Brasil

A hora do pesadelo

Marcílio Godoi

“A pátria traída me lembra um relógio sem ponteiros, um calendário branco”. Este é apenas um dos versos cortantes que Marcílio Godói coloca no ringue esta semana. Impossível não ler, verso por verso, os seus Poemas Pugilistas.

Inventário de apagamentos 

Esqueci que dia é hoje
da semana, do mês, da vida.
Perdi a memória da pele,
das paredes de meu quarto antigo.
Tudo vai no escuro,
perdi-me do trabalho que tinha,
do lugar em que nasci.
Das roupas em que habitei.

Estou sem a mínima noção das horas,
do perigo, dos fatos e de seus personagens
repletos de absurdo,
desapegados por completo
do real, de qualquer sentido, de utopia.

A pátria traída me lembra
um grande esquecimento.
Um relógio sem ponteiros
um calendário branco, quebrado.
A lousa apagada sem que dela, sonâmbulos,
sequer suspeitemos a matéria a giz.

A chave geral da nação quando cai
é justo no instante de um bombardeio
triunfante sobre a esperança.
Estou condenado à morte em plena casa,
sou um forasteiro em meu próprio quintal.
Caminho sem língua, sem trégua
gesto, lembrança ou defesa que me valha.

Meu país é um pesadelo paralisante
daqueles em que andamos sem sair do lugar
e dos quais nada mais lembramos,
de nada mais damos notícia, autômatos,
entorpecidos de não mais acordar.

Morte ao redor

Ao menino negro da baixada,
de bala supostamente perdida,
morto no meu lugar;

ao casal gay na Paulista,
por covarde homofobia,
morto no meu lugar;

ao índio guarani-kaiowá,
pelo capanga do agronegócio,
morto no meu lugar;

ao líder do acampamento sem terra,
em sua diáspora pela reforma agrária,
morto no meu lugar;

à mulher violentada em casa e no trabalho,
pelo machismo velado,
morta no meu lugar;

ao noia do anhangabaú,
de mendicância e abandono cruel,
morto no meu lugar;

ao professor da escola de periferia
por grave ameaça e achaque,
morto no meu lugar;

ao adolescente do baile funk,
pisoteado numa emboscada,
morto no meu lugar;

ao ativista político em passeata,
por bomba de efeito moral,
morto no meu lugar;

ao policial em serviço,
por excesso de truculência e estupidez imposta,
morto no meu lugar;

aos habitantes ribeirinhos,
por negligência e crime ambiental,
mortos no meu lugar;

ao entregador de bicicletinha alugada,
por exploração e carga desumana,
morto no meu lugar.

ao professor humilhado suicida,
pelos atiradores de elite dos bancos dos réus,
morto no meu lugar.

à esperança em um país justo e democrático,
pela ganância neoliberal em último estágio de desfaçatez,
morta em meu lugar

todas as minhas desculpas, toda a minha vergonha,
e o meu pedido de perdão por estar vivo,
peço clemência pelo que há de omissão
de minha parte em cada morte ao meu redor.


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