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O Supremo às vésperas do AI-5

O querido amigo maranhense Haroldo Sabóia, ex-vereador, ex-deputado estadual e federal e eterno cruzado da luta pela democracia, relembra, em uma saborosa crônica, a tarde vivida cinquenta anos atrás, em uma sessão do STF, às vésperas da decretação, pela ditadura, do AI-5. Haroldo atualmente é dirigente do PSOL.

12 de dezembro de 1968. Uma tarde inesquecível no plenário do Supremo Tribunal Federal. O mundo jurídico da Nova Capital assistia, com incontido entusiasmo, a posse, como presidente e vice-presidente da Casa, dos mineiros Gonçalves de Oliveira e Vitor Nunes Leal, derradeiros ministros da Corte nomeados pelo presidente Juscelino Kubitschek, em 1960.

Jovem repórter – um “foca”, em seus 18 anos – da sucursal de O Estado de São Paulo, fazia a cobertura do Ministério da Educação e da Universidade de Brasília naqueles dias efervescentes e, em dezembro, cobria as férias do jornalista responsável pelo Judiciário.

Não poderia jamais imaginar que assistiria a uma sessão histórica da Suprema Corte do meu país.

Pouco antes da sessão solene, o Supremo já surpreendera o país ao ousar estender a Vladimir Palmeira, José Dirceu, Luís Travassos e Antônio Ribas o habeas corpus que concedera no dia anterior, 11 de dezembro, a Franklin Martins e outros quatro líderes estudantis, todos presos em Ibiúna (SP), no proibido Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em outubro.

Após as saudações do presidente, Luis Gallotti, e do Procurador-Geral da República, Décio Miranda, é concedida a palavra ao lendário Heráclito Fontoura de Sobral Pinto, como representante do Conselho Federal da OAB. As palavras daquele advogado, no vigor de seus 75 anos (afinal, ele viveria ainda mais de duas décadas, falecendo aos 98, em 1991) impõem um absoluto silêncio.

“O advogado é um colaborador dos Juízes, dos Tribunais. Nessa qualidade, ele traz para uns e para outros a verdade, na esperança de obter Justiça”, inicia.

“Assim, todas as vezes que um Juiz toma posse, os advogados não podem se desinteressar deste ato porque o magistrado é um trabalhador de boa fé, um trabalhador da normalidade contra a simulação, contra a violência e contra, sobretudo, o dolo”, prossegue.

Sobral Pinto condena, nas entrelinhas, a arbitrariedade cometida pelo Regime Militar ao ampliar composição do STF, de 11 para 16 membros, com o propósito de diluir o peso dos ministros nomeados pelos presidentes civis, Juscelino e Jango, eleitos sob a égide da Constituição de 1946.

Entre os presentes, representando o general Costa e Silva, chefe do Executivo, o Ministro da Justiça, Gama e Silva, aliado dos setores mais radicais do regime militar; dois governadores eleitos em 1965, Negrão de Lima, do Rio, e Israel Pinheiro, de Minas Gerais; muitos advogados, jornalistas, funcionários, alguns senadores. Nenhum deputado!

“Nesta hora, cabe ao advogado dizer a estas personalidades, que representam o Poder Judiciário, quão imensa é a sua responsabilidade, quão perigosa é a sua função, porque, equivocadamente, muito depende de sua atuação, de sua lucidez e de sua energia, a atuação de todo o colegiado”. E segue Sobral Pinto:

“Mas, não podemos ignorar que nos encontramos num momento de imensa dificuldade para a Nação, em que poderes da força querem arrancar dos poderes legítimos, como o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, querem arrancar, repito, daqueles que desempenham a função de legisladores e a de Juízes, decisões que não correspondem aos interesses da Nação ou as imposições da Justiça”.

Grande tribuno, o velho Sobral exorta Goncalves de Oliveira e Vitor Nunes Leal – autor do notável “Coronelismo, enxada e voto” – a seguirem o exemplo do presidente da Casa, quando do Golpe de 64. Cita o ministro Álvaro Ribeiro da Costa, que “soube defender o prestígio do Supremo Tribunal Federal, quando a petulância militar quis se opor à decisão proferida por este Tribunal”.

Gama e Silva, ministro linha dura da Justiça, não esconde o seu desconforto, enquanto os velhos pessedistas mineiros, matreiros, por momentos, saboreiam aqueles breves momentos de confraternização democrática. De repente, chegava o então deputado pelo Rio Grande do Sul Paulo Brossard (MDB/RS), que discretamente cochicha algo ao governador Israel Pinheiro.

Israel, rápido e sorrateiro, escreve um bilhete e o envia, pelas mãos de um contínuo, a Sobral Pinto, ainda na tribuna:

“… recebo uma informação jubilosa de que a Câmara dos Deputados acaba de recusar a licença para processar o deputado Marcio Moreira Alves, por 216 votos contra 141”.

“Aí o Supremo veio abaixo! Foi a maior ovação”, contaria Sobral pelo resto de sua vida e, em especial, dez anos depois em célebre entrevista ao Pasquim.

216 votos em defesa do mandato de Márcio Moreira Alves! Entre eles, o de meu pai, Pires de Saboia, então deputado conservador da Arena maranhense.

A festa durou pouco! Um dia depois, reunidos na sala do Evandro Carlos de Andrade, na Sucursal do Estadão, em Brasília, ouvíamos todos, da redação, a leitura do tenebroso texto do AI–5, que conferia poderes absurdos ao General Costa e Silva.

O Congresso Nacional é posto em recesso. Dezenas de parlamentares cassados, milhares de presos por todo o país. No dia 14, em Goiânia, o próprio Sobral Pinto é preso e logo transferido para os quartéis de Brasília.

Em 16 de janeiro, são compulsoriamente aposentados pelo AI-5, os ministros Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. Dois dias depois, Antonio Gonçalves de Oliveira renuncia à Presidência do Supremo, em solidariedade aos colegas afastados. Em seguida, pede aposentadoria. Sua atitude é seguida pelo ministro Lafayette de Andrade.

O AI-5 deixou um longo e tenebroso rastro de mortes, torturas, prisões, banimentos e toda a sorte de violência à cidadania. Mas toda a poeira de violência que sacudiu não conseguiu apagar o exemplo de coragem e de compromisso com as liberdades de advogados como Sobral Pinto e de juízes como Goncalves de Oliveira e Vitor Nunes Leal.

Juízes que, com Oliveira, Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva e muitos e muitos outros, escreveram capítulos de resistência na história da Suprema Corte brasileira, que, antes e depois daquele 12 de dezembro de 1968, vivera períodos por demais controvertidos.

50 anos depois, que este 12 de dezembro de 2018 nos fortaleça na luta pela defesa e consolidação do Estado democrático de Direito.

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