Brasil

Asfixia e deboche – o novo desmonte do cinema brasileiro

Por Marcello Ludwig Maia*

Nem como farsa seria possível imaginar a repetição do desmonte de produção do cinema brasileiro que experimentamos naquela fatídica manhã de 15 de março de 1990 quando Fernando Collor e Zélia Cardoso de Mello, entre outros confiscos, anunciaram a morte por decreto da Embrafilme, da Fundação do Cinema Brasileiro e de todo e qualquer mecanismo de fomento e regulação não só do audiovisual mas de todas as áreas de produção cultural no Brasil. 

Se naquele momento era retaliação pura e simples à classe artística que havia em peso apoiado a candidatura do Lula, agora, vinte e nove anos depois, acrescentou-se o deboche, como a nomeação de nomes ridículos, como a do colunista social evangélico Tutuca para Superintendência de Desenvolvimento Econômico da Agência Nacional de Cinema (responsável por gerir os recursos do Fundo Setorial do Audiovisual, principal mecanismo de fomento do setor). Ou a estratégia nem disfarçada de asfixia administrativa por inércia, o jogo de empurra-empurra e agora a transferência da Secretaria Especial de Cultura (em tese substituta do extinto Ministério da Cultura) da pasta da Cidadania para o Turismo –  algo que surpreendeu até  o próprio Ministro Osmar Terra, uma vez que no dia anterior sua excelência havia participado normalmente da primeira reunião do recém nomeado Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual.

Entende-se um dos motivos: o escolhido para a chefiar a Cultura, o dramaturgo neopentecostal convertido, Roberto Alvim, uma espécie de Ipojuca Pontes muito piorado, desentendeu-se recentemente com Osmar Terra pois bypassava o chefe diariamente no contato com os gabinetes (de ódio) do Palácio do Planalto. Certamente não será o encalacrado Ministro do Turismo Marcelo Álvaro Antônio que fará sombra à propagada guerra cultural empreendida por Alvim, um dos únicos brasileiros capazes de insultar a atriz Fernanda Montenegro na comemoração de seus 90 anos. E nesta recente dança das cadeiras nem se sabe ainda para onde vão a Secretaria do Audiovisual e a própria Ancine.

A técnica utilizada pelo governo para paralisar a produção de cinema utiliza um primeiro procedimento tosco: a não nomeação da diretoria da Ancine, neste momento operada por um único diretor, Alex Braga. Com isso só serão liberados os recursos de filmes e séries que já tenham garantido seu investimento (até 2018 porque este ano ninguém ganhou nada),  ao passo de umas poucas assinaturas por semana ad referendum numa fila gigantesca cuja tendência é dobrar todos os quarteirões possíveis até que novos membros sejam escolhidos.

Vale dizer que não se está falando de novos projetos – não há nenhum, zero reais gastos dos 700 milhões que o FSA deveria desembolsar este ano -, mas de filmes com dinheiro captado – seja por um dos artigos da Lei do Audiovisual (que aliás vence em Dezembro agora e tem sua renovação ameaçada) , seja via Fundo Setorial. Os nomes apontados para a diretoria da Ancine com bom trânsito no segmento não se concretizaram (obviamente) e neste momento especula-se que a produtora evangélica Zitah Oliveira, ligada a Igreja Universal do Reino de Deus, será em breve nomeada diretora-presidente. De um jeito ou de outro, como todos os recursos passam pela Ancine e só são liberados pela agência, não há saída a curto prazo.

O que agrava sobremaneira este projeto de desmonte é o tumultuado ano anterior vivido pela agência, e, naturalmente, por todo o setor. Por conta do último Ministro da Cultura que tivemos,  Sérgio Sá Leitão, escolhido por Michel Temer e não por acaso realocado pelo governador de São Paulo João Dória no cargo estadual equivalente, empurrou-se para Ancine o “produtor” Christian de Castro como diretor presidente.

A primeira providência tomada na época foi modificar exatamente o que mais dava certo e o que alavancou a produção de cinema no Brasil nos governos Lula e Dilma fazendo com que chegássemos a mais de 180 filmes lançados num mesmo ano, prêmios principais e prestígio nos mais importantes festivais do mundo e, pouco a pouco, ao reencontro com nosso público.

Esse “produtor” substituiu os critérios de seleção anteriormente adotados (principalmente qualidade do roteiro e pluralidade de propostas) e as próprias linhas de fomento e financiamento do Fundo Setorial por um amontoado de números – em que profissionais  e empresas recebiam notas de performance -, explicações ruins e rapidez de internet para garantir inscrições nos editais por ordem de chegada virtual, uma espécie de corrida pelo Rock In Rio card.

Acabou afastado do cargo e marcando sua gestão saindo das páginas de cultura para as policiais. Soma-se a isso uma investida arrogante do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a prestação de contas dos projetos e a receita do desastre estava pronta: quase um Bolsonaro um ano antes do Bolsonaro.

