Brasil

Vinte anos antes de Brumadinho, advogados tentaram impedir que FHC entregasse a Vale

Os dois grandes crimes da Vale/Samarco/BHP – as tragédias de Mariana e Brumadinho – merecem lembrar o que o Brasil fez para impedir que FHC entregasse a empresa ao mercado, a preço de banana.

Em maio de 1997 um grupo liderado pelo jurista Celso Antônio Bandeira de Mello, e composto por Goffredo da Silva Telles Júnior, Dalmo de Abreu Dallari, Fabio Konder Comparato, Eros Roberto Grau, Sérgio Sérvulo Da Cunha, Weida Zancaner e Américo Lacombe propôs Ação Popular “contra ato ilegal e lesivo ao patrimônio público perpetrado pelo BNDES, consistente na pretendida alienação irregular de ações da Companhia Vale Do Rio Doce a ser efetuada por leilão previsto para o dia 29 do corrente mês.” Mais musculoso que a Justiça, o Mercado venceu.

Leia a seguir a íntegra da ação popular, é uma aula de Direito e de Democracia.

“Exmo. Sr. Dr. Juiz da 6ª Vara Federal da Seção Judiciária de São Paulo

CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, brasileiro, divorciado, advogado, eleitor, advogando em causa própria e como patrono dos demais autores GOFFREDO CARLOS DA SILVA TELLES, que também se assina GOFFREDO DA SILVA TELLES JÚNIOR, brasileiro, casado, eleitor, advogado; DALMO DE ABREU DALLARI, brasileiro, casado, eleitor, advogado; FABIO KONDER COMPARATO, brasileiro, casado, eleitor, advogado; EROS ROBERTO GRAU, brasileiro, casado, eleitor, advogado; SÉRGIO SÉRVULO DA CUNHA, brasileiro, casado, eleitor, advogado; WEIDA ZANCANER, brasileira, separada judicialmente, eleitora, advogada e AMÉRICO LOURENÇO MASSET LACOMBE, brasileiro, divorciado, eleitor, advogado, vêm, com base na lei nº 4.717, de 29.06.65, propor AÇÃO POPULAR, com pedido de MEDIDA LIMINAR, contra ato ilegal e lesivo ao patrimônio público perpetrado pelo BNDES, autarquia federal com sede no Rio de Janeiro, à av. República do Chile, nº 100, consistente na pretendida alienação irregular de ações da COMPANHIA VALE DO RIO DOCE a ser efetuada por leilão previsto para o dia 29 do corrente mês.

DOS FATOS

1. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), em pretenso cumprimento à lei nº 8.031, de 12.04.90 e à medida provisória nº 1.481-46, de 14.02.97, atual medida provisória 1.481-48, publicada em 16.04.97, que modificou a citada lei, fez publicar, no Diário Oficial da União de 06 de março de 1997, o edital nº PND-A-01/97 CVRD (docs. 9 e 10) para a venda das ações da Cia. Vale do Rio Doce, a ser efetivada em três etapas, a primeira das quais no dia 29 do corrente, mediante leilão de 40 a 45% do pacote acionário da empresa.

2. Dita Cia. é uma empresa estatal -sociedade de economia mista- que lidera um conglomerado de 34 empresas (entre próprias, controladas ou coligadas).
Trata-se da maior exportadora de minério de ferro do mundo, detendo concessões de lavra e autorizações de pesquisa em diversas áreas do país, das quais parte significativa na Amazônia, perfazendo em seu todo uma área de cerca de 16 milhões de hectares (aproximadamente 4 x o Estado do Rio de Janeiro).

Exerce direitos de exploração minerária sobre reservas em que se incluem, como montantes comprovados, 41 bilhões de toneladas de ferro (suficientes para cerca de 400 anos de manutenção do atual ritmo exportador), 994 milhões/ton. de níquel, 67 milhões/ton. de caulim, 9 milhões/ton. de zinco, 1,8 milhão/ton. de urânio, 1 milhão/ton. de titânio, 510 mil/ton. de tungstênio, 60 mil/ton. de nióbio e 563/ton. de ouro. As concessões são dadas sem prazo, isto é, até o esgotamento das jazidas.

