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The Intercept: Dallagnol teve encontro secreto com banqueiros

O procurador Deltan Dallagnol teve um encontro privado com banqueiros e investidores mais influentes do Brasil e do exterior, em São Paulo, acertado com a empresa XP Investimentos. O vazamento dos diálogos de Dallagnol, obtidos pelo Intercept, foi divulgado na noite desta sexta-feira (26) através do programa O É da Coisa, de Reinaldo Azevedo, na rádio BandNews. No dia 17 de maio do ano passado, a assessora da XP, Débora Santos, acertou com o procurador que o encontro não seria uma palestra, mas um “um encontro privado, com compromisso de confidencialidade”, com um “público mais seleto”, segundo Débora. A XP disse ainda a Dallgnol que já havia feito um evento semelhante com o ministro do STF, Luiz Fux. Apesar de Dallganol questionar se o evento seria remunerado, não há confirmação se ele recebeu por isso.

Deu no Intercept

O procurador Deltan Dallagnol foi o destaque de um evento secreto com representantes dos bancos e investidores mais influentes do Brasil e do exterior. O encontro foi organizado pela XP Investimentos em junho de 2018. A representante da XP que contactou o coordenador da força-tarefa da Lava Jato prometeu que o bate-papo seria “privado, com compromisso de confidencialidade”, e destacou que já havia feito um evento parecido com o ministro do Supremo Luiz Fux: “não saiu nenhuma nota na imprensa”, garantiu.

Dallagnol aceitou e pediu que a XP conversasse com a agência que organiza os eventos pagos do procurador, a Star Palestras, que acabou coordenando a contratação. O Intercept já revelou, com base nos chats secretos da Lava Jato, que Deltan Dallagnol disse ter faturado quase R$ 400 mil com palestras e livros em 2018. Entre as empresas que pagaram pela presença do procurador, está uma investigada pela própria Lava Jato. No caso da XP, não está claro se a ida do procurador foi remunerada.

Dallagnol e seus colegas discutiram, no Telegram, o potencial risco para suas imagens ao se sentarem com banqueiros, mas acabaram decidindo que valia a pena. “Achamos que há risco sim, mas que o risco tá bem pago rs”, escreveu Dallagnol em um chat privado com seu colega na força-tarefa, o procurador Roberson Pozzobon, em fevereiro de 2018. Pozzobon pediu um tempo: “Mas de fato é nessa questao dos bancos que a coisa é mais sensível mesmo. Vamos conversar com calma depois”.

Reuniões secretas com banqueiros já provocaram polêmicas com vários políticos e funcionários públicos em outros países. Nos EUA, por exemplo, a recusa de Hillary Clinton em publicar transcrições de seus discursosremunerados para bancos de investimento de Wall Street — e o timing de doações feitas a sua fundação filantrópica — se tornou uma linha de ataque forte e recorrente contra sua campanha fracassada pela presidência em 2016. Eventualmente, algumas das transcrições foram vazadas e publicadas pelo WikiLeaks. A prática de palestras remuneradas é vedada por entidades como o Departamento de Justiça dos EUA e o Tribunal Penal Internacional.

Os detalhes sobre o evento com Dallagnol, realizado no dia 13 de junho de 2018 no escritório da XP, em São Paulo, são relatados em conversas privadas que fazem parte do pacote de mensagens que começamos a revelar no último dia 9 de junho. O material reúne conversas mantidas pelos procuradores da Lava Jato em vários grupos do aplicativo Telegram desde 2014.

Intercept, junto com a Folha de S.Paulo, revelou este mês um plano de Dallagnol para lucrar com palestras junto com Roberson Pozzobon, contando com a ajuda de suas esposas. “Vamos organizar congressos e eventos e lucrar, ok? É um bom jeito de aproveitar nosso networking e visibilidade”, falou Dallagnol em um chat com sua esposa.

‘NÃO SAIU NENHUMA NOTA NA IMPRENSA’

O CONVITE DA XP INVESTIMENTOS chegou a Dallagnol via Débora Santos, que se apresenta como “consultora/ analista de política e Judiciário” da empresa. No começo da conversa, ela diz que é esposa de Eduardo Pelella, que era o chefe de gabinete e braço direito de Rodrigo Janot quando Procurador-Geral da República. Antes de trabalhar na XP, Santos era assessora particular do Ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no STF.

