Brasil

O amor nos tempos do amor: Marta e Miguel.

Neste texto, exclusivo para o Nocaute, a jornalista Maria da Paz Trefaut Urbano Rodrigues revela a paixão tórrida vivida por seu pai, o dirigente comunista português Miguel Urbano Rodrigues, e a conflituosa relação dele com a socióloga chileno-cubana Marta Harnecker, falecida anteontem, aos 83 anos.

Tenho a impressão de que o romance entre meu pai, Miguel Urbano Rodrigues, e a chileno-cubana Marta Harnecker começou em 1998. Eles se conheceram em Havana, pouco depois dela ficar viúva do comandante cubano Manuel Piñero Losada, o Barbarroja, e dele terminar o segundo casamento. Eu nunca a vi e tudo o que sei me foi contado por ele. Ela era uma marxista cuja obra Os Conceitos Elementares do Materialismo Histórico costumava ser estudada em grupos de jovens no Brasil como uma referência da esquerda. Nunca li nada dela. Mas eis que um dia, numa visita ao Brasil, durante os oito anos que morou em Cuba, meu pai me diz:

– Estou com um problema seríssimo, minha filha. 

– O que aconteceu?, perguntei.

– Pela primeira vez na vida me apaixonei por uma mulher mais inteligente do que eu.

Foi uma paixão tórrida. Para ele, pelo menos. Os detalhes mais reveladores dessa história, meu pai me contou numa tarde em Paris, na última vez que estivemos juntos, em 2017, meses antes de sua morte.

Eu já sabia que ela nunca tinha assumido o romance oficialmente. Havia um pouco mais de dez anos de diferença entre eles e Marta o achava muito velho. Segundo ele, ela dizia que tinha certeza de que iria se casar com um homem mais jovem, o que de fato aconteceu. Ele minimizava: “Ridículo, o novo marido só tem dois anos a menos do que ela”. 

Creio que meu pai e Marta chegaram a viver juntos mais de um ano na casa dela em Havana. Mas quando viajavam, ela sempre exigia dois quartos de hotel. E assim que suas amigas chegavam em casa, pedia que ele se escondesse no quarto. “Era risível, todo o mundo sabia do nosso caso”, contava ele. Fato é que Marta nunca lhe escondeu que, para ela, a relação era basicamente sexo. Além disso, não havia futuro.

Lembro que essas revelações, feitas quando ele já tinha 91 anos, tiveram um impacto enorme sobre mim. Imaginá-lo a aceitar aquela condição humilhante era algo de um homem que eu não conhecia. Pela primeira vez na vida, ele se mostrava para mim como alguém capaz de abrir mão do orgulho, completamente alucinado pela paixão. 

Como era de se esperar, um dia ele deu um basta. E partiu. Foi duro, confessou. “Sofri. Senti sua falta durante meses”. Mas não voltou atrás. 

Para exorcizar, escreveu um romance epistolar: Alva. As cartas tratavam de viagens pela Ásia Central, de história, de amor e sexo. Além dos nomes serem falsos, as idades estavam trocadas. Ele enviou os originais a Marta pedindo permissão para publicar. 

Ok, ela teria dito, depois de vetar dois ou três trechos: “Acho o livro muito ruim, mas você pode publicar”. 

Ela se casou, ele também. Continuaram amigos. Muitas vezes era Catarina Almeida, a Caty, atual viúva dele, que lia em voz alta e respondia os e-mails de Marta, ditados por ele. 

Num desses e-mails, Marta contou que estava num congresso em Buenos Aires, partilhando o quarto com uma amiga. Alva estava no criado-mudo. Pela manhã, a amiga lhe diz:

– Varei a noite lendo este livro. É ótimo. Não consegui parar. O mais incrível é que a personagem se parece muito com você!

Na resposta, meu pai perguntou:

– Mas você não disse que não gostava do livro?

– Não gostava. Mas agora gosto, respondeu ela. 

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