A CVRD possui e opera portos, detendo a maior frota de navios graneleiros do mundo, assim como 1.790 km. de ferrovias que se incluem entre as mais modernas do país e transporta cerca de dois milhões de passageiros/ano, sendo responsável por 64% da carga transportada por trens no Brasil. Dispõe de 580 mil hectares de florestas comerciais replantadas, matéria prima para sua produção de 400 mil toneladas/ano de celulose. É do próprio edital (itens 6.5.1. a 6.5.9) que se extraem os dados até aqui mencionados.

A receita bruta anual do Grupo CVRD é da ordem de 5,5 bilhões. A CVRD aplica 8% de seu lucro líquido em programas sociais para centenas de municípios (saúde pública, saneamento básico, preservação do patrimônio histórico, criação de distritos industriais, formação profissional de crianças e jovens e atividades afins).

No primeiro trimestre de 1997, obteve a receita líquida de 693 milhões de dólares, isto é, 10% superior ao resultado do mesmo período no ano de 1996, que foi de 626 milhões de US$ (doc. 11 – “Gazeta Mercantil” de 17/4/97).

Esta é a Cia. Vale do Rio Doce.

Seu lucro líquido em 1996 foi de 608 milhões de reais (doc. 12 – “Correio Brasiliense de 7/3/97) valor este que, em menos de cinco anos, acoberta o que a União aceita receber no leilão a ser realizado dia 29 próximo futuro, caso as ações ali postas à venda sejam adquiridas pelo preço que ela já declarou suficiente, isto é, o preço mínimo fixado no edital.

DO DIREITO

3. A “venda” prevista no edital está sendo perpetrada com manifesta ilegitimidade, por encontrar-se em flagrante desacordo com a medida “provisória” que alterou a lei nº 8.031, de 12/4/90. Ou seja: o certame licitatório em causa ofende -e por várias vezes- suas disposições, pelo que incorre nos arts. 2º, letras “b”, “d” e “e”, da lei nº 4.717, de 29/6/65. Incide também no art. 4º da mesma lei, notadamente inciso V, letra “a”, tudo conforme se demonstra a seguir.

Veja-se.

4. O art. 12 da medida provisória nº 1.481-46, de 14/2/97, estabelece:

“Para salvaguarda do conhecimento público das condições em que se processará a alienação do controle acionário de empresa, inclusive instituição financeira incluída no Programa Nacional de Desestatização, assim como de sua situação econômica, financeira e operacional, será dada ampla divulgação das informações necessárias, mediante a publicação de edital, no Diário Oficial da União e em jornais de notória circulação nacional, do qual constarão, pelo menos, os seguintes elementos:

a) justificativa da privatização, indicando o percentual do capital social a ser alienado;

b) data e ato que determinou a constituição da empresa originariamente estatal, ou, se estatizada, data, ato e motivos que determinaram sua estatização;

c) passivo das sociedades de curto e de longo prazo;

d) situação econômico-financeira da sociedade, especificando lucros ou prejuízos, endividamento interno e externo, nos cinco últimos exercícios;

e) pagamento de dividendos à União Federal ou a sociedades por esta controladas direta ou indiretamente pela União Federal, nos últimos quinze anos;

f) sumário dos estudos de avaliação;

g) critério do valor de alienação, com base nos estudos de avaliação;

h) valor mínimo da participação a ser alienada;

i) a indicação, se for o caso, de que será criada ação de classe especial e os poderes nela compreendidos.

Antes de apontar as ofensas a este artigo é útil considerar, liminarmente, seu alcance.

5. À simples leitura do art. 12 percebe-se, de imediato, que o sentido da regra não é o de reclamar cumprimento da função inerente aos “editais de licitação”, qual, a de proporcionar aos que possam se interessar em acorrer ao certame conhecimento das condições estabelecidas para concorrerem e ofertarem, disputando-o com prévia ciência dos termos que o regem.

Não. O sentido do artigo 12 é manifestamente o de permitir que a sociedade, os cidadãos, o público em geral, possam verificar que a privatização daquela específica empresa atende a razões prezáveis, vai se desenvolver com a adequada transparência e que, pois, não comparecem motivos para objetá-la. Em suma: visa assegurar o princípio da publicidade.

