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Acolhida dos venezuelanos pelos militares é exemplar: humanitarismo ou propaganda?

Evilázio Gonzaga Alves (*) 

Um grupo de acadêmicos visitou os centros de acolhimento a refugiados instalados em Roraima, para receber migrantes da Venezuela, no início de junho. Eles voltaram com muitas perguntas. 

A operação é exemplar, em termos humanitários, sem nada semelhante no mundo, onde os locais de contenção de refugiados parecem campos de concentração. 

Porém, será que o objetivo é genuinamente humanitário? Ou a operação, coordenada pelas Forças Armadas brasileiras, na verdade, tem objetivos de propaganda e faz parte de um plano maior, que visa desestabilizar o governo venezuelano? 

O fluxo de entrada de migrantes se mantém constante, em cerca de 800 pessoas por dia, mas os militares que trabalham no acolhimento informam que esperavam 10 vezes mais refugiados. De onde tiraram essa informação? 

Segundo esses mesmos militares é provável que o fluxo aumente, antes do final do ano. Novamente qual a fonte de informações e por que esperam um aumento?   

A impressão de que a infraestrutura se destina à propaganda, para estimular dissidência na Venezuela, fica mais ressaltada quando são comparados os métodos de tratamento da migração de venezuelanos e de outros países latino-americanos.

Muitos deles entram também no país, pelas fronteiras de Roraima, como os haitianos, guianeses e outros. Porém, para os não venezuelanos, a abordagem é completamente diferente. Eles são, na prática, deixados à própria sorte, ficando sem documentos, cuidados médicos, abrigo ou alimentação, sendo dessa forma empurrados para integrar as populações de rua das grandes metrópoles brasileiras.

É provável que os militares brasileiros das três armas, que atuam no acolhimento aos venezuelanos, cumpram as suas missões com humanitarismo sincero. Entretanto, os que comandam o tabuleiro geoestratégico aparentemente têm outras intenções, não tão bem-intencionadas, como os oficiais e soldados que atuam com extrema competência e civilidade na linha de frente. Desta forma, há muitas perguntas ainda sem respostas. 

Abaixo, o relato da professora Cynthia Soares Carneiro, da Faculdade de Direito, da USP de Ribeirão Preto (FDRP-USP). Ela integrou a comissão de observadores, organizada pela Organização Internacional para Migrações (OIM) e a ACNUR, que visitou os campos de refugiados na fronteira com a Venezuela, a convite da Universidade Federal de Roraima (UFRR). 

ALÉM DAS FRONTEIRAS, ALÉM DA IDEOLOGIA

Cynthia Soares Carneiro, professora da Faculdade de Direito, da USP de Ribeirão Preto (FDRP-USP) 

Com subsídio do Departamento de Direito Público (DDP), participei entre os dias 12 e 16 de junho de cursos sobre direito dos refugiados, de visitas de campo a abrigos de imigrantes venezuelanos em Boa Vista e Pacaraima, no estado de Roraima e, também, de workshops sobre situações de refúgio e acolhida de refugiados realizados na Universidade Federal de Roraima (UFRR). 

O evento teve apoio da OIM, do ACNUR e da Operação Acolhida, sob o comando das Forças Armadas brasileiras. Por isso, todas as etapas do curso foram acompanhadas por oficiais do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. O impactante desse fato incomum na academia, é o que representa analisar o instituto do refúgio em companhia de militares de alta patente, vestidos com uniformes de camuflagem, a evidenciar o tratamento histórico conferido às migrações internacionais no Brasil: a presença de estrangeiros é tratada como ameaça à segurança nacional ao demandar uma atuação política defensiva. Nesse sentido, o sujeito, o destinatário das leis e normativas migratórias é o próprio Estado, enquanto o imigrante, um estorvo a ser contido. 

Essa orientação é contrária a nova Lei de Migração (Lei 13.445/2017), mas corresponde às contundentes declarações de Jair Bolsonaro relativas à saída do Brasil do Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular. O anúncio da “saída”, antes mesmo da ratificação do Pacto, deve-se ao papel fundamental da diplomacia brasileira na sua elaboração. Enquanto ele era elaborado na ONU, tramitava no Congresso o projeto da nova lei, de iniciativa do então senador Aloysio Nunes, justamente o Ministro das Relações Exteriores e representante do Brasil na Conferência de Marrocos, em dezembro de 2018, ocasião em que o Pacto para Migrações foi aprovado. Tanto a Lei 13.4445/2017 quanto o Pacto de Marrocos são pautados nos direitos da pessoa do imigrante, superando o paradigma da segurança nacional previsto no revogado Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/1980). 

