Brasil

Sempre pode, mesmo quando não pode.

Muita gente se pergunta, me pergunta – e às vezes eu mesmo me pergunto: que fazer para reagir à treva que assombra o Brasil? Fuçando meus baús digitais encontrei, nessa capa de processo, o que talvez seja uma das respostas. Mesmo coberto pelo bolor do tempo, o documento deixa surgir uma luz: que fazer?

O processo contra o General de Exército João Batista Figueiredo

É preciso fazer tudo o que tire o sossego, estorve os planos e infernize a vida do opressor. Tudo. A chacun son boche, pregava a Resistência Francesa contra a ocupação nazista. 

Foram essas reflexões, acho, que me estimularam a ousadia de processar judicialmente a Ditadura Militar, em 1981. Sempre se poderá dizer que a ditadura já estava meio banguela, só iria durar mais alguns anos e que eu estava chutando cachorro morto. Mas o regime militar ainda tinha e exercia seu poder: recebia e pagava, nomeava e demitia, prendia e soltava (mais prendia que soltava, claro).

Foi assim que, ao saber que o general Figueiredo decidira espetar duas usinas atômicas em Iguape e Peruíbe, no litoral sul de São Paulo, resolvi, num gesto quixotesco, típico de quem tem trinta anos, peitar Sua Excelência. 

É importante ressaltar que não era um processo contra o governo, nem contra o ministro das Minas e Energia, César Cals, mas contra a pessoa do General de Exército João Batista Figueiredo, presidente da República e, em última instância, o responsável pela decisão de envenenar o coração do protegido santuário ecológico paulista.

Como se tratava de enfrentar um cachorro grande, consegui atrair um arsenal acadêmico do tamanho da briga. Como a causa era boa, não foi difícil seduzir para se associarem à minha Ação Popular (era esse o nome técnico do processo que eu movia) ninguém menos que os físicos Mário Schemberg e Luiz Carlos de Menezes, o geógrafo Aziz Ab’Sáber, o economista Raul Ximenes Galvão, o sociólogo Ricardo Abramovay e a ecologista Ecléa Bosi. Eram meus santos guerreiros na luta contra o Dragão da Maldade. Todos professores (alguns cassados) da Universidade de São Paulo.

A luta contra o Dragão da Maldade

Transformar essa cordilheira de argumentos técnicos em uma peça judicial ficou a cargo do advogado Iberê Bandeira de Mello (que, como os demais, trabalhou pro bono, a leite de pato). Experiente algoz da ditadura em tribunais de vários estados, generoso defensor de presos políticos, foi o próprio Iberê quem me advertiu: as chances da ação prosperar eram iguais a zero. 

Que juiz federal, perguntava ele, teria coragem de mandar sentar no banco dos réus o presidente da República de uma ditadura?

A resposta tinha nome, sobrenome e endereço: a juíza Jacy Garcia Vieira, titular da 4ª Vara da Justiça Federal de São Paulo. Movida por rara coragem nas trevas de então, a Meritíssima – a quem nunca tive o privilégio de conhecer – não apenas acatou minha Ação Popular como, incontinenti, mandou citar o presidente da República, a partir de então convertido em réu.

Vale a pena lembrar uma passagem anedótica ocorrida em meio a esse processo. Quando o Oficial de Justiça levou a citação ao Palácio do Planalto, um burocrata do gabinete presidencial informou que o recibo seria assinado pelo ministro-chefe da Casa Civil, general Golbery do Couto e Silva, responsável funcional por essas minudências. O meirinho retrucou, respeitosamente, que o objeto da ação não era o general Golbery, o Estado ou o Governo, mas a pessoa do presidente da República, a quem cabia, portanto, assinar o recibo da intimação. O que, muito a contragosto, Figueiredo foi obrigado a fazer.

Alguém aí viu duas usinas nucleares funcionando em Iguape e Peruíbe? Não, ninguém viu. Pela singela razão de que eu ganhei a Ação Popular e a ditadura desistiu de instalar os dois mondrongos letais no santuário ecológico do litoral sul de São Paulo.

Volto ao começo da conversa: que fazer para reagir à selvageria bolsonarista que nos aterroriza? Tudo o que cada um puder fazer, mesmo que seja proibido. Ou sobretudo se for proibido. A chacun, portanto, son boche.

Notícias relacionadas