6. Tanto é óbvio ter sido este o propósito do art. 12 (transparência no que se pretende efetuar e prestação de contas ao público quanto à procedência da decisão tomada) que o sobredito preceptivo exige informações absolutamente irrelevantes para fins de um procedimento licitatório, mas que, inversamente, são cruciais para atender o objetivo apontado como o que lhe é pertinente. Isto é, exige:

1) “justificativa da privatização”, ou seja, exposição do conjunto de motivos que levaram o Poder Público a privatizar aquela específica empresa que esteja em causa e, pois, demonstração da ausência de razões ponderáveis que a infirmariam ou, pelo menos, a enunciação de argumentos explicativos do porque devem, ao juízo do Poder Público, preponderar os concernentes à alienação da empresa.

Com efeito, a única explicação lógica de tal exigência só pode ser esta mesma apontada, pois a lei 8.032, modificada pela própria MP em questão, já indicara, nos arts. 1º e 2º, tanto os objetivos do Programa Nacional de Privatização, quanto as entidades que podiam ser objeto de desestatização. Se, em despeito disto, ainda impôs “justificativa da privatização”, é meridianamente claro que pretendeu: a) que fosse justificada a privatização daquela empresa a ser “in casu” desestatizada; b) não se satisfez com o simples fato de que existe um Programa Nacional voltado a tais objetivos e indicativo de quais as entidades privatizáveis; c) pretendeu que a sociedade como um todo, pudesse acompanhar e fiscalizar as razões determinantes de cada privatização.

É claro que nos editais de licitação é irrelevante a exposição aos eventuais interessados em afluírem à disputa os motivos que justificam a conduta administrativa consistente em adquirir, locar ou alienar bens, realizar obras ou serviços. E é claro, de outra parte, que tudo isto é indispensável se o que se deseja é oferecer ao corpo social explicações de uma dada conduta.

2) “se estatizada, data, ato e motivos que determinaram sua estatização”. Ainda aqui é igualmente óbvio que em nada interessa aos licitantes saber porque determinada atividade algum dia foi assumida pelo governo. É óbvio, ao contrário, que se o desejado pela norma é propiciar ao público em geral amplo conhecimento das razões que motivam o Estado a agir do modo a que se propõe, interessa profundamente à sociedade com um todo saber porque o Estado considerou importante assumir determinada empresa e passou depois a reputar que esta não mais interessa aos objetivos que lhe haviam determinado a estatização.

3) “pagamento de dividendos à União Federal ou a sociedades por esta controladas direta ou indiretamente pela União Federal, nos últimos quinze anos”. Vê-se igualmente que é irrelevante para os licitantes o montante de dividendos que nestes últimos quinze anos a União auferiu. Inversamente, se o dispositivo legal que impõe tal esclarecimento almeja proporcionar aos cidadãos a ocasião de conferirem o bom fundamento do propósito de desestatizá-la, interessa e muito saber se o Poder Público vem dela colhendo proveitos econômicos apreciáveis.

7. Verifica-se, então, que o edital a que se refere o art. 12 tem, para além de qualquer dúvida ou entredúvida, o objetivo claro, manifesto e indiscutível de garantir a todo o corpo social um amplo conhecimento das razões determinantes da alienação de uma dada empresa, para que este possa fiscalizar e avaliar a justeza da medida, com as correlatas consequências, inclusive os ônus políticos que daí derivem para quem haja decidido dela se desfazer. Note-se que tal encargo foi posto à compita do Poder Público, isto é, não se pretendeu deixá-lo ao sabor meramente das informações ou direcionamento ensejado pelos rumos que a “mídia” adotasse quanto a cada caso de privatização.

Assim, se o BNDES pretendesse em um único edital cumprir, a um só tempo, as obrigações que resultavam do art. 12 da MP e as que lhe são impostas pelas lei nºs. 8.666 e 9.074 (atinentes aos editais de licitação), evidentemente teria que proceder a uma divulgação, a uma justificativa e, de modo geral, aos esclarecimentos impostos pelas regras do citado art. 12 da lei 8.031 com a redação que lhe deu a MP, não lhe bastando, então, atender tão só ao que resultava das referidas leis 8.666 e 9.074.

7. Feitas estas considerações pode-se evidenciar, de modo explosivamente claro, que o art. 12, “caput”, da medida provisória foi flagrantemente desrespeitado e distorcido o sentido que, conforme visto, manifestamente possui.