“Queria te convidar para um bate papo com investidores brasileiros e estrangeiros aqui em SP”, escreveu Santos. Dallagnol explicou que já tinha um evento agendado com a XP e pediu para Santos entrar em contato com sua secretária, mas mostrou mais interesse após a consultora explicar a natureza do evento. “Seria um público mais seleto. CEOs e tesoureiros dos grandes bancos brasileiros e internacionais”, ela detalhou. “Me passa uma lista de quem são?”, pediu Dallagnol.

XP e Dallagnol não confirmaram os participantes do evento para o Intercept, mas na lista de convidados havia bancos que já foram investigados pela Lava Jato. Depois da explicação do evento, os dois discutiram a logística e a data:

O ministro Fux não respondeu ao Intercept. Já os ministros Barroso e Moraes negaram ter participado em eventos do tipo.

Quatro dias depois, Dallagnol perguntou sobre um possível cachê.

Àquela altura, o procurador já sabia muito bem seu valor no mercado de palestras. Em várias conversas anteriores, Dallagnol discutiu a remuneração de outras figuras públicas – ele queria estabelecer seu próprio preço. Em um documento intitulado “Projeto palestras.docx”, criado em dezembro de 2015 e editado pela última vez em fevereiro de 2016, Dallagnol anotou três conversas relevantes:

Sobre as palestras pagas:
– SUPRIMIDO do Markets Group: Com certeza, Dr Dallagnol. Na verdade, quase todas as autoridades cobram para dar palestra. O Joaquim Barbosa, por exemplo, cobra 70 mil reais por palestra. O FHC, 360 mil. Se eles cobram, é porque tem quem pague. Pedro Malan, Mailson da Nobrega… Por ai vai. Empresas como a minha não pagam palestrantes, pois organizar conferências é a nossa atividade-fim. Mas sei que investment banks costumam trazer palestrantes de peso para falar para investidores e costumam pagar por isso.
– SUPRIMIDO da Star: FHC cobraria cento e poucos mil; Joaquim Barbosa, 99 mil. Ricardo Amorim, 34.600. Uma iniciante que está com ela, 6 mil.
– Orlando: colega do MP que participou do CDC viajou fazendo muitas palestras, cobrando por isso.

A XP se recusou a confirmar a existência do evento secreto ou de pagamentos a Dallagnol por sua participação. A Star Palestras, que agencia os eventos do procurador, respondeu que os dados sobre clientes são privados e “por isso não fornecemos informações”. Ainda afirmou que “se conduz em sua atividade segundo a lei e a ética”.

Mas é certo que o evento secreto aconteceu. Com a aprovação da XP, Dallagnol levou um integrante da Transparência Internacional. A organização, que se descreve como “dedicada à luta contra a corrupção”, juntou-se aos procuradores da força-tarefa para criar as “Novas Medidas contra a Corrupção”, e confirmou que Guilherme Donega, consultor do Programa de Integridade em Mercados Emergentes, esteve presente e falou sobre a iniciativa.

Perguntado sobre o conflito ético de reuniões privadas de procuradores – possivelmente remuneradas – com bancos, a Transparência Internacional respondeu que “devem ser evitadas atividades de qualquer tipo – mesmo as privadas – que possam comprometer a integridade, equidade e imparcialidade necessárias à função que exercem”. “Em caso de dúvida, recomenda-se que esta seja levada a um órgão competente para um parecer prévio”, acrescentou a entidade, que informou ainda que Donega não foi remunerado por sua participação.

‘LULA NÃO PODE DAR PALESTRA, PROCURADOR QUE GANHA SUPER SALÁRIO PODE. . .’

Um ano antes do encontro secreto com grandes investidores, Dallagnol já tinha dado uma palestra numa conferência da XP Investimentos. Ele recebeu R$ 33.250. O evento aconteceu quando as palestras do procurador já eram foco de muito escrutínio da imprensa e do próprio Ministério Público.

A preocupação, à época, era tanta que um assessor sugeriu que seria uma boa ideia barrar a imprensa dos eventos em São Paulo e no Rio:

Dias depois, a corregedoria do Ministério Público abriu uma investigação após a imprensa descobrir que uma agência estava pedindo até R$ 40 mil por palestras do procurador. Ele afirmou que recebeu R$ 219 mil por eventos no ano anterior. A Associação Nacional de Procuradores da República soltou uma nota em defesa de Dallagnol.

O que não se sabia, até agora, e que os chats da Vaza Jato revelam, é que o próprio Dallagnol editou e aprovou a nota em apoio a si mesmo antes da publicação. O procurador debateu o texto em conversas privadas com a procuradora e diretora cultural da ANPR, Lívia Tinoco. Além de mandar a nota para aprovação de Deltan, Tinoco repassou informações de bastidores para o procurador, antecipando o resultado da investigação contra ele: “não vai dar em nada”.

Tinoco estava certa: a investigação sobre a comercialização das palestras de Dallagnol foi arquivada menos de dois meses depois.

A ANPR e a corregedoria não comentaram esta reportagem.

XP, A CLIENTE FIEL. ‘NÃO É SHOW???’

À época, Dallagnol passou várias horas conversando com seus assessores de comunicação para tentar conter os danos públicos à sua reputação causados pelas palestras. Ele queria criar uma estratégia para responder aos jornalistas, mas parecia não entender exatamente os riscos da decisão.

Os assessores conseguiram convencê-lo a não responder aos críticos nas redes. O procurador queria postar uma mensagem em que deixava claro que fazia “o que quiser com o dinheiro das minhas palestras”. Indignado com o que chamou de “acusações absurdas”, Dallagnol desafiava os políticos críticos a ele a mostrar que doavam “para a sociedade seu dinheiro”, como ele afirmava fazer, em vez de “drenar recursos públicos”. Terminou: “Então, podemos começar a conversar”.

Em nenhum momento nos chats Dallagnol cogitou parar de receber para palestrar. Apesar das críticas, da investigação na corregedoria, das matérias jornalísticas e do risco à sua reputação relatado pela assessoria, Dallagnol e seus colegas continuavam empolgados com a perspectiva de novas palestras remuneradas. Em fevereiro de 2018, – depois da palestra pública na XP e antes do encontro secreto com os bancos – o procurador relatou a Roberson Pozzobon um novo convite da XP e pareceu se importar pouco com as considerações éticas e as consequências para sua imagem.

Pozzobon e Dallagnol aceitaram o convite e participaram do evento ao lado dos colegas Carlos Fernando dos Santos Lima e Diogo Castor de Mattos.

A força-tarefa da Lava Jato não comentou o conteúdo da reportagem e enviou sua resposta padrão: “não reconhece as mensagens que têm sido atribuídas a seus integrantes”, que “pautam sua conduta pela lei e pela ética”.

‘É QUE FIZ PALESTRA PRA ELES.’

Ironicamente, palestras remuneradas constituíram uma peça central no argumento da força-tarefa, sob o comando de Dallagnol, para a quebra de sigilo fiscal e bancário do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na sua decisão autorizando a quebra, o então juiz Sergio Moro escreveu que os valores altos — mesmo sem indício de crime — eram suficientes para criar “dúvidas” e justificar a investigação: “Não se pode concluir pela ilicitude dessas transferências, mas é forçoso reconhecer que tratam-se de valores vultosos para doações e palestras, o que, no contexto do esquema criminoso da Petrobras, gera dúvidas sobre a generosidade das aludidas empresas e autoriza pelo menos o aprofundamento das investigações.” As palestras de Lula também geraram bastante atenção da imprensa.

O código de ética do Ministério Público brasileiro é mais ameno do que o de muitos de seus pares estrangeiros. O Gabinete do Procurador do Tribunal Penal Internacional, por exemplo, veda a seus membros “aceitar remuneração de qualquer fonte externa para qualquer publicação, palestra externa ou outro ato que esteja relacionado aos propósitos, atividades ou interesses da Corte, como taxa de palestras, honorário ou outro abono”. O Departamento de Justiça dos EUA também proíbe este tipo de atuação por parte de seus procuradores e outros funcionários:

“Geralmente, um funcionário não pode ser [financeiramente] recompensado por falas ou textos que se relacionem com seus deveres oficiais. Um assunto se relaciona com as funções oficiais de um funcionário se uma parte significativa trata de um tema que foi atribuído ao empregado atualmente designado ou no último ano; qualquer política, programa ou operação em curso ou anunciada do Departamento…”

O Departamento de Justiça também estipula que “um funcionário é proibido de participar de qualquer assunto em que tenha interesse financeiro”. Na sua primeira palestra para a XP sobre “ética e Lava Jato”, Dallagnol brincou abertamente sobre o fato de possuir ações da Petrobras e do BTG Pactual na Bolsa.

‘Se não estiver, vou fazer, como fizemos tb na XP… agora se estiver no radar, não’

Essas regulações internacionais existem não apenas para diminuir o risco de corrupção nas entidades, mas — de igual importância — para evitar a possibilidade de percepção de corrupção. “A percepção pública da ética dos funcionários públicos é extremamente importante”, explica um livro didático sobre corrupção global endossado pela ONU e pela Transparência Internacional. “Se o público acreditar, mesmo que erroneamente, que os funcionários públicos são antiéticos, as instituições democráticas sofrerão com a erosão da confiança pública.”

A ombudsman do Banco Central da Europa pediu no ano passado que os líderes da instituição parassem de participar de encontros fechados com grandes bancos privados. Ela argumentou que a nova medida “inegavelmente ajudaria a reforçar a confiança do público no BCE”.

Ao criar regras rígidas, as instituições evitam situações em que seus funcionários possam ser tentados a flexibilizar normas éticas, mesmo que violações flagrantes não ocorram. Além disso, tentam impedir que a população enxergue funcionários públicos como pessoas de valores “flexíveis”, a depender do pagamento.

Em alguns casos, Dallagnol e sua equipe claramente se mostraram cientes de potenciais armadilhas éticas em trabalhos remunerados por terceiros e tentaram evitar aceitar dinheiro de entidades que estavam sob investigação da Lava Jato.

Mas o conceito de “influência” pode ser mais difuso. Em novembro de 2017, um assessor de comunicação de Dallagnol avisou que havia chegado “um pedido da Federação Nacional dos Combustíveis para fazer uma entrevista”, mas acrescentou que a publicação era pequena: “Não tem repercussão, seria mais para “ganhar ? ? pontos com o pessoal do setor, se interessar.” Dallagnol respondeu: “to na dúvida se vale a pena falar algo”, e continuou: “É que fiz palestra pra eles. Eles mandaram uma lista enorme de perguntas. Pedi pra mandarem 3 ou 4 que respondo rs”. A entrevista, aparentemente, não aconteceu.

Após a palestra secreta na XP Investimentos, seu contato com a empresa, Débora Santos, enviou uma série de perguntas em off para Dallagnol, aproveitando o relacionamento estreitado no encontro. “Olá, Deltan. Uma ajuda. Em off total, como vc avalia a decisão do Supremo de proibir as conduções coercitivas?”, perguntou Santos em 14 de junho de 2018. Deltan respondeu, cauteloso: “postei no tt de madrugada até… atacando pilares da LJ… como Fachin colocou, esse papo de garantias individuais é um discurso pra proteger oligarquias. Coisa de capitalismo de compadrio”. Em fevereiro de 2019, a contratante fez uma outra pergunta no Telegram: “Oi Deltan. Tudo bom. Em off, quais as impressões de vcs sobre o novo juiz da LJ? Pode embarreirar os trabalhos? Vcs já se conheciam?” A XP parecia querer cobrar a conta, buscando acesso privilegiado junto ao procurador. Dallagnol, desta vez, não respondeu.

No mesmo documento em que anotara, anos atrás, os valores de palestras cobrados por figurões da República, Dallagnol mapeou os “próximos passos” de sua carreira de palestrante e escreveu uma nota para si mesmo. Ele registrou: “Acho que onde eu posso agregar hoje é treinamento em setor de compliance e eventualmente ética empresarial, mas precisaria estudar mais ética… complicado.” O estudo não teria feito mal.

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