Brasil

Por 7 x 1, Chapa Dois derrota a situação e vence as eleições na ABI

Em meados de março, Marcelo Auler me ligou aflito: 

– Você já foi sócia da ABI?”

Fui, claro que fui. Ao tempo em que o presidente da Associação Brasileira de Imprensa era Barbosa Lima Sobrinho e (quase) todos os jornalistas da minha geração engajavam-se no sindicato e peleavam em todas as frentes contra a ditadura civil-militar, fui, sim, sócia da ABI. Mas, finda a ditadura, (quase) todos nós fomos cuidar da própria vida. Eu nunca mais ouvi falar da ABI depois dos anos em que lutamos pela redemocratização do país.

Bastião da resistência à ditadura e ao arbítrio, ao lado de entidades da sociedade civil como a OAB, a CNBB, a SBPC e muitas outras, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) desapareceu do cenário político nacional nas últimas décadas. Com mais de um século de existência, a entidade já foi presidida por Prudente de Morais e Barbosa Lima Sobrinho, importantes referências liberais na luta pela redemocratização do país.

Mais recentemente, acabou por se tornar uma entidade assistencialista, conivente com o arbítrio e sem expressão na vida democrática brasileira. O edifício de 12 andares, doado por Getúlio Vargas em 1946, está praticamente abandonado, com belos móveis antigos mas com precária manutenção nos andares ocupados pela entidade. As salas comerciais dos demais andares são pobres e mal ajambradas, razão pela qual há um permanente aviso de “aluga-se” na entrada do prédio. O aspecto geral é de decadência mesmo.

O telefonema de Auler, que já estava há um mês nessa labuta, desencadeou em minha vida quatro meses resfolegantes para tirar a entidade, que eu não pagava há uns 40 anos, das garras de pretensos isentões e de bolsonaristas confessos, para não mencionar os pastores evangélicos fundamentalistas que, seguindo o Plano de poder do famigerado “bispo” Macedo, agora se infiltram em toda instituição distraída. (Ultimamente andam de olho até nos conselhos tutelares municipais, mas essa é outra história.) A ABI estava justamente distraída.

Auler catou no arquivo morto da entidade minha ficha de sócia (e a de muitos outros sócios distraídos como eu) e providenciou pessoalmente a regularização da minha situação (como fez com muitos, muitos outros). Graças ao trabalho sobretudo dele, o número de sócios ativos da ABI elevou-se, em quatro meses, de pouco menos de 270 para pouco mais de 500. A própria receita da ABI em mensalidades subiu de cerca de R$ 9 mil em março para R$ 42 mil em abril.

Três chapas

Havia três chapas disputando a direção da entidade nas eleições previstas para 26 de abril. A Chapa 1, que inicialmente se intitulou “Vladimir Herzog” e foi logo desautorizada por Ivo Herzog, era a da situação, ou seja, era a de Domingos Meirelles, o agora ex-presidente (embora já o fosse quando seu mandato expirou em 13 de maio). A Chapa 2 —“Luta pela democracia”— reuniu membros insatisfeitos da diretoria anterior e um grupo grande de jornalistas do Rio que começou a construir uma chapa do tipo “frente ampla” ainda em fevereiro. E a Chapa 3, que se apropriou do nome de Barbosa Lima Sobrinho, sofreu nove defecções em abril (inclusive do então candidato a presidente, Ivan Proença, cujo grupo acabou votando na Chapa 2) e se viu presidida por Washington Machado, que é também presidente de um “sindicato” de jornalistas que vende contrafações da carteirinha da Fenaj e diplominhas de “cursos de Jornalismo”.

Quando Marcelo Auler me ligou, a Chapa 2 já tinha sido obrigada a recorrer à Justiça só para ter acesso às listagens de associados adimplentes e inadimplentes da ABI. Meirelles recusava-se a entregar essas listas. Foi a única ação impetrada pela Chapa 2. Outras cinco viriam, para suspender, anular ou adiar eleições, quase todas originadas em Domingos Meirelles diretamente, mas nem sempre assinadas por ele. Havia um calendário firmemente estabelecido pela diretoria anterior: Assembleia Geral Ordinária (AGO) no dia 25 de abril e eleições na sexta-feira, dia 26. Arrumei logo a malinha para ir ao Rio, participar da AGO, votar no dia seguinte e ficar lá por uns dias. Doce ilusão.

No meio da AGO, quando já tinha sido eleito presidente da assembleia o Fichel Davit Chargel (sim, o nome é esquisito: ele descende de judeus franco-poloneses e é chamado por todos de Davit), entra no auditório lotado de cabeças brancas um oficial de Justiça (70% dos sócios da ABI têm mais de 59 anos). Entrega ao Domingos Meirelles uma liminar que suspendia a eleição do dia seguinte e instalava o caos. Até porque a ação que resultara na liminar era cria de outra ação, impetrada por dois sócios que queriam porque queriam inscrever uma chapa de apenas 15 nomes na eleição de 2016 (as chapas devem ter 51 candidatos cada uma, porque, além da diretoria executiva, incluem também os conselhos consultivo, deliberativo e fiscal). Por ocasião da liminar, um dos autores já tinha morrido. Era, portanto, iniciativa de um ex-sócio e de um defunto. A Chapa 1 não recorreu da liminar, mas a Chapa 2 sim.