Deveras, inobstante o “caput” do art. 12 imponha publicação em “jornais de notória circulação nacional”, com o fito de ensejar a mais “ampla divulgação das informações” para conhecimento e fiscalização de toda a coletividade, o BNDES correu-se de publicá-los nos diários de maior tiragem e que atingem público variado. Cuidou de fazê-lo em jornais de tiragem muitíssimo menor do que a dos jornais de grande circulação nacional e dentre eles elegeu o Jornal do Comércio do Rio de Janeiro (tiragem máxima de 50 mil exemplares) e um volvido a público especializado, setorial: a Gazeta Mercantil (tiragem de 105.000 exemplares), sendo certo que ambos os jornais têm circulação restrita, não sendo encontráveis em todas as bancas.

Em nada menoscabando estes dois respeitabilíssimos periódicos, o fato é que a “Folha de São Paulo”, com tiragem média de 550.000 exemplares nos dias úteis e 1.100.000 aos domingos (cinco a dez vezes maior do que a da Gazeta Mercantil e 10 a 20 vezes maior que o Jornal do Comércio do RJ), “O Estado de São Paulo”, com tiragem média de 370.000 nos dias úteis e 710.000 aos domingos, “O Globo”, do Rio de Janeiro, com 340.000 nos dias úteis e 700.000 aos domingos, bem como o “Jornal do Brasil”, do Rio de Janeiro, com 180.000 exemplares, superam amplissimamente a tiragem média dos jornais escolhidos pelo BNDES. Como se vê, dentre os ora citados, o de menor tiragem, tem-na 80% maior do que a do jornal de maior tiragem escolhido para divulgação do Edital da venda da CVRD.

Desde já, requer-se a expedição de ofícios aos periódicos supra mencionados, para que confirmem a este d. Juízo suas respectivas tiragens médias nos dias úteis e aos domingos.

Assim, não só não foi cumprida a exigência de proceder a uma “ampla divulgação das informações”, tornando-a facilmente acessível ao público em geral, mediante publicação em “jornais de notória circulação nacional”. Nenhum dos dois jornais eleitos pelo BNDES é encontrado em todas as bancas e nenhum deles tem larga circulação no país (o Jornal do Comércio do RJ, fora dele, só com grande dificuldade é encontrável por quem o procure). Além disto, ao eleger tais veículos de imprensa, é manifesto que, por este meio ardiloso, buscou trair a finalidade da norma, impedir que o cumprimento de seus objetivos pudesse se realizar.

É evidente, então, que o BNDES burlou o disposto no art. 12 “caput” da medida provisória, procurou costear os objetivos dele, no que ofendeu o art. 2º da lei de ação popular, incorrendo em vício de forma (letra b), o qual “consiste na omissão ou na observância incompleta ou irregular de formalidades indispensáveis à existência ou seriedade do ato” (parágrafo único, letra “b”, do mesmo artigo).

Burlou também a letra “e” do artigo em questão, incorrendo em vício muito desprimoroso para o administrador público, isto é, em desvio de poder ou desvio de finalidade, que ocorre “quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente na regra de competência (parágrafo único, letra “e”, do art. 2º). É que, por esta via pretensamente astuciosa, buscou escamotear do público em geral aquilo que a MP reputou lhe ser devido ou minimizar o mais amplo conhecimento a que este fazia jus.

O desvio de poder com tal intenção é vício muito feio e particularmente vitando. O agente atua à capucha, à sorrelfa, de modo soez, embuçado sob capuz de disfarce -para usar uma expressão de HELY LOPES MEIRELLES (1)- a pretexto de cumprir a lei. Tem razão o eminente CAIO TÁCITO, quando, ao tratar desta patologia, anotou que “a ilegalidade mais grave é a que se oculta sob a aparência de legitimidade. A violação maliciosa encobre os abusos de direito com a capa de virtual pureza” (2). É que o ato se apresenta como um sepulcro caiado, cuja podridão e pestilência só se revelam quando se penetra em sua intimidade, pois o agente atua à falsa fé, dado que finge cumprir a lei, mas seu procedimento tem outra face que forceja por ocultar, já que é constituída de má-morte e orientada para escopos censuráveis.

Acresça-se a isto que o art. 12, “caput”, pretendeu, como visto, uma divulgação para o público em geral, em pelo menos dois jornais (afora o Diário Oficial da União). Ora, a Gazeta Mercantil é jornal volvido a um público específico, a um segmento altamente qualificado da população e mesmo o Jornal do Comércio tem um viés direcionado. Assim, de todo modo, é certo que o art. 12 foi violado por não ter ocorrido divulgação dos dados nele impostos em (pelo menos) dois jornais de público leitor diversificado. Donde o ato incidiu também, por mais esta razão, nos mesmos vícios profligados no art. 2º, letras “b” e “e” da lei 4.717.

