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“A podridão chegou à superfície, temos que acabar com o silêncio e o esquecimento.”

Nesta entrevista ao site norte-americano Women&Hollywood, a jovem cineasta brasileira Petra Costa revela os conflitos e as dificuldades para realizar seu filme “Democracia em vertigem”, sobre o golpe contra Dilma Rousseff, documentário ovacionado pelo público na pré-estreia no Sundance Festival.

Petra Costa é uma cineasta brasileira cujo trabalho engloba tanto a ficção como a não-ficção. Seu primeiro filme, “Elena”, estreou no Festival Internacional de Cinema de Amsterdã. Seu segundo filme, “Olmo e a gaivota”, estreou em Locarno. “The Edge of democracy” (“Democracia em vertigem”) estreou em janeiro no Festival Sundance de Cinema.

Women&Hollywood: Descreva o filme para nós em suas próprias palavras.

Petra Costa: “Democracia em vertigem” é uma jornada pessoal política sobre como eu assisti meu país, o Brasil, cair em desordem, como tantas outras democracias em todo o mundo. A história veio até mim de uma forma quase operística. Testemunhei em primeira mão o impeachment da presidente Dilma Rousseff, a primeira mulher presidente do Brasil; a ascensão de seu vice-presidente conservador Michel Temer; a prisão de Lula, um dos líderes mais populares da América Latina; e os acontecimentos dramáticos do país nas eleições mais recentes.

Essa queda espetacularmente rápida veio quando o Brasil tinha finalmente se afirmado como um poder democrático no palco mundial. Meus pais lutaram contra a ditadura e dedicaram muito de suas vidas ao estabelecimento da democracia brasileira; tendo crescido com o seu modelo, achei que tinha sorte de finalmente estar colhendo os frutos da sua luta. Mas de repente tudo começou a desabar.

As tensões de classe que estavam construindo há anos explodiram, inclusive na minha própria família. Na verdade, enquanto fazia o filme eu percebi como minha família estava mais profundamente interligada com a crise política do país do que eu já tinha imaginado.

O filme é um olhar para o poder, o desejo de fazer mudança, e a desilusão de ver estruturas políticas se movendo para ter a certeza de que tudo vai ficar o mesmo.

W&H: O que te atraiu nesta história?

PC: Há algo que eu digo no filme sobre ter a mesma idade que a democracia brasileira e como eu pensei que nos nossos 30 anos nós ambos estaria em pé, em terreno sólido. Por volta de 2013, comecei a perceber que esse chão não era tão sólido como eu imaginava. Mas só se tornou verdadeiramente claro para mim no início de 2016, quando testemunhei um protesto maciço pedindo o impeachment da Dilma.

O que eu vi lá foi tão intenso que decidi filmar e, desde então, entrei em um buraco de coelho que durou 1001 noites. Esse filme nasce de um susto, uma sensação profunda de vertigem, e de um desejo de entender o que faz um país virar para dentro. Tentei trazer isso para a tela o mais cinematograficamente possível, e imitar o jogaço político que se desenrolou na minha frente.

W&H: O que você quer que as pessoas pensem sobre quando eles estão saindo do teatro?

PC: O que eu realmente espero é que os públicos vejam esse filme capazes de decidir com a sua própria mente sobre o que está acontecendo no Brasil. Eu tenho o meu próprio ponto de vista mas mesmo isso mudou e desenvolveu muito no making of do filme. Espero que possa ajudar as pessoas a entender um pouco da extrema complexidade e confusão em torno desta história.

Para mim, “Democracia em vertigem” toca um tabu falando a verdade ao poder. No Brasil você poderia falar de política, mas só se ficasse na superfície. Havia um sentido de “não criticar a elite do país, principalmente se você faz parte disso”, e “não criticar a esquerda do país – se você a denunciar, você vai dar força para o outro lado”.

Agora que tudo foi aberto, e tudo o que estava podre chegou à superfície, a imposição do silêncio e do esquecimento foi suspensa. Podemos finalmente dar uma boa olhada no espelho e ver o que está em jogo. Creio que é nosso dever parar a destruição das nossas instituições democráticas antes que seja tarde demais.

W&H: Qual foi o maior desafio em fazer o filme?