Prédio da Associação Brasileira de Imprensa

Guerra judicial

A tal lawfare que tem sido usada para operações geopolíticas muito mais danosas (o Intercept que o diga), também foi usada neste microcosmo do país em que a ABI se transformou nos últimos cinco meses. Acabei ficando duas semanas no Rio, sempre à espera de que uma decisão judicial finalmente permitisse a eleição. Cada vez em uma vara diferente da Justiça, a Chapa 1 e a Chapa 3 meteram todo tipo de obstáculo diante do livre exercício do voto. O bravo Antero Luiz Cunha, que é jornalista e advogado (e que hoje é o novo diretor de Administração da ABI), enfrentou tudo isso, derrubando as inúmeras liminares absurdas emitidas por juízes e juízas deliberadamente mal informados.

Quando a primeira instância suspendeu as liminares que impediam a eleição, o Davit resolveu usar sua autoridade estatutária como presidente da AGO do dia 25/4 —pelo estatuto, ele permanecia como presidente do processo eleitoral. Reconvocou a mesma AGO para o dia 13 de maio, justamente o dia em que expiravam os mandatos da diretoria executiva, dos conselheiros consultivos e fiscais e de um terço do Conselho Deliberativo. Essa AGO de 13 de maio marcou as eleições de 16 de maio, que ocorreram sem percalços até 15 minutos antes do final. Nesse momento, um oficial de Justiça —mais um!— entrou no recinto de votação e lacrou as urnas.

Esses votos nunca foram contados e certamente também dariam a vitória à Chapa 2, já que a Chapa 1 de Meirelles resolveu boicotar essas eleições. Dessa vez, a iniciativa judicial foi de dois membros paulistas da Chapa 1, Rafael Ventura e Elio Maccafferri. Ainda no sábado, 11 de maio, através do plantão judicial, eles buscaram impedir a assembleia do dia 13, alegando que a convocação da mesma não respeitava o prazo de oito dias. Esqueceram que a AGO já estava instalada e apenas foi convocada a sua continuidade.

O pedido não foi atendido nem pelo juiz plantonista, nem pela titular da 25ª Vara Cível, Admara Falante Schneider. Foram então bater à porta do Desembargador Marcelo Buhatem, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Além de suspender a contagem dos votos, Buhatem também ignorou que a AGO nomeou Davit como gestor da Casa do Jornalista até a apuração dos votos de uma eleição. Sob a alegação de que a ABI estava “acéfala”, Buhatem prorrogou os mandatos da diretoria e dos membros dos Conselhos Deliberativo e Fiscal, vencidos no dia 13. Até agora não entendemos se ele agiu por má fé ou por incompetência mesmo.

Reempossados, os então interventores decidiram convocar novas eleições para 27 de junho, ganhando tempo para se rearticular e na esperança de esvaziar a mobilização da Chapa 2. Em vez disso, a mobilização redobrou e, no dia 27, a Chapa 2 impingiu uma derrota fragorosa ao atraso: fez 221 votos, contra apenas 97 da Chapa 1 de Meirelles e meros 68 da Chapa 3. Paulo Jerônimo de Sousa, o Pagê, é agora o novo presidente da ABI e o próprio Marcelo Auler é diretor de Jornalismo. Arnaldo César Ricci, Vera Perfeito, Cid Benjamin, Rosayne Macedo, Antero Luiz Cunha e Vitor Iório são alguns dos outros membros da nova diretoria, todos da mais alta qualidade.

Festa e mais trabalho

Na própria quinta-feira, dia da eleição, os cariocas foram diretamente da sede da ABI no centro do Rio para o Amarelinho, tradicional boteco que fica ali do lado. No sábado, encheram o Ernesto da Lapa para uma feijoada celebratória. Em São Paulo, os (ainda) poucos membros ativos reuniram-se no bar do Alemão na Av. Antarctica, que outrora era uma verdadeira sucursal do Estadão e da Veja, onde as turbinas eram revertidas depois do fechamento.

Na segunda-feira, dia 2, estavam lá, entre outros, Ricardo Carvalho, indicado pelo Rio para reorganizar o escritório paulista, inoperante há tempos; Lia Ribeiro Dias; Laurindo Leal Filho, o Lalo; Juca Kfouri; Áurea Lopes, Paulo Caruso, Norma Couri, Mário Vítor Santos, Regina Pimenta, Luís Nassif e esta escriba. Faltaram Ricardo Kotscho, Dácio Nitrini, Sérgio Gomes; Francisco Wianey Pinheiro, o Pinheirinho; Selma Rita Severo Lins e tantos outros que ajudaram a despertar a velha guarda para fazer o que faz melhor: construir e reconstruir o que foi destruído.

Agora é que vem o trabalho duro mesmo: reinserir a ABI no cenário político brasileiro, de forma que volte a ter o papel protagonista que teve durante a ditadura em defesa da liberdade de imprensa e do Estado Democrático de Direito, perigosamente ameaçados no momento. Porque estamos, de novo, a viver a opressão daqueles anos de chumbo e a liberdade de imprensa é sempre o primeiro bastião da democracia a cair. Atacados por governantes e autoridades de todo o país, os jornalistas finalmente terão na nova ABI uma sólida trincheira para resistir. Agora vai. 

*Leda Beck, jornalista, especial para o Nocaute

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