Estas, as duas primeiras ilegitimidades no procedimento de venda da CVRD.

8. Ocorre que foi violado, outrossim -e já agora de maneira escandalosa-, o disposto na letra “a” do mesmo artigo 12 da MP.

De acordo com a referida letra, era obrigatório constasse do edital esclarecedor a “justificativa da privatização da empresa a ser alienada”. Sem embargo, o edital publicado pelo BNDES não forneceu justificativa alguma da venda a ser feita.

Reconhece-se, boamente, a situação difícil em que se encontrava aquele órgão, pois não teria mesmo como produzir uma justificativa minimamente consistente e que, pois, se tentasse fazê-lo, acabaria por demonstrar, de modo indireto, a completa ausência de razões prestantes para isto, de maneira que, ao fim e ao cabo, restaria, a mau de seu grado, revelada a sensatez, o disparate, a irresponsabilidade, o caráter gravemente lesivo a interesses nacionais básicos e o comprometimento do futuro do país. É que, como ao diante se dirá, desde Domingos Fernandes Calabar não se intentou ainda ato tão adverso ao Brasil quanto o que se substancia na pretendida venda da CVRD.

Assim, é compreensível que o BNDES haja se esquivado em cumprir o art. 12, “a”, da medida provisória nº 1.481-46, de 14/2/97 (medida esta, expedida para atenuar as cautelas muito mais enérgicas que constavam da lei nº 8.031, de 12/4/90, residentes notadamente em seus arts. 11, 13, bem como 4º, I). Tal fato, entretanto, não o escusa pelo descumprimento da regra a que estava obrigado e em nada diminui a ilegalidade de alienação a ser feita em descompasso com dever jurídico impostergável.

Deveras, o BNDES, embora não tendo como motivar a venda, acreditou, simploriamente, que sua falta não seria tão aparatosa, tão visível, se, ao menos, colocasse no edital um item com a rubrica “Justificativa para a Desestatização. E assim o fez, mas, espantosamente -o que tornou a situação literalmente grotesca-, nela incluiu única, exclusivamente (absolutamente nada mais) a seguinte frase, que vale transcrever pelo caráter hilário que conferiu à ilegalidade em apreço: “A desestatização da CVRD enquadra-se nos objetivos do PND previstos no art. 1º da lei”.

9. Não se cometerá a indelicadeza de supor que os responsáveis pelo edital sejam tão ignorantes, tão desconhecedores dos mais primários rudimentos do direito administrativo, que não saibam que a autoridade necessita referir não apenas a base legal em que se quer estribada mas também os fatos ou circunstância sobre os quais se apóia e, quando houver discrição, a relação de pertinência lógica entre seu supedâneo fático e a medida tomada, de maneira a se poder compreender sua idoneidade para lograr a finalidade legal.

Faltando a enunciação da regra jurídica proposta como aplicanda, não se tem como saber ser o ato é adequado, ou seja, se corresponde à competência utilizada; omitindo-se a enunciação dos fatos e situações à vista dos quais se está procedendo de dado modo, não se terá como controlar a própria existência material de um motivo para ele e, menos ainda seu ajustamento à hipótese normativa; carecendo de fundamentação esclarecedora do porquê se agiu da maneira tal ou qual não haverá como reconhecer-se, nos casos de discrição, se houve ou não razão prestante para justificar o ato e, pois, se ele era, deveras, confortado pelo sistema normativo. Com efeito, como contestar a validade de um ato se os seus motivos, se sua razão de ser, permanecer ignorada, oculta? Como impugná-lo, como submetê-lo ao crivo jurisdicional, se forem, desde logo, desconhecidas as bases em que está assentado?

É sabido e ressabido que a justificativa de um ato, ou seja, sua motivação, compreende a indicação (a) da regra de direito habilitante; (b) dos fatos em que o agente se estribou e (c) a relação de pertinência lógica entre os fatos ocorridos e a providência tomada, sempre que esta não seja mera e obrigatória consequência legal da simples existência dos fatos. Daí a precisa lição da eminente professora e juíza do Tribunal Regional Federal da 3¦ Região, LUCIA VALLE FIGUEIREDO:

“Constitui-se a motivação na exposição administrativa das razões que levaram à prática do ato. Na explicitação das circunstâncias de fato que, ajustadas às hipóteses normativas, determinaram a prática do ato.