PC: Esse filme me traz para um novo lugar, tanto artisticamente quanto em termos de assunto-objeto. Os meus filmes anteriores têm sido retratos íntimos de indivíduos e “Democracia em vertigem” ainda é isso, mas com indivíduos no coração de uma grande história de notícias globais e políticas. Tem sido fascinante, mas desafiador a cada passo. Definitivamente foi o desafio mais difícil que eu já enfrentei.

Para tentar destilar as informações, tive que tentar entender cada camada da história – e cada camada foi extremamente complexa – da investigação da Lava Jato, à paisagem política do Congresso e ao Senado, a economia, a história, a política. Foi um buraco de coelho sem fim.

A parte mais difícil foi lidar com o nível pessoal de dor que esta história trouxe para mim e para todos os meus próximos.

W&H: Como você conseguiu financiar o seu filme? Compartilhe algumas informações sobre como você conseguiu o fazer o filme.

PC: Sabíamos que manter este documentário ferozmente independente era crucial, por isso começamos a captar fundos fora do Brasil. Tivemos tido muita sorte em ser apoiado por Tribeca, Sundance e Bertha Doc Society, entre outros, e depois começamos a trabalhar com a equipe da Netflix, que acreditamos que é o distribuidor ideal para este filme em uma plataforma global.

W&H: O que te inspirou a tornar-te um cineasta?

PC: Eu tive dificuldade em escolher uma carreira, já que fui seduzida fortemente por áreas diferentes. Adorei teatro, mais tarde me apaixonei por antropologia, que me deu as ferramentas para entender muito sobre o meu país, e fiquei sempre intrigada com a psicologia. Acho que só consegui me contentar com o cinema, pois era uma área onde todos os meus interesses poderiam convergir.

W&H: Qual é o melhor e pior conselho que você recebeu?

PC: O melhor conselho foi uma declaração que li de Nicolas Cage, onde ele disse: “Não há receita para o sucesso, mas há uma receita para o fracasso – tentar agradar os outros”.

O pior conselho que ouvi foi de um diretor de teatro masculino, quando pretendia fazer o filme “Elena”. Disse a ele que tinha dificuldade em jogar a minha personagem, uma adolescente suicida, porque a minha irmã tinha tirado a própria vida. Ele disse: “Você deveria ver um psicólogo, isso não é tema para dramaturgia”. Discordo. Eu acho que essa é a matéria mais importante quando você está lidando com a vida das pessoas de uma forma artística – você deveria ter empatia sobre como ela pessoa de forma mais íntima em suas vidas.

W&H: Que conselho você tem para outros diretores femininos?

PC: Seja teimosa. Ou, como dizia o Che Guevara, “seja forte, mas sem nunca perder a ternura”.

W&H: Qual é seu filme favorito feito por uma mulher? E por que?

PC: Tenho que dizer dois: “Beau travail” de Claire Denis, e “As praias de Agnès” de Agnès Varda.

“Beau travail” foi o primeiro filme que vi que olhou para os corpos dos homens do jeito que uma mulher olha para os corpos dos homens. E também olhou para os corpos das mulheres do jeito um homem olha o corpo de uma mulher – e faz assim de uma forma muito complexa. O filme lida com conflitos de raça e poder, mas ao mesmo tempo é sensível e poético.

“As praias de Agnès” me ensinaram a liberdade de cinema. Varda relata sua vida através dos seus próprios filmes e ao fazer assim dá a si mesma a liberdade de fazer tudo – inclusive se colocando dentro do estômago de uma baleia.

W&H: Faz pouco mais de um ano que começou o acerto de contas de Hollywood com a indústria cinematográfica global. Que diferenças você notou desde o lançamento de movimentos como #metoo e #kendall?

PC: Eu estava há muito tempo à espera que tudo isso acontecesse. Uma das razões que eu tenho trabalhado em dirigir ao invés de atuar foi o nível de opressão que senti como atriz feminina. E eu sei muito intimamente as dores de ser vítima de abuso. Minha irmã foi vítima de abuso quando tinha 14 anos nas mãos do seu diretor de teatro e isso definitivamente influenciou o suicídio dela.

Penso que é fundamental que as mulheres continuem a expressar a opressão que enfrentam – o que é claro que é muito mais difícil para as mulheres que não têm poder. Eu acho que o Brasil ainda está atrasado nesse movimento e espero que chegue mais fortemente aqui em breve.

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