Quando vimos na televisão aquelas imagens de caixas e mais caixas de bebidas alcoólicas apreendidas pela Receita Federal, e perguntamos para onde elas vão, agora já temos a resposta. Parte dessa apreensão vai para unidades militares e acabam na mesa de coquetéis, solenidades e visitas de autoridades. Só os quartéis e comandos militares do Rio Grande do Sul receberam doações num total de quase 2 milhões, entre 2011 e 2018.
Eram garrafas de uísque, vinhos finos, licores, espumantes e cervejas. Mas a farra pode acabar. O promotor militar Soel Arpini entrou com uma ação pública na Justiça Federal em Bagé, no Rio Grande do Sul, para impedir que as Forças Armadas comprem ou recebam bebidas alcoólicas apreendidas pela Receita Federal.
Deu no blog do Lucio Vaz – gazeta do Povo
Bebidas alcoólicas apreendidas e doadas pela Receita Federal são servidas com fartura em unidades militares durante coquetéis, solenidades e visitas de autoridades. Apenas os quartéis e comandos militares do Rio Grande do Sul receberam doações num total de R$ 1,96 milhão de 2011 a 2018. O Comando da 3ª Região Militar, em Porto Alegre, recebeu um lote avaliado em R$ 100 mil em abril de 2013.
Além de 333 garrafas de uísque, havia um vinho Chateau de Beaucastel no valor de R$ 1,94 mil e seis vinhos Vega-Sicilia/1998 avaliados em R$ 7,9 mil. O lote contava ainda com 410 garrafas de espumante, 200 de vinho branco seco, 100 de licor, 50 de rum, 50 de bitter e 600 de cerveja.
Para acabar com a farra das bebidas nos quartéis, o promotor militar Soel Arpini ingressou com ação civil pública na Justiça Federal em Bagé (RS) para impedir que as organizações militares das Forças Armadas comprem ou recebam bebidas alcoólicas da Receita Federal.”
“O promotor destaca que os pedidos não se restringem a “festividades e eventos comemorativos”, como estabelecem as normas militares, pois há solicitação de doações para visitas de autoridades públicas, como registram documentos endereçados pelas organizações militares à Receita Federal. Em outubro de 2012, uma unidade militar de Rosário do Sul solicitou bebidas para três eventos, um deles a visita do ministro de Defesa.
Foram 15 garrafas de uísque, 30 de vinho e três caixas de cerveja. “Pelo que se observa, o Ministro da Defesa e o Comandante da 3ª Divisão de Exército foram recebidos em Rosário com cinco garrafas de whisky, 10 garrafas de vinhos e uma caixa de cerveja, uma recepção pomposa, custeada com recursos públicos”, constata.
Vinho de R$ 2 mil e 333 garrafas de uísque
Arpini também contesta o pedido encaminhado pelo Comando da 3ª Região Militar. “Solicitação de doação de mais de 300 garrafas de whisky pode ser considerada parcimoniosa? Vinhos de quase dois mil reais, ainda que doados, enquadram-se nos critérios de parcimônia?” Ele se refere à orientação da Secretaria de Economia e Finanças do Exército sobre esse assunto: “as aquisições desse tipo de artigo devem pautar-se pela extrema parcimônia em suas quantidades, ser esporádicas, restringindo-se ao mínimo necessário em festividades e eventos comemorativos”.
O promotor afirma que a normatização do Ministério da Defesa e dos Comandos Militares, embora prevejam a possibilidade de utilização de recursos públicos nos eventos institucionais, “não estabelecem, de maneira textual, que podem ser utilizados recursos públicos para aquisição de bebidas alcoólicas nestes eventos. Todavia, as orientações internas são no sentido de que tal prática é permitida”.