Por isso mesmo não se pode conceber que por motivação se entenda a mera alusão dos dispositivos legais. De verdade, os dispositivos legais apontados não servem a justificar a prática de qualquer ato.

A norma descreve situações que, se acontecidas, demandam a prática do ato.

A motivação, embora possa ser sucinta, deve demonstrar -de maneira cabal- o “iter” percorrido pelo administrador para chegar à prática do ato” (3).

E logo, à pág. seguinte:

“A motivação é elemento essencial para o controle, sobretudo para o controle judicial.

Não haveria possibilidade de aferir se o ato se conteve dentro da competência administrativa, dentro da razoabilidade, que deve nortear toda competência, caso não sejam explicitadas as razões condutoras do provimento emanado”.

Em preciosa monografia sobre o motivo e a motivação dos atos administrativos, o prof. e desembargador ANTONIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA faz uma resenha de opiniões de juristas eminentes e emite sua própria lição nos seguintes termos:

“Zanobini, por exemplo, entende que `a motivação contém as condições de ordem jurídica, técnica e administrativa que justificam a emanação do ato e com base nos quais se determinou a vontade da Administração’. Para Stassinopoulos, a motivação do ato administrativo é a `menção das circunstâncias ou das considerações que fundaram o ato e que se relacionam, ora à oportunidade, ora a sua legalidade’. Idêntica é a posição de Diez, que a propósito invoca a autoridade de Stassinopoulos. É de salientar, ainda, com a mesma tendência, a orientação adotada por CAssagne, que declaradamente se inclina por um conceito mais amplo, para incluir na motivação a indicação da finalidade do ato, além de seus motivos.

A nosso ver, acompanhando Taruffo, a idéia de motivação deve partir da constatação de que ela constitui um discurso, ou seja um conjunto de proposições ligadas entre si e inseridas num contexto autonomamente identificável. Considerada como signo linguístico complexo, em sentido próprio, a motivação se caracteriza por sua intencionalidade, apresentando-se como um discurso destinado a justificar racionalmente o ato motivado” (4).

10. Poder-se-ia colacionar uma legião de juristas da maior suposição enunciando todos a mesma coisa. Por isto se disse que seria impróprio presumir que os responsáveis pelo edital ignorassem noções tão comezinhas. É de crer, então, que eles é que estiveram assentados na pressuposição de que as demais pessoas, o público em geral, os leitores do edital e os juízes é que padeceriam desta absoluta indigência de conhecimentos jurídicos e que, pois, poderiam ser enganados através do expediente rebarbativo que adotaram.

Eis, pois, a terceira ilegalidade que infirma a pretendida venda da CVRD: violação flagrante, manifesta, cabal, da letra “a” do art. 12 da medida provisória nº 1.481-46, de 14/2/97.

Com isto, uma vez mais, o ato em questão incide na censura do art. 2º (letras “b” e “e”) da lei de ação popular. Ressente-se de vício de forma -caracterizado no parágrafo único, letra “b”, do mesmo artigo como a “omissão ou observância incompleta ou irregular de formalidades indispensáveis à existência ou seriedade do ato” e padece, novamente, em desvio de poder ou de finalidade. Tal vício, caracterizado no parágrafo único, letra “e” do referido artigo 2º, patenteou-se no propósito de procurar iludir o público e costear manhosamente a lei, com a tentativa de fazer crer que fora apresentada a justificativa exigida pelo art. 12, letra “a” da MP.

11. Por força dos vícios apontados, o procedimento contendido nesta ação, encontra-se colhido, desta vez, pelo art. 4º, V, da lei de ação popular, segundo o qual (letra “a”) são também nulos os atos de venda, alheios (caso de “leilão” de ações) à concorrência pública ou administrativa, hoje denominada tomada de preços, quando realizados em “desobediência a normas legais, regulamentares, ou constantes de instruções gerais”. É que o certame foi composto, como se demonstrou, em claríssima desobediência aos dispositivos mencionados da medida provisória nº 1.481-46, de 14/2/97, modificadora da lei nº 8.031, de 12/4/90.

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