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“Você se lembra quando foi racista com uma preta ou um preto?”

Em sua estreia no Nocaute, o jornalista e tradudor Irineu Franco Perpetuo fala sobre o livro de Bianca Santana ‘Quando me descobri negra’. “O livro que eu pudesse escrever como resposta ao da Bianca, seria para ser bastante honesto, “Quando me descobri racista”.

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“Posso te fazer um pedido?
Um sorriso, desses sem mostrar os dentes, seguido do pedido: uma mesa pra dois por favor.
Um sorriso em resposta, do mesmo tipo: Eu não trabalho aqui.
Outro sorriso e outro pedido: você pode levar uma água até aquela mesa por favor?
A resposta sem sorriso: Eu não trabalho aqui.
O terceiro sorriso em menos de cinco minutos e um outro pedido: eu preciso de um cardápio.
O desejo de responder aos berros que estou esperando a minha amiga sair do banheiro pra sumir daquele café onde quem frequenta é branco e quem trabalha é preto. Mas a resposta cordial, tranquila, a seco: Eu não trabalho aqui. Posso te fazer um pedido.”
Essa talvez seja a minha história preferida de “Quando me descobri negra” de Bianca Santana. Livro da Editora Sesi São Paulo.
Bianca é uma jovem escritora, militante, jornalista, educadora que nesse livro, um pouco confessional, contaria uma série de causos cotidianos do racismo brasileiro, aquele que algumas pessoas dizem que não existe.
A Bianca conta como ela mesma se descobriu e se aceitou como negra. E tem inclusive uma série de episódios obviamente muito mais crus, muito mais violentos, assim como têm histórias afirmativas, histórias vencedoras.
Eu gosto especialmente dos episódios que tem essa cara, muitos dos quais não chegaram a esse nível, mas nós ouvimos todos os dias. Por exemplo, a Bianca me contou outro dia que estava com os filhos no táxi e o motorista perguntou: Você cuida dessas crianças? Ela respondeu: Sim, eu cuido porque eu sou a mãe deles.
Esse racismo latente. Gosto desses episódios, porque no fundo talvez poderiam ser protagonizados por mim ou por você. Pela gente. A gente que não é racista, não vou na rede nacional ficar fazendo piada de preto. Todos nós temos amigos negros que colocamos nas redes sociais, namoraríamos, namoraremos pretos e pretas. Mas quando saímos na rua, será que nunca desviamos da calçada? Sempre quando somos abordados, agimos de maneira igual? Nós ouvimos todo mundo da mesma maneira? Respondemos a todos da mesma maneira? Somos racistas?
O livro que eu pudesse escrever como resposta ao da Bianca, seria para ser bastante honesto, “Quando me descobri racista”.
Então, além de gostar muito dessas histórias, além de ver nelas talvez um dos motivos que faz com que a gente normatize e aceite sem problematizar a situação cotidiana de genocídio da população negra do Brasil.
Eu peguei pra mim a última coisa que a Bianca escreve no livro, antes de se despedir.
“Você se lembra quando foi racista com uma preta ou um preto? Não precisa contar pra ninguém, só tente não repetir”.
* Irineu Franco Perpetuo é Jornalista e tradutor, colaborador da revista Concerto e jurado do concurso de música Prelúdio, da TV Cultura, traduziu, diretamente do russo, Pequenas Tragédias e Boris Godunov, de Púchkin, Memórias de Um Caçador, de Turguêniev, A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, Memórias do Subsolo, de Dostoiévski, Vida e Destino (segundo lugar no Prêmio Jabuti 2015) e A Estrada, de Vassíli Grossman, O Mestre e Margarida, de Bulgákov e, com Moissei Mountian, O Salmo, de Friedrich Gorenstein.

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