Carlos Alberto Dória*
Judas, Calabar e Cabo Anselmo são alguns entre tantos personagens pusilânimes da história. Os heróis, mesmo os “heróis bandidos” (ver Hobsbawm, Rebeldes primitivos), seriam invencíveis se não fossem os traidores. Jesus, Marighella, Lampião. Daí o valor moral de “não entregar” ninguém. Corisco só se “entregou na morte” de parabellum na mão.
A honra é privilégio daqueles que estão mais próximos de deus ou seu representante (o rei). Essa hierarquia se estabelece no campo de batalha. O código da cavalaria resulta em honra e desonra, hierarquizando os homens através da luta (ver Montesquieu, O espírito das leis). A honra não é estável: pode-se perdê-la e recupera-la através da luta, ao contrário da virtude que por ser nata só se pode perder. A virtude é a “honra” feminina e por ser irrecuperável precisa estar sob proteção e vigilância permanente dos homens da família (pai, irmãos), pois a perda da virtude significa que os homens falharam na sua defesa, desonrando-se. Assim era na sociedade de cortes.
Modernamente entre nós é a Corte Suprema que distribui a honra entre os homens. E a batalha se transferiu para o terreno jurídico. Mas os brasileiros criaram um mecanismo estranho de sua administração. Na Constituição de 1988 instituíram o Ministério Público que, por ser independente, isto é, não prestar contas a ninguém, tem um poder de imposição inédito em qualquer matéria normativa. Administra do meio ambiente à “honra” das pessoas. Faz, é claro, suas alianças para isso. Do Ibama ao judiciário. E assim produziu uma revolução de costumes.
Como a delação, essa coisa abjeta, que nos faz até hoje lembrar de Judas ou do cabo Anselmo, pode ser “premiada”? Como pode o poder público promover a desonra conferindo valor positivo à traição? O pusilânime vive o seu momento de glória diante das TVs. E a grande questão deixou de ser quem será o próximo comprovadamente culpado para ser quem será o próximo pusilânime.
Certamente houve uma reviravolta moral na sociedade ao aplaudir a delação e o seu prêmio, acolher seus resultados mesmo que não se consiga reunir provas visto que, como na inquisição, a confissão é o suficiente para livrar o sujeito que tinha o corpo tomado pelo demônio do fogo purificador. Os mesmos valores justificavam a tortura, como hoje a prisão indefinida sem julgamento, como forma de “auxiliar” a vítima na sua confissão. Espera-se, no fim da confissão-delação a verdade. E tudo o que aparece nesse momento recebe o status de verdade.
A fé é a única forma de conhecimento que não necessita amparo nos fatos. Os que defendiam a honra como um valor, e por isso não entregavam ninguém, perderam a parada para os que têm fé no pecado. A confissão ao pé da fogueira é a comprovação da culpa. Trata-se da pentecostalização da esfera pública onde o Ministério Público tornou-se uma espécie de supremo sacerdote na televangelização.
Ter estado com o demônio, ou ter seu número de telefone no arquivo do celular, basta para incriminar quem seja. Qualquer reunião é um Aquelarre potencial. Suspeitíssimo. Os mesmos liberais que apoiam os autos de fé promovidos em Curitiba silenciam diante desse totalitarismo que avança sobre a vida pública.
Mas não nos iludamos. Enquanto os brasileiros não abandonarem a fé, que propiciaria a volta da razão, o futuro continuará um inferno e a vida do simples mortal um purgatório.
(*) Carlos Alberto Dória é Doutor em Sociologia pela Unicamp e colaborador do Nocaute.
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José Eduardo Garcia de Souza says:
Como o articulista bem coloca, a fé não necessita de amparo nos fatos. Mas é aí mesmo que reside o ponto fraco da sua argumentação no que toca às chamadas “delações premiadas” da Lava-jato. É evidente que há pusilanimidade entre aqueles que ontem roubavam e hoje delatam quem com eles roubou ou que dos seus roubos se beneficiou. E é justamente por isso que hoje vê-se que entre quem delata e quem é delatado não houve fé, mas simplesmente interesses. Enquanto tais interesses eram convergentes e mutuamente proveitosos, houve o silêncio. E como os interesses falaram mais alto do que qualquer fé que pudesse ter existido – inclusive a ponto de negá-la por completo –, na hora da verdade eles voltaram falar mais alto.
Seria melhor para todos – delatados, delatores e a sociedade e geral – que tivesse havido princípios e fé genuínos para que os interesses não tivessem prevalecido, tanto na hora de subverter a fé quanto no momento de pagar por tal subversão.
AFONSO H V GUEDES says:
A crítica ao artigo, de lucidez cristalina ( o artigo) é o que chamo de “dar nó em pingo d’água.” Por essas e outras que arranquei de meu dicionário as palavra fé e acreditar com os sentidos que remetem a ausência de evidências.
C.Poivre says:
Fora da pauta:
Ciro Gomes não é confiável. Se algum dia fosse eleito presidente certamente faria uma campanha com um discurso de Esquerda e governaria com a direita. Ele é que presta um desserviço à democracia entrando no jogo dos golpistas para destruir Lula. O ex-Presidente só teve um partido na vida, o PT, enquanto Ciro Gomes já passou por sete e seu partido votou majoritariamente a favor do Golpe de Estado que depôs de forma ilegítima a Presidenta Dilma. Nunca votei e jamais votarei num candidato que não tem lado, não tem partido e se alinha aos golpistas na campanha contra Lula. Que vantagem ele está levando para fazer isso?
Vicente says:
Eu imputaria toda a desonra e toda a culpa aos delatores. Eles representam bem o dono da gaiola, que para atrair suas presas, instala um alçapão com um “chamariz” dentro. Ao prender sua vítima, o agora delator tinha total domínio da situação (era o dono da gaiola, e foi quem armou o alçapão). O agora delatado era um inocente preso pelas circunstâncias, e sem forças para sair da gaiola, se rende aos desejos de seu escravizador. Preso o escravizador por força de novo entendimento (caixa dois sempre existiu, mas não era considerado o demônio), este decide delatar o seu escravo, agora ameaçado de novos tipos de prisão. Solto o desonrado delator (este não preza a honra, mas dinheiro) e preso o delatado sob novas condições, o status quo volta ao seu ponto original. A relação escravizador-escravizado não se altera, mas este é o objetivo final da elite.