Renato Ortiz (*)
Neste artigo, o sociólogo e professor da Unicamp, Renato Ortiz, traça um paralelo entre o célebre livro de Oscar Wilde e o momento atual do Brasil: “No centro da sala, fixado em um cavalete de pé, estava o retrato de um país jovem e extraordinário, mas sua beleza vinha manchada pela feiúra e a podridão dos acontecimentos, os olhos tinham uma expressão cruel e repugnante”.
Uma fina coberta de linho encobria sua alma deformada, as pústulas espalhadas no rosto enrugado e cínico. O retrato não devia ser exibido em público, a deformidade à vista exigia o seu ocultamento, ele jazia naquela sala vazia dos porões do congresso nacional retirado do olhar curioso dos passantes.
Ali, a verdadeira natureza do que se queria eludir manifestava-se livremente: miséria, desemprego, corrupção, injustiça, preconceito. Cada uma dessas qualidades nefastas podia realizar-se ao abrigo da luz do dia, o porão era o seu refúgio, o lugar que lhes permitia existir; tolhidas pela exiguidade do espaço, a tela descoberta refletia no espelho o sorriso sincero e defeituoso de um mundo a ser esquecido.
Alguns representantes do povo, homens cuidadosamente escolhidos entre tantos outros, vinham às vezes visitar o retrato, sentavam-se nos assentos improvisados à sua frente e embevecidos contemplavam sua própria essência. Era o único momento em que podiam defrontar-se com seu verdadeiro Eu, deixavam para trás a máscara de suas fraquezas e desonra.
Lá fora, as virtudes exibidas em público eram outras: igualdade, riqueza, emprego, moralidade, justiça. Nas luzes da vida cotidiana vicejava a retidão invertida do que se aninhava nas trevas, aí, a beleza desse jovem país afirmava-se na exuberância e esplendor. A antinomia entre claro/obscuro, virtude/vulgaridade, ética/corrupção, perdurou por muitos anos, um acordo tácito permitiu a convivência desses ideais excludentes.
Muitos tiveram a ilusão que os atributos positivos dessa fotografia em sépia estivessem ao abrigo da corrosão do tempo, a eternidade seria o seu destino.
Esqueceram-se que sua denegação permanecia intocada no calabouço daquela sala exígua. Um dia, alguns desses homens que se reuniam nas catacumbas, decidiram desvendar definitivamente o retrato, retiraram a fina malha de linho que o encobria e fixaram com fascinação a escuridão de suas almas.
Fascinados com a experiência resolveram retirá-lo da obscuridade, o colocaram no centro do congresso nacional para ser contemplado pela multidão. O que se encontrava submerso tornou-se explícito, inteligível.
Entretanto, para sua enorme surpresa, uma inesperada sensação de mal estar apoderou-se das pessoas, subitamente elas se viram diante de algo atroz, a obscenidade evidente afastou-as da ilusão a que tinham se acostumado, uma visão menos agressiva e devastadora de si mesmo. Foi nesse momento que o tempo parou, uma sensação de imobilidade e torpor se impôs. Silenciosa e inexorável.
Antes a dicotomia entre a imagem pública e o retrato destorcido permitia o contraste entre os valores discrepantes; malgrado a denegação da realidade, uma esperança subreptícia repousava nessa contradição. A dialética do contraste entre o claro e o escuro, a beleza e a feiúra, alimentava a imaginação, talvez, um dia, as vicissitudes poderiam se rebelar contra a estupidez e a mediocridade.
Quando o retrato de Dorian Gray tornou-se público, entronizado no centro do país, as esperanças se dissiparam, não havia mais contradição a ser superada. As pessoas se viram assim diante da iminência dos fatos, paralisados no tempo o porão e a rua tinham se encontrado, fundindo-se numa totalidade única.
O destino ingrato e desafortunado trouxe o mal estar à tona, com ele o sabor amargo da vergonha e asco.
(*)Renato Ortiz é professor da Unicamp, sociólogo pela Université Paris VIII e doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales.
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Moacyr medeiros alves says:
Cada vez acho mais atual, inteligente e realista a piada que alguém fez sobre o trabalho de confecção do planeta terra, quando um anjo, dirigindo-se ao Criador, perguntou se Ele não estava favorecendo demais o Brasil, dando a ele um bonito e grande território, fértil e isento de desastres naturais comuns a outras regiões do globo terrestre, e o Criador, como que gozando seu interlocutor, respondeu: “Mas você vai ver o povinho que eu vou pôr lá!”
PERICLES PEGADO CORTEZ says:
Tenho me lembrado dela a todo instante. Coitado do Darcy que sonhava com a formação de um povo brasileiro que contribuiria para a construção de uma nova humanidade. O Di Massio também terá que revisitar as suas crenças e esperanças sobre o Brasil e o seu povo.
C.Poivre says:
Vai piorar com a recente reedição do AI-5 por Temer que, possivelmente, trocou a edição do decreto pela sua não prisão ao sair do governo. Alguém duvida?
https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/637601367/decreto-9527-18
Carlos Valentin says:
Com o Temer e muitos outros, deveria fazer como o Mossad no filme Munique do Spielberg, mandar buscar…