
Jerry Adriani, ao fundo no batismo da primeira filha de Raul Seixas.
Em outubro de 1967 passava por Salvador o cantor Jerry Adriani, contratado para um show no aristocrático Club Bahiano de Tênis, juntamente com a musa da Bossa Nova, Nara Leão, e com o humorista Chico Anysio. Elevado à condição de estrela nacional pela Jovem Guarda, Adriani era considerado cafona pelos ouvintes mais sofisticados, mas fazia enorme sucesso com o grande público. No dia do espetáculo um funcionário do clube procurou o cantor no hotel com a notícia de que sua participação fora cancelada por uma razão inacreditável:
– A banda que o acompanha tem vários músicos pretos, e no Club Bahiano de Tênis preto não entra.
Era isso mesmo que ele estava ouvindo. Embora desde 1951 estivesse em vigor no Brasil a Lei Afonso Arinos, que qualificava como crime a discriminação racial, “preto não entrava no Bahiano nem pela porta da cozinha”, como denunciaria muitos anos depois a canção Tradição, de outro baiano ilustre, o compositor Gilberto Gil. O preconceito adquiria traços ainda mais cruéis por se tratar de um clube instalado na Bahia, um Estado em que mais de 70 por cento da população são negros e pardos. Em vez de chamar a polícia, o empresário encarregado do show preferiu contratar outra banda. A primeira de que se lembrou foi a finada Os Panteras, de Raul Seixas, que nos últimos meses de vida mudara de nome para The Panthers. Localizado em casa durante uma soneca, Raul adorou a ideia de ressuscitar o conjunto e saiu em seguida pela cidade em busca de seus antigos acompanhantes, o baixista Mariano Lanat, o guitarrista Perinho Albuquerque e o baterista Antônio Carlos Castro, o “Carleba”, todos brancos. A improvisação acabou dando certo e o The Panthers deixou o palco do clube sob aplausos. No fim do espetáculo Nara Leão cochichou no ouvido de Jerry Adriani:
– Essa banda que te acompanhou é maravilhosa. Por que você não chama esse pessoal pra tocar com você?
Ao ouvir, naquela mesma noite, o convite do cantor para que The Panthers o acompanhasse em uma turnê pelo Norte-Nordeste, a começar na semana seguinte, Raul Seixas ficou eletrizado. Poder excursionar com um artista de projeção nacional, como Jerry Adriani, era uma daquelas bênçãos que o destino não costuma colocar duas vezes no caminho de alguém. Mas ele sabia também que aceitar significava jogar para o alto o casamento com Edith, e isso era uma aposta alta demais. Embora lamentando, teve que recusar o convite:
– Seria uma honra fazer a temporada com você, mas se me ausentar de casa agora, meu casamento acaba na lua-de-mel.
Interessado de verdade na companhia da banda que acabara de conhecer, Jerry Adriani dobrou a parada:
– Se é esse o problema, está resolvido: sua mulher é convidada da produção, leve-a com você na excursão.
Rebatizada pela segunda vez, agora com o nome de Raulzito e os Panteras, a banda saiu pelo Brasil adentro. Além de propiciar ao casal uma viagem divertida e inusitada, a turnê deu resultados tão satisfatórios que no final Jerry Adriani convenceu Raul a mudar-se para o Rio com todo o grupo e se profissionalizar como músico. No começo de 1968 estavam todos instalados em Copacabana para uma aventura que não teria final feliz. Embora tivesse conseguido gravar pela Odeon o LP Raulzito e os Panteras, as dificuldades eram tantas que depois de dois anos o único trabalho que apareceu foi tocar como banda de apoio nos shows do próprio Adriani. Houve momentos em que Raul teve que pedir dinheiro emprestado ao pai para pagar o aluguel da casa em que viviam ele, Edith e os demais componentes da Raulzito e os Panteras. Retornar à Bahia pela porta dos fundos foi um golpe duro para todos e especialmente para Raul, o líder do grupo, mas não havia outra escolha. A contragosto, voltou às aulas de inglês e já dava a carreira de músico como encerrada quando recebeu uma proposta de Evandro Ribeiro, diretor da CBS, para voltar a trabalhar no Rio – não para ser band leader, mas como executivo da área de produção musical. Seu nome tinha sido sugerido à direção da gravadora por Jerry Adriani, interessado que estava em trazer o novo amigo de volta para o eixo Rio-São Paulo, centro da produção musical brasileira. Tentado a acertar as contas com a cidade que o derrotara, Raul não pensou duas vezes. Pediu a Edith que pusesse a mudança num caminhão e dias depois já dava expediente, de paletó e gravata, no poluído centro velho do Rio, onde ficavam os escritórios da CBS. Em poucos meses já era o produtor musical de discos de nomes importantes, a começar do próprio Adriani.
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Prof Adrianov Zhukov says:
Que história reveladora. Mas, e os músicos negros que não puderam tocar na Bahia??? Na hora de se lutar contra verdades discriminatórias, muitos se calam e se acovardam…..
Nilma says:
Exatamente, prof. Adrianov! Nenhuma demonstração de solidariedade com os músicos negros, que – pelo visto – ficaram sem emprego.
Addison says:
Pois é,
História boa.
Mas e a banda de músicos negros ?
Foi dispensada ? Não seguiu para o restante da excursão?
Os caras eram fracos assim ?
Também fiquei curioso.
Paulo da Matha says:
Esse era, infelizmente, o consenso na Bahia. Jorge Amado, em quase todos os seus romances denuncia essa excrescência, exatamente no lugar mais preto que tem nesse preto Brasil de tantas e tantas cores. Só branco é que não tem por aqui.
Celso says:
Eu me fiz a mesma pergunta, Adrianov. Interessante que a classe média brasileira, mesmo a esquerda, nunca (com rara exceções) movimentou-se para por em prática a democracia racial. Aceitam músicos e atletas talentosos como iguais e marcam os demais como gente a ser delicadamente evitada ou ignorada. Um fato como esse, mesmo na década de 1960, era por demais grotesco. Submeter-se a imposição de um clube segregacionista é bastante revelador da cultura de submissão. Não há nada de nobre nas atitudes de Adriani, que não tinha nada de italiano. Apenas um incidente na vida.
wanderer dorothy says:
pensei a mesma coisa, e lembrei da atitude diferente de músicos como stevie wonder.
Anilton Moccio says:
E continuamos nos acovardando até hoje frente aos nossos problemas, triste sina deste país maravilhoso.
Nogueira says:
Pergunte pro Fernando Holiday…
Alair Machado da Fonseca says:
Que isso estou surpreso, um artista do nível do Raul Seixas ser levantado pelo Jerry Adriani, que talvez ser o menos competente da Jovem Guarda. Raul é um ASTRO de primeira grandeza.
cristina silveira says:
pois é, a lei afonso arinos parece que nunca foi usada será por que ser?a
Raquel dos Santos says:
O texto diz que os músicos da banda de Raul, The Panther, eram todos brancos. Negativo: Perinho Albuquerque é mulato. Ele é irmão de Moacir Albuquerque, guitarrista que já fez parte da banda que acompanhava Caetano Veloso e Gal Costa.
Luciene says:
Isso mesmo, Adrianov Zhukov, o que houve com os músicos negros que não puderam tocar na Bahia e, pelo visto, não tocaram mais na turnê?
Marcelo Paula says:
Só vi uma porca história de racismo
Alex says:
Maravilhosa revelação tardia. Jerri era do bem, um cara bacana que merece todas as homenagens nessa despedida tão triste.
Maria das Graças Viana Freitas says:
Rui Barbosa deve ter se revirado na tumba!!
Paulo Diniz says:
É destino meu irmão!
Grande Jerry Adriani,deu a maior força pro Raulzito.
Vida e sucesso, é o que é gerado da colisão de duas estrelas da grandeza de Jerry Adriani e Raul Seixas.
Edilson Castanheira says:
Homenagem de Jerry para Raul
https://www.youtube.com/watch?v=HXayMOlE7G0
Altamira Simões says:
A narrativas históricas são boas pra descobrimos que no enfrentamento ao racismo poucos brancos são aliados
Que Deus perdoe a omissão de Jerry Adriani
Luiz Antonio Decottignies says:
Eu também gostaria de saber o que foi feito dá solidariedade para com os músicos negros…
Fátima says:
E os músicos negros,ele deixou pra tras sem trabalho, não curti.
Lili Felix says:
O acontecido foi há 50 anos. Não vejo como racismo, ele aproveitou a oportunidade. Se essa oportunidade tivesse escapado, os negros não teriam tocado de qq forma e o q aconteceu depois provavelmente também não. Mania de se ver defeito em qualquer gesto. Hoje temos outra consciência e brigamos por ela…apesar q na maioria das vezes só falamos e não saímos do lugar para mudança alguma.
Gil Guerreiro says:
Morre um grande cantor…fará falta.
E hoje que somos obrigados,a ouvir cada coisa.
O Brasil cada dia mais pobre de grandes cantores e músicas de verdade,atualmente.
Gil Guerreiro says:
A mídia precisa dar oportunidade a quem tem talentos.
Jose Alves de Lima says:
Alair.
Quando Raul Seixas começou,Jerry Adriani já tinha 10 anos de estrada, e continuou até Ontem…
Regiane maia says:
Sobre o apoio de Jerry Adriani ao Raulzito, confirmo que ninguém faz nada sozinho, mesmo os talentosos, precisam de uma ajuda.
Sobre a banda que não pode tocar porque era composta de negros, lembro que, em muitas regiões do pais, existia um racismo terrível em clubes, mesmo depois dessa lei.
Sobre o Jerry se defendeu ou não a banda que não pode tocar, isso em nenhum momento foi dito no texto.
Novamente vejo nos comentários um desprezo pelas pessoas ou cobrança de atitudes que nem sequer sabemos se existiram ou nao. Faz lembrar os vários casos de informações falsas em redes sociais e linchamento e morte de pessoas inocentes.
Luiz da Silva says:
História e textos fantásticos, Fernando. Nunca imaginei que esse encontro alguma vez poderia ter acontecido, pois pareciam ter estilos musicais e personalidades completamente diferentes.
Agefran Costa says:
Mais uma informação: nesta época em que trabalhou como executivo da CBS, Raul compôs para o Jerry Adriani a música Doce, doce amor e, para a Diana, a música Ainda queima a esperança. Poucos sabem que estes dois grandes sucessos da música brasileira foram compostos pro Raul Seixas.
Agefran Costa says:
Mais uma informação: nesta época em que trabalhou como executivo da CBS, Raul compôs para o Gerry Adriani a música Doce, doce amor e, para a Diana, a música Ainda queima a esperança. Poucos sabem que estes dois grandes sucessos da música brasileira foram compostos pro Raul Seixas.