Uma vitrine para o mundo

No entanto, o discurso do presidente, contraditoriamente, parece não corresponder ao que vemos em Boa Vista e Pacaraima. Apesar dos uniformes militares, a acolhida que tem sido feita aos imigrantes venezuelanos em Roraima materializa todas as boas práticas que, há muito, têm sido objeto de recomendações e reivindicações por parte das associações civis de imigrantes e das associações religiosas de apoio a imigrantes e refugiados que temos acompanhado desde 2012.  

A Operação Acolhida, sob o comando das Forças Armadas, montou, em cerca de quinze dias, uma operação-modelo de regularização documental e abrigo de imigrantes e refugiados venezuelanos com o argumento de que o “Brasil é um país livre e aberto a todos”. Nesse período foram erguidos ou reestruturados 11 abrigos em Boa Vista e 02 em Pacaraima, principal ponto de chegada dos imigrantes venezuelanos no Brasil. Desses 13 campos de refugiados, 02 são indígenas e abrigam o povo Warao. 

Nas últimas semanas tem chegado, em média, 800 pessoas por dia pela fronteira entre Pacaraima (Brasil) e Santa Elena (Venezuela), o que indica que o fluxo se regularizou. Quando as fronteiras foram fechadas pelo governo venezuelano, em face à ameaça de intervenção do governo brasileiro no território do país vizinho, o fluxo dobrou nos dias seguintes à reabertura.

1 Ver a matéria jornalística “Não é qualquer um que entra em nossa casa”, publicada, no dia nove de janeiro de 2019, no jornal Valor Econômico. Disponível em: https://www.valor.com.br/politica/6056607/nao-e-qualquer-um-que-entra-na-nossa-casa-diz-bolsonaro-sobre-pacto 

De todos os venezuelanos que chegam, apenas 20% ficam em Pacaraima ou Boa Vista, os demais partem para outras partes do Brasil ou outros países da América do Sul. Os que permanecem na região estão em extrema vulnerabilidade socioeconômica. Atualmente, são cerca de oito mil imigrantes abrigados e dois mil em situação de rua em Boa Vista. 

São esses imigrantes que demandam uma política ativa de acolhimento e interiorização, o que tem sido provido, igualmente, pela Operação Acolhida. Os que ficam é que viram notícia. Até a construção dos abrigos, ficavam nas ruas sujeitos a incursões xenófobas da população. Aliás, foi somente após uma dessas ações, ocasião em que os poucos e precários pertences dos imigrantes foram queimados, que houve uma resposta dos organismos internacionais e do Estado brasileiro à situação de precariedade em que se encontravam.

O procedimento de chegada é o seguinte: ao cruzarem a fronteira as pessoas são imediatamente encaminhadas para o centro da Operação Acolhida, onde armazenam seus pertences e promovida a regularização de seu status migratório no Brasil. Para tanto, o centro de acolhida concentra escritórios da Policia Federal, responsável pela regularização do ingresso e permanência, da Defensoria Pública da União, que atua, principalmente, em defesa de interesse de crianças e adolescentes que chegam indocumentados, e do Ministério da Cidadania,  atualmente responsável pela a emissão do CPF e da CTPS. 

Nesse primeiro momento, as crianças são também vacinadas e recebem sua carteira de vacinação. Portanto, todos saem desta fase documentados, com atendimento médico básico e, inclusive, com acesso a telefones e computadores para entrarem em contato com sua família no Estado de origem ou com familiares e amigos que se encontram no Brasil.

Após essa fase de regularização documental, é feita uma triagem e os mais vulneráveis são encaminhados aos abrigos levantados pela Operação Acolhida. Ali as crianças têm parque de diversão patrocinado pela UNICEF, os jovens, campo de areia para prática de baseball, há lan house, “casas” para famílias e grandes tendas para mulheres e homens solteiros. Há também um mini-hospital, em Pacaraima. São oferecidas três refeições por dia, e, ao contrário dos demais campos do ACNUR espalhados pelo mundo, as pessoas não ficam retidas, isto é, podem entrar e sair do abrigo para procurar emprego e se inserir nas redes de serviços públicos locais. Enfim, são verdadeiros exemplos de boa governança migratória e acolhida humanitária para todos os demais Estados do mundo! O que é instigante.

