Brasil

Startup

Marcílio Godoi

Nesses tempos modernos, nesse Brasil encurralado, envergonhado, nesse país sem rumo e desgovernado, Marcilio Godoi consegue juntar as palavras e transformar em poesia o que bem poderia ser chamado de caos.

Startup

Tudo está em desequilíbrio.
Não é com você, é conosco.
A renda nos punhos, mal distribuída
os botões sem casa, as casas com botões
o colarinho imenso, branco
e a feição horrenda dos babados todos.

É quanto ao fluxo das energias vitais
à má utilização dos recursos
ao feng shui do planeta, ao furo
no planejamento da terraplana
operado pela masculinização escrota
de um mundo desacolhido, desassistido.

É, sei lá, esse climão
de calotas polares derretidas
e essa disfunção incontrolável
de mentorias mentirosas, de ocasião
A uberização dos afetos, a prevalência do não
e as máscaras dessa epidemia infecciosa, o dinheiro.

Não se preocupe, é só a individualização
desacordada, mas muito viva
do lucro feérico-estratosférico dos bancos.
E essa nuvem que não passa, de poeira radioativa
na mesa, na cama, na casa, na alma.
Na cidade e no campo das probabilidades.

O mundo não precisa de gurus
nem de ninguém que nos diga mais
e mais do que o mundo precisa.
Perdemos o coletivo,
perdemos o táxi na chuva.
E o amor nos mandou um Uber

para nos levar de volta pra casa
numa bicicleta sem asa
locada a preço de um lotação
já que, como as patinetes farialimers,
a gente agora tem um chipe, um cadeado
e um programa aplicado ao cartão.

O homem não passa de um gadget,
um equipamento com obsolescência
programada pelo capital aberto,
escancarado, arregaçado por bluethooth,
totalmente destituído de toque
sangue, veias ou poesia.

Mendigo S/A

Barracas de nylon se multiplicam pela cidade.
Na paisagem se irmanam, desbotadas,
aos caixotes usuais dos pedintes,
suas fogueiras de inverno, suas latas de óleo
suas garrafas de aguardente, seus cobertores
entes esparsos, autômatos em sua miséria zumbi.

Não, não são mais aparas de papelão
roupa rasgada, urina, cachorro sarnento.
Daqui se vê bem: são famílias
mulher e filhos, panelas, brinquedos
gente que já teve algum curso, algum recurso
algum chão, alguma parede, algum teto.

Agora moram acampados
banhando-se na água da enxurrada
na fonte do Palácio do Governo
penteando-se na sarjeta, na marquise.
Acima do chão, sob o céu desprotegidos
como debaixo do viaduto.

Quem passa pelo centro ou pelas bordas
das modernas capitais brasileiras
pode assistir aos espetáculo
da fome e da humilhação
dos novos milhares de moradores jogados
às ruas, à própria sorte, ao azar.

Refugiados em seu próprio chão
exilados em sua terra natal, empreendem,
sob o olhar desprezante e a baba gotejante
da polícia, ambulam habitando o absurdo
sombrio, cruel e meritocrático
da cidade privatizada e linda.

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