Cultura

Tela em coma

Nesta semana o Congresso deve tomar uma decisão que afetará, por anos, o cenário cultural e econômico brasileiro. Aqueles que agora ocupam o executivo propõem a PEC 187, cuja função é extinguir os fundos públicos que não sejam ratificados em até dois anos. Trata-se de tema de amplo impacto em distintos setores, sobretudo nos segmentos das artes e da cultura, hoje sob a aba do Fundo Nacional de Cultura e do Fundo Setorial do Audiovisual, sobre o qual falaremos nestas linhas.

A extinção, ou mesmo a continuidade da paralisia imposta ao setor audiovisual pelo executivo, significam um cenário catastrófico para uma atividade central nas economias do século XXI. O legislativo, caso caia no canto da sereia, pode ser responsável por uma decisão, no mínimo, desastrosa. 

Para aqueles que endossam o discurso contrário ao financiamento público na cultura e no audiovisual, é possível argumentar de muitas formas, mas vamos começar pelo básico, o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) é um fundo autossustentável, resultado não de atuação “ideológica”, mas sim de décadas de estruturação de um modelo inteligente e indutor de desenvolvimento, fruto de extensa luta dos profissionais de um setor tão ameaçado por atores externos, nos lembremos dos assustadores índices de ocupação de salas pelo cinema norte-americano. Me permitindo uma metáfora gastronômica, teríamos um cenário onde as redes de fast food estrangeiras ocupariam mais de 90% do mercado alimentício, nada de arroz e feijão, tapioca, moqueca ou tucupi, seria só cheeseburguer mesmo. Por isso, o FSA recebe recursos da CONDECINE, uma Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE), cobrada apenas de quem atua no próprio setor. 

Existem sempre os ingênuos, estes argumentam que os recursos poderiam ser investidos na Educação ou na Saúde, isso é tão verdadeiro quanto a visita do coelhinho da Páscoa no próximo mês. Os recursos, legalmente, são do setor audiovisual, um filme estrangeiro, um episódio de novela, tudo isso paga imposto que é direcionado ao fundo e utilizado como indutor da economia audiovisual brasileira. O FSA patrocina filmes, séries de televisão, nos gêneros de ficção, documentário e animação, além de games e outros setores em expansão, amenizando distorções de mercado e sendo fomentador de polos regionais de produção. Mas este patrocínio não é a fundo perdido, o mecanismo é muito mais sofisticado, o fundo é sócio nas produções, cada bilhete vendido, cada venda para televisão, cabo, VOD, streaming, aqui ou no mundo, volta um percentual ao fundo investidor, gerando retorno e mantendo um ciclo virtuoso de produção de receita. Portanto, a extinção do fundo não trará qualquer efetividade prática em resultado primário para o Estado ou mesmo destinação para outros setores, muito pelo contrário.

Muitos dos detratores da cultura brasileira ignoram que o setor cultural consome menos de 0,5% do orçamento da união e, geralmente, não se escandalizam com mais de 45% do orçamento da união sendo destinado a amortização e juros da dívida pública ao sistema financeiro, também não se incomodam com subsídios públicos às monoculturas e tantos outros gastos federais que poderiam ser usados de forma mais racional, favorecendo cadeias produtivas mais amplas e de maior capital humano. 

O audiovisual é uma das poucas atividades que alinha uma extensa e diversificada cadeia produtiva, a indústria do audiovisual hoje responde por quase 0,5% do PIB brasileiro e gera mais de 300 mil postos de trabalho. O retorno em vagas geradas é, proporcionalmente, muito maior do que em setores como o automotivo, por exemplo. O valor adicionado pelo audiovisual à economia, é superior ao de indústrias como a farmacêutica e a de eletrônicos. Ou seja, um setor crucial para a economia, sobretudo em tempos de crise econômica, onde a alta mecanização do trabalho na indústria e na agropecuária acentua o desemprego, a economia criativa se apresenta como setor de alto valor humano, o capital criativo é a chave econômica do nosso tempo. 

Países como Canadá, Coréia do Sul, França, Alemanha e tantos outros, já entenderam isso há tempos e hoje colhem os frutos de continuados investimentos na cultura e no audiovisual. O Brasil, apesar de todo o desmonte em curso, ainda colhe frutos de uma política hoje posta em coma induzido. Mesmo países de profundas raízes capitalistas, como os Estados Unidos, investiram fortemente em audiovisual e não é de hoje. Uma famosa citação de Franklin Roosevelt deixa claro a importância estratégica do cinema em sua visão: “Onde chegam nossos filmes, chegam nossos produtos.”. Mesmo nos dias de hoje, com uma indústria colossal e lucrativa, existem pesados incentivos públicos para filmagens nos EUA. 

Estudos indicam que, no Brasil, a cada R$ 1,00 investido no setor audiovisual, cerca de R$ 2,60 voltam ao Estado por meio de tributos. Estima-se também que movimenta aproximadamente 70 setores da economia, poderíamos exemplificar isso de muitas formas, imagine que o valor investido em uma produção paga uma enorme cadeia produtiva, que passa não só por artistas e técnicos, mas por setores como hotelaria, gastronomia, enfim, fornecedores de serviços e produtos de todo tipo. Audiovisual faz girar capital que volta em consumo e tributos. 

É imperativo que a sociedade civil e o poder público entendam, de uma vez por todas, a importância desta pauta, a enorme conquista social e econômica proporcionada por fundos como o Fundo Nacional de Cultura e o Fundo Setorial do Audiovisual, só assim podemos parar a catástrofe em curso, contamos com nossos representantes no legislativo para conter tamanho desatino. 

Se nada disso te convenceu, te dou uma dica, vá ao cinema! Assista produção audiovisual do teu país! O mundo inteiro está ligado no que botamos nas telas. Para ficar só no último ano, você pode rir com “Minha Mãe é uma Peça 3”, que já fez mais de 11 milhões de espectadores, ou pode se surpreender com o épico sertanejo consagrado pelo júri do festival de Cannes, “Bacurau”, ou ter uma tarde deliciosa com as crianças vendo “Turma da Mônica – Laços”, pode refletir com o drama intimista, também premiado em Cannes, “A Vida Invisível”, ou ainda se emocionar com o amor ao cinema demonstrado em “Babenco – Alguém Precisa Ouvir o Coração Dizer: Parou”, melhor documentário no Festival de Veneza, entre tantas outras obras que mostram a diversidade, a beleza e a potência de nossa produção. Nada disso existiria sem o Fundo Setorial e a longeva luta do setor. Agora, cabe aos nossos representantes no legislativo determinar se o audiovisual brasileiro sairá do coma para seguir iluminando as telas do mundo. 

Mauro D`Addio é diretor e roteirista. Seu longa-metragem “Sobre Rodas” foi premiado nos festivais de Toronto, Chicago e Rio, entre outros. Integra a diretoria da Associação Paulista de Cineastas (APACI). 

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