A lei não é para todos

Assim nos confrontamos, nessas fronteiras, com sinais trocados, onde uma prática especial destaca-se do discurso oficial do governo, que elegeu uma população determinada e um contexto político específico para a aplicação da nova Lei de Migração, respectivamente, os imigrantes venezuelanos e o confronto do governo Bolsonaro com o governo Maduro. 

O aspecto positivo é que o resultado desse casuísmo ideológico é um exemplo de boa governança na acolhida e regularização migratória sem precedentes na nossa história e na história do mundo, atualmente marcada por muros e cercas fronteiriças, pela construção de centros de detenção para imigrantes indocumentados e proliferação de campos de refugiados que mais se assemelham a campos de concentração. 

Por outro lado, a tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana comprova que, como regra, a lei não é para todos no Brasil.  O tratamento jurídico e a infraestrutura de acolhida conferida aos imigrantes venezuelanos é o oposto à absoluta ausência do Estado na fronteira com a Guiana, porta de chegada de haitianos e cubanos, que fica a cerca de 150 quilômetros de Boa Vista, verdadeiro centro comercial de produtos “pirateados”.

Portanto, o discurso proferido pelos oficiais de que “nosso país é livre, nossas portas estão abertas a todos, nosso papel é acolher”, tem sido, por ora, verdadeiro exclusivamente em relação aos venezuelanos, pois aos demais resta a via crucis da burocracia que retarda, por tempo indeterminado, a regularização migratória e a emissão de documentos que possibilitariam sua integração ao mercado de trabalho formal e acesso a direitos civis no Brasil.

Porém, o fato é que o tratamento especial conferido aos venezuelanos tem gerado precedentes importantes, pois estes foram oficialmente reconhecidos pelo CONARE como refugiados em reunião no último dia 14 de junho com fundamento em “grave violação de direitos humanos”. A decisão é inédita e inusitada em razão da resistência global em ampliar o escopo do refúgio, atualmente justificado apenas quando há “fundado temor de perseguição”.  O CONARE já havia negado esse entendimento em relação aos haitianos.

A propósito, os haitianos continuam chegando e transitando pelas fronteiras entre o estado de Roraima e a Guiana em fluxos estáveis. Porém, o sistema integrado de documentação e acolhida não está disponível para os demais imigrantes caribenhos e centro-americanos, o que indica a permanência de uma questionável discricionariedade governamental enviesada por critérios políticos e ideológicos. 

A quem interessa a discriminação?

A Operação Acolhida prevê a saída do comando militar até dezembro de 2019, quando haverá transferência da coordenação para funcionários do estado de Roraima e de seus respectivos municípios.

As associações civis, que sempre se encarregaram do papel ora desempenhado pelas Forças Armadas, e que passaram a ter uma ação subsidiaria ao Alto Comando do Exército, admitem que temem o dia em que isso ocorrerá.  

Ao mesmo tempo, os oficiais das forças em comando afirmam que esperam que os fluxos venezuelanos tripliquem nos próximos meses, o que pode impor em sua permanência. 

A pergunta que fica é a quem interessa o tratamento privilegiado aos imigrantes venezuelanos e o caos no Brasil e na Venezuela? 

Só para constar e refletir: toda energia de Roraima era fornecida por hidrelétricas venezuelanas. O Brasil depositava regularmente seu pagamento até o governo Temer. Porém, todos os valores pagos à Venezuela não são creditados, posto que bloqueados pelo sistema financeiro internacional.

Roraima, desde a posse de Bolsonaro, tem sido abastecida por usinas termoelétricas. A energia é muito mais cara. Mas as usinas são de propriedade de Romero Jucá, um técnico da FUNAI que fez fortuna e carreira política em Roraima e que mantem diversos apadrinhados em cargos estratégicos no atual governo. 

(*) Evilázio Gonzaga Alves é jornalista, publicitário e especialista em marketing e comunicação digital.

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