As maiores despesas com bebida alcoólica
O total de doações ao Comando da 3ª Região Militar chegou a R$ 222 mil. As doações para as unidades militares em Santana do Livramento, na fronteira com o Uruguai, somaram R$ 190 mil. O segundo maior lote foi para o 3º Batalhão de Suprimentos, em Nova Santa Rita, no valor de R$ 99,5 mil. O 9º Batalhão de Infantaria Mecanizada, de Pelotas, recebeu bebidas avaliadas em 80 mil. Uma das doações para o 25º Grupo de Artilharia de Campanha, em Bagé, chegou a 57 mil. No total, essa unidade recebeu R$ 72 mil.
No sítio ComprasNet do Governo Federal, o promotor militar também identificou compras de bebidas por algumas unidades militares em 2017 e 2018. O 25º Grupo de Artilharia de Bagé, por exemplo, comprou 600 garrafas de cerveja por R$ 3,2 mil – R$ 5,3 a unidade – em junho de 2017. A bebida foi servida nas comemorações da Semana da Pátria e na passagem de comando. Já o 5º Regimento de Cavalaria Mecanizada, de Quaraí, adquiriu 1.085 cervejas latão por R$ 3,7 mil, em maio de 2018, para comemorar o Dia da Arma de Cavalaria.”
“Uísque envelhecido para os generais
A distribuição das bebidas nas festas não é muito democrática. O Ministério Público Militar destaca que, nas festividades militares, o congraçamento costuma ser feito dentro dos círculos. Soldados, cabos, sargentos e subtenentes, no círculo das praças. Tenentes, capitães, majores e coronéis, no círculo dos oficiais. E oficiais-generais, que possuem seu próprio círculo.
“Por óbvio, há uma distinção na qualidade das bebidas servidas em razão do círculo do militar, sendo comum, por exemplo, que as bebidas destiladas sejam servidas apenas no círculo dos oficiais, sendo reservado às maiores autoridades militares presentes àquela de maior tempo de envelhecimento”, observa Arpini.
O promotor acrescenta que as mercadorias consideradas perdidas pela Receita Federal, inclusive as bebidas alcoólicas, incorporam-se ao patrimônio público e devem ter destinação que atenda ao interesse público. É natural, por exemplo, que bens apreendidos sejam doados a órgãos públicos, como ocorre, por exemplo, com computadores. Evita-se, assim, a aquisição dos mesmos com recursos públicos, permitindo que os mesmos possam ter outra destinação.
“Todavia, é sabido que a Receita Federal realiza regularmente leilões de bens apreendidos, inclusive de bebidas alcoólicas, sendo que os recursos arrecadados entram na conta única do Tesouro e podem ser usados para satisfazer o interesse público. Logo, é falacioso eventual argumento que estas caríssimas bebidas alcoólicas não teriam destinação adequada. Poder-se-ia leiloá-las”, argumenta o promotor.
Convescotes regados a bebidas
Ele prossegue: “não basta apenas o ato ser revestido de aparente legalidade, ele tem que estar dentro do senso comum da coletividade. Aqueles atos que o extrapolam não podem prosperar. Cristalino ser manifestamente absurdo servidores públicos realizarem convescotes regados a bebidas alcoólicas às custas do Erário, o qual tem gigantes déficits anuais”.
O promotor entende que os recursos públicos utilizados para a compra/doação de bebidas alcoólicas poderiam ter outra destinação, visando ao interesse público, razão de ser do Estado: “Todavia, parece óbvio que a correção de rumo requer a interferência do Poder Judiciário, pois não ocorrerá por iniciativa própria das Forças Armadas. Altas autoridades militares, inclusive o Ministro da Defesa, beneficiam-se desta situação e não se tem notícia de que há estudos para cancelá-la”.
“Não se nega a importância da realização de ‘festividades e eventos comemorativos’ no ambiente militar, os quais reforçam princípios basilares da vida castrense, como a hierarquia e a disciplina. Celebrar Tamandaré, Caxias e Santos Dumont é manter viva a bela história de cada Força. Todavia, o que não pode se prolongar é o uso inadequado de recursos públicos nestas festividades”, conclui o promotor.”
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