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Stefan Zweig e Hitler: o Presságio

Neste artigo melancólico mas realista, o jornalista argentino Vicente Battista, do diário argentino Página/12, traça um paralelo entre o destino de dois austríacos: Stefan Zweig e Adolf Hitler. Passados setenta anos, o autor adverte, com espanto, que Stefan Zweig não se enganou de todo: “Faz poucos dias, o ex-capitão do exército Jair Bolsonaro assumiu a Presidência da República Federativa do Brasil.”

Ambos haviam nascido na Áustria: um em Viena e o outro em Braunau am Inn, em 1889. É possível que vinte anos mais tarde os dois tenham se cruzado por alguma rua de Viena. Um havia se doutorado em Filosofia, o outro, no entanto, enfrentava a terceira recusa na Escola de Belas Artes. Um era um assíduo visitante dos salões que reuniam os notáveis da vanguarda artística e intelectual daqueles dias e rapidamente atingiu celebridade. O outro, ao contrário, mal ganhava a vida limpando neve e carregando malas na estação central de trens. Um havia publicado poemas, contos e novelas, o outro havia começado a pintar quadros  decididamente medíocres que, não obstante, lhe permitiam alugar  um quarto numa pensão miserável.

Tanto o escritor  célebre quanto o pintor medíocre participaram da Primeira Guerra Mundial. O escritor célebre foi considerado inapto para o combate e ocupou um cargo menor como empregado do Escritório de Guerra do exército do Império Austro-Húngaro. O pintor medíocre  se alistou como voluntário no Exército Alemão. O escritor célebre, profundamente antibelicista, optou por exilar-se em Zurique; o pintor medíocre, declaradamente belicista , foi destinado à frente ocidental como mensageiro da Primeira Companhia do Décimo Sexto Regimento de Infantaria  Bávaro de Reserva.

Em 11 de novembro de 1918 as forças aliadas assinaram um armistício com a Alemanha. O escritor  célebre pôde regressar à Áustria e se radicou em Salzburgo, o pintor medíocre voltou da frente e se estabeleceu em Munique, e ostentava o grau de cabo e duas cruzes de ferro.  A partir desse momento, o escritor célebre dedicou seu tempo à literatura: já havia publicado quatro obras de teatro, dois livros de poemas, duas novelas e numerosos contos. A crítica o considerava um dos mais importantes autores em língua alemã da época. O pintor medíocre permaneceu no exército e trabalhou como espião da polícia do comando de inteligência, integrou os Freikcorps, uma facção paramilitar ultranacionalista de extrema direita, célebre por seu declarado ódio aos comunistas, aos judeus, aos negros, aos ciganos e aos homossexuais.

Em 1920 o pintor medíocre abandonou as fileiras do exército e começou a militar no Partido Nacional Socialista Operário Alemão. A partir dessa organização, que aderia devotamente às propostas dos Freikcorps, o pintor medíocre se dispôs a recuperar o  debilitado orgulho bávaro.

O escritor célebre foi testemunha de como aquele pintor medíocre, com quem alguma vez pode ter cruzado numa rua de Viena, em 2 de agosto de 1934 foi proclamado presidente da república alemã, ostentando o título de Führer.  O Partido Nacional Socialista Operário Alemão decidiu chamar-se Partido Nazi e adotou a cruz gamada como seu emblema. O escritor célebre foi testemunha de como seu admirado Albert Einstein teve que se exilar nos Estados Unidos da América do Norte, um caminho que se viram obrigados a percorrer outros escritores amigos: Thomas Mann, Klaus Mann, Heinrich Mann, Robert Musil, Bertolt Brecht, Erich Maria Remarque.

O escritor célebre se exilou em Londres, de onde, a pedido de Richard Strauss, escreveu o libreto para a ópera “A mulher silenciosa”, que estrearia em Dresde. As autoridades nazis exigiram que Strauss eliminasse o escritor célebre como autor da ópera. Strauss se negou, a ópera esteve três dias em cartaz: foi suspensa e se impediu a sua apresentação em todo o país. As cartas estavam lançadas: em 1936 todos os livros do escritor célebre foram proibidos na Alemanha. Nesse momento soube que nunca mais poderia voltar a sua terra.

O pintor medíocre, agora convertido em Führer, transformou a Alemanha numa formidável máquina de destruição: em 1º de setembro de 1939, o exército nazi invadiu a Polônia, em 9 de abril de 1940 tomou a Dinamarca e vinte e um dias depois a Noruega, em 14 de junho ocupou a França e um ano mais tarde avançou até a URSS.

Nesse tempo o escritor célebre continuou com suas novelas e contos, com seus poemas, suas peças teatrais e seus ensaios e biografias. Foi aos EUA com o fim de apresentar seus livros e realizar ciclos de conferências, pelas mesmas razões, visitou também a República Dominicana, Venezuela, Uruguai e Argentina, onde ofereceu conferências em Buenos Aires e Rosário, que reuniram milhares de espectadores.

Finalmente, em 1941 se estabeleceu no Brasil. Nesse mesmo ano escreveu O País do Futuro, livro que postulava que enquanto a Europa se destruía o Brasil poderia ser a esperança. Uma esperança que o escritor célebre há muito havia perdido: o fantasma daquele pintor medíocre o perseguia sem descanso.

Em 1942, os britânicos reconheceram que nesse momento as tropas aliadas não estavam em condições de enfrentar o invencível exército nazi. Convencido de que o espanto do nazismo se estenderia por todo o planeta, o escritor célebre disse basta: em 22 de fevereiro o encontraram morto, abraçado à sua esposa. Dois copos com veneno sobre a mesa de cabeceira eram a prova definitiva do suicídio de ambos.

Stefan Zweig errou em seu vaticínio: três anos mais tarde, em 30 de abril de 1945, Adolf Hitler se suicidou junto a sua esposa. Eles não utilizaram veneno, mas uma pistola Walther PPK de 7,65 mm. Muitos imaginaram que essa morte significava o fim do nazismo. Setenta e quatro anos depois advertimos, com espanto, que Stefan Zweig não se enganou de todo: faz poucos dias, o ex-capitão do exército Jair Bolsonaro assumiu a Presidência da República Federativa do Brasil.

 

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