campaign).

Não. Eu não irei apresentar ‘teorias da conspiração’. As ditas ‘teorias da conspiração’, esse sintagma insidioso que permeia todas as discussões sobre o mundo do poder é, como o cinema-catástrofe americano, uma forma de controle dos discursos: você invalida uma tese antes mesmo de ela ser apresentada.

Não cairei nessa armadilha.

Texto de Gustavo Conde
Ilustração de Carvall

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