Como desestabilizar e desmontar  é o projeto,  além da semi paralisia da Ancine, dos ataques ao setor e seus profissionais, das ameaças de confisco do Fundo Setorial do Audiovisual (em tese na lista dos fundos “ parados”  de Paulo Guedes), da possibilidade de não renovação da Lei do Audiovisual – que regula todos os mecanismos fiscais de incentivo a produção de cinema – também se assistiu desde o início do ano a saída de cena de todas as estatais que apoiavam a atividade.

Neste caso especialmente a Petrobrás (o programa Petrobrás Cultural é diretamente responsável por parte muito significativa do que fizemos de melhor no país nos últimos 15 anos), a Caixa Econômica, que não só saiu completamente do apoio a filmes como agora veta exibições de acordo com temas e sinopses, e o BNDES, cujo último edital de filmes, de 2018, sequer teve o resultado anunciado mesmo sendo uma chamada pública, na volta do velho estilo insegurança jurídica-república das bananas em que não vale nem o que está escrito no Diário Oficial.

E não vale mesmo, basta observar o que ocorreu com o Edital de TVs Públicas, também de 2018, cancelado em agosto pelo Ministro Osmar Terra, a pedido de Bolsonaro, por conta de séries de temática LGBT contempladas, num revival descarado de censura como não vimos nem nos estertores da Ditadura. Nem Figueiredo teve essa audácia e Glauber, Cacá, Tizuka, Neville, Bressane e muitos outros filmaram o que bem quiseram na época.

A decisão já foi suspensa pela justiça, mas como eu próprio me incluo entre os prejudicados pois tive um projeto de série documental (fruto de muitos anos de pesquisa) entre os finalistas, posso garantir que ainda não houve qualquer resultado prático e nem sinal. Pelo contrário, o retrocesso amplo, geral e irrestrito parece estar apenas no início,  seja em demonstrações de arbitrariedade – como na suspenção da exibição do belo documentário sobre Chico Buarque numa mostra de cinema no Uruguai apoiada pelo Itamarati (sob a bizarra chancela do olavista Ernesto Araújo) – seja perseguição pura e simples, via milícia digital em cima dos “não alinhados” ou via mão forte do Estado mesmo, sufocando a produção cultural em nome da família brasileira, seja lá o que isso signifique – embora todos já tenhamos visto este filme repleto de canastrões.

Estamos cada vez mais próximos de experimentar a realidade dos moradores da fictícia cidade de Bacurau, premiadíssimo e visionário filme de Kleber Mendonça, ainda mais agora com a ameaça real do Ministro da Economia de extinguir cidades com menos de 5 mil habitantes. A truculência no ímpeto de apagar do mapa o que nos define como sociedade encontra eco na própria situação jurídica do diretor pernambucano, perseguido pelo Estado Brasileiro desde que protestou contra o golpe de 2016 em Cannes, quando concorreu a Palma de Ouro por seu também extraordinário filme anterior, Aquarius. A acusação? Ter acrescido um apoio estadual a um projeto premiado no Edital de Filmes de Baixo Orçamento (O Som ao Redor) e conseguido a proeza de incluir um filme de menos de 400 mil dólares de orçamento na lista dos 10 melhores filmes do ano do New York Times.

A maior tristeza deste cenário é que ele se apresenta justo num dos melhores e mais perenes ciclos que vimos experimentando desde os anos 70, com empresas produtoras espalhadas por todo o país, mais de 300 mil empregos diretos, uma produção pungente, ampla, nova, admirada e repleta de potencial para dar conta dessa sonhada identidade nacional através do cinema, da imagem, a nossa imagem, nesta tentativa de seguirmos como autores, formuladores de linguagem, ao invés de figurantes velozes e furiosos da fila da Netflix e da Amazon, entre outras multinacionais.         

     Existiam desafios enormes, manter esta produção anual e ainda mais acessível fora dos grandes centros, melhorar a circulação dos filmes nas salas, voltar a investir na formação de público, buscar circuitos populares de exibição pelo país, ampliar o parque exibidor para muito mais cidades, regular o VOD para garantir nosso espaço…

Mas agora, de novo,  é lutar para sobreviver e nem dá para buscar o romantismo do vamos filmar de qualquer jeito, com os celulares e as ideias porque isso não paga nem a feira da semana.  E se tínhamos 20 e poucos no Collor agora temos 50 e os joelhos não aguentam mais.

(*) Marcello Ludwig Maia é produtor e distribuidor de cinema,  responsável, entre outros, por filmes como Amarelo Manga, Febre do Rato e Big Jato, de Claudio Assis, Um Passaporte Húngaro, de Sandra Kogut,  Erva do Rato e Educação Sentimental, de Julio Bressane. Atualmente produz e dirige a série O País do Cinema, apresentado pela atriz Andréia Horta no Canal Brasil.

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