{"id":9639,"date":"2017-07-25T18:23:48","date_gmt":"2017-07-25T21:23:48","guid":{"rendered":"https:\/\/nocaute.blog.br\/?p=9639"},"modified":"2017-07-25T18:23:48","modified_gmt":"2017-07-25T21:23:48","slug":"um-pouco-de-domingo-alzugaray-jornalista-19322017","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/nocaute.blog.br\/2017\/07\/25\/um-pouco-de-domingo-alzugaray-jornalista-19322017\/","title":{"rendered":"Um pouco de Domingo Alzugaray, jornalista (1932\/2017)"},"content":{"rendered":"
Em meados de 1975 Samuel Wainer, o mitol\u00f3gico criador da \u201c\u00daltima Hora\u201d, decidiu se instalar em S\u00e3o Paulo para lan\u00e7ar na pauliceia um novo jornal di\u00e1rio. Batizado de \u201cAqui S\u00e3o Paulo\u201d o tabloide circularia de segunda a s\u00e1bado apenas na capital paulista. O projeto de Wainer tinha uma caracter\u00edstica singular: a cada dia o ve\u00edculo trataria de apenas um assunto. Na segunda-feira era s\u00f3 futebol; na ter\u00e7a, s\u00f3 pol\u00edtica; na quarta, apenas economia e neg\u00f3cios e assim por diante. A semana seria encerrada no s\u00e1bado com uma edi\u00e7\u00e3o dedicada a cultura e variedades, acompanhada de um guia de dicas de programas de teatro, cinema, lan\u00e7amentos de livros, concertos e espet\u00e1culos musicais.
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Lu\u00eds Carta (ao telefone), Domingo Alzugaray (de gravata xadrez) e, \u00e0 direita, Samuel Wainer.<\/em><\/p><\/div>
\nA originalidade da ideia seduziu dois dos mais calejados e festejados publishers brasileiros, Domingo Alzugaray e Lu\u00eds Carta (irm\u00e3o ca\u00e7ula do tamb\u00e9m jornalista Mino Carta). Depois de alcan\u00e7ar o topo da hierarquia da editora Abril, Domingo e Lu\u00eds se juntaram para montar o pr\u00f3prio neg\u00f3cio, parceria que rendeu revistas de grande sucesso como Status, Planeta e, depois, o seman\u00e1rio ISTO\u00c9. Os dois se juntaram a Samuel para tocar o novo projeto, associa\u00e7\u00e3o que rendeu uma empresa cujo nome \u2013 SWDALC, acr\u00f3stico decorrente das iniciais dos s\u00f3cios \u2013 lembrava mais o de um circo russo do que uma editora de jornais.
\nRec\u00e9m demitido da revista Vis\u00e3o, fui chamado pelo trio para dirigir a implanta\u00e7\u00e3o do novo projeto, cuja supervis\u00e3o ficaria a cargo de Samuel, o pai da ideia. Para cuidar da concep\u00e7\u00e3o gr\u00e1fica convidamos um dos mais talentosos artistas da pra\u00e7a, o catal\u00e3o Francesc Petit, o P da DPZ Propaganda. A empresa era pequena e o dinheiro curto, mas Petit apaixonou-se pelo desafio e topou trabalhar com a condi\u00e7\u00e3o de que s\u00f3 seria remunerado quando o neg\u00f3cio come\u00e7asse a dar lucro.
\nEst\u00e1vamos envolvidos na cria\u00e7\u00e3o de zeros, leiautes e bonecos do \u201cAqui S\u00e3o Paulo\u201d quando chegou o Outubro Negro. Em poucas semanas o DOI-CODI prendeu \u2013 e passou a torturar com selvageria \u2013 onze jornalistas, acusados de algum grau de envolvimento com o PCB, o Partido Comunista Brasileiro.
\nNo final da tarde de sexta-feira, dia 24 de outubro, eu examinava capas experimentais do jornal, criadas por Petit e espalhadas sobre minha mesa, quando Lu\u00eds Carta entrou na sala. L\u00edvido, aproximou-se de mim e falou baixinho, quase sussurrando:
\n– Um major e um capit\u00e3o do DOI-CODI est\u00e3o a\u00ed para te prender. O Samuel e o Domingo est\u00e3o conversando com os dois na sala de reuni\u00f5es para dar tempo de voc\u00ea fugir. Caia fora imediatamente e saia pela escada de servi\u00e7o, para evitar cruzar com eles no elevador.
\nNa verdade eu nunca tinha sido filiado ao PCB, mas aquela n\u00e3o era a hora mais apropriada para dar explica\u00e7\u00f5es. Desci aos saltos os quinze andares do pr\u00e9dio em que ficava a SWDALC, na avenida Paulista, retirei do estacionamento na rua Augusta meu surrado Chevette amarelo, toquei para a Cidade Universit\u00e1ria da USP e peguei R\u00fabia, com quem eu era casado. Ela acabara de receber um telefonema da nossa empregada dom\u00e9stica, dona Tere, informando que dois homens do Ex\u00e9rcito tinham estado em casa \u00e0 minha procura. R\u00fabia e eu tratamos de desaparecer.
\nNa manh\u00e3 seguinte o jornalista Vladimir Herzog foi preso pelo DOI-CODI e assassinado durante uma sess\u00e3o de tortura no quartel da rua Tut\u00f3ia.
\nSamuel Wainer morreu alguns anos depois, Lu\u00eds Carta acabou mudando-se para a Espanha (onde morreria em 1994, aos 57 anos), mas minha rela\u00e7\u00e3o com Domingo permaneceu por muito tempo. Quando as vacas emagreciam, era na porta dele que eu batia em busca de freelances jornal\u00edsticos. Mais do que me dar trabalho, Domingo Alzugaray passou a oferecer-me uma generosa gentileza adicional: a cada livro que eu lan\u00e7ava, a principal revista da Editora Tr\u00eas \u2013 a semanal ISTO\u00c9 \u2013 publicava um an\u00fancio de p\u00e1gina inteira. Sem que nunca eu tivesse que pagar por isso. E sem que ele jamais me pedisse nada em troca.
\nToda vez que o encontrava eu repetia para os circunstantes:
\n– Este senhor salvou a minha vida.
\nModesto, Domingo reagia com uma gargalhada:
\n– Quem salvou sua vida foi o destino. O Samuel, o Luigi e eu fomos apenas agentes do destino.
\nCorajoso e generoso, Domingo Alzugaray morreu ontem, aos 84 anos, em S\u00e3o Paulo. Muita